O calor sufocante e o trânsito calmo eram indícios de que as férias de verão haviam chegado para os estudantes de Porto Alegre. Não para todos. Os milhares de alunos da UFRGS ainda amargavam aulas ao longo do primeiro mês de 1985 devido a uma longa greve de professores no ano anterior.

Entre eles, estavam os (até então) aspirantes a arquitetos Humberto Gessinger, Carlos Maltz, Marcelo Pitz e Carlos Stein, todos com 20 e poucos anos. Para driblar o tédio na cidade, os quatro montaram um grupo que deveria durar apenas uma noite: os Engenheiros do Hawaii.

Mas, quando subiram ao palco do auditório da Faculdade de Arquitetura, no dia 11 de janeiro de 1985, deram início a uma das maiores bandas de rock do Brasil, que soma 18 discos lançados e mais de 3 milhões de álbuns vendidos.

Para celebrar o aniversário de 30 anos, voltamos àquela noite, contamos como tudo começou, e oferecemos aos fãs do grupo um presente: um clipe feito por ZH.com da faixa Por Que Não?, gravada em 1985 e jamais registrada em disco. A gravação foi resgatada do acervo do radialista Mauro Borba.

 
 
 

Eles eram colegas de curso que, de vez em quando, esbarravam-se em corredores ou frequentavam a mesma sala de aula. Podiam ainda ser vistos dividindo uma cerveja em algum bar, mas era algo pouco comum, e nunca todos juntos. Assim foi até o final de 1984, quando os futuros Engenheiros do Hawaii Humberto Gessinger, 21 anos, Carlos Maltz, 22, e Marcelo Pitz, 21, reuniram-se pela primeira vez. O objetivo: tocar na festa da faculdade. Tudo começou quando o estudante Rainer Steiner, da banda cover Ritual, decidiu fazer um show na Arquitetura da UFRGS, onde todos estudavam. A proposta logo ganhou adesões. “Por que não uma banda de abertura?”, pensaram os colegas e amigos Maltz e Ricardo Sommer (que se tornaria produtor dos Engenheiros).

Na faculdade, músicos não faltavam: na bateria, ficaria o próprio Maltz, que tocava no grupo Contra Regra; na guitarra, Carlos Stein, do quarto ano, que atuaria com a banda em apenas dois shows; no baixo, Pitz, que ainda encarava seus primeiros semestres. Gessinger, que tinha uma guitarra e já vinha falando com Stein sobre a possibilidade de montar uma banda, também foi lembrado, mas seu nome não era consenso.

– A opinião que eu tinha sobre o Gessinger era que ele era arrogante. Provavelmente, a mesma que o cara tinha sobre mim. Mas, como era para ser um show só, topei – recorda Maltz, aos risos.

Com a parte instrumental definida, restava saber quem assumiria os vocais. Nos ensaios, foi o colega alto e boa-pinta que encarou a função.

– Não era para eu cantar todas as canções, mas o pessoal foi tirando o corpo fora e sobrou pra mim – diz Gessinger.


Confira linha do tempo da banda:

 
 

O primeiro ensaio foi nos últimos dias de 1984, no pátio da casa de Gessinger. Além dele, estavam presentes também Stein e Airton Seligman, que era guitarrista na banda Contra Regra – Pitz seria convidado alguns dias depois. Conversa vai, conversa vem, e Gessinger disse que tinha algumas músicas que poderiam tocar no show.

– Ele trouxe uma pasta enorme. Devia ter umas 500 músicas ali! Quando saímos, o Airton me disse: "Rapaz, que merda as músicas desse cara". Mas eu tinha adorado! Era uma coisa geracional, o Airton era mais velho e não ia sacar aquilo, mas logo percebi que o cara era genial – lembra Maltz.

A velha pasta, com letras escritas ao longo da adolescência de Gessinger, continha trechos de futuras canções como Nada a Ver e Infinita Highway, que não chegaram a entrar no primeiro show. O estudante resolveu escrever composições especialmente para a estreia da banda, com espírito mais debochado e humor nonsense.

– O Humberto era obsessivo-compulsivo em relação a compor, e eu era obsessivo-compulsivo em relação a fazer sucesso. Desde o início, acreditei que poderíamos ser uma banda nacional – complementa Maltz.


 

Aos poucos, o quarteto tomou forma: Seligman não foi além daquele ensaio, e Pitz assumiu o baixo. Faltava, contudo, batizar a banda. Gessinger fez uma lista de possíveis nomes e os apresentou ao grupo.

– Gostava muito de Frumelo e os Sete Belos, brincando com aquelas balas que se dá de troco em bar. Tinha a ver com a ironia da época, era um nome meio new wave – conta.

Mas o escolhido foi Engenheiros do Hawaii, uma brincadeira com os estudantes de Engenharia que azaravam as gurias no bar da Arquitetura, fazendo pose de surfista.

– Hawaii é um paraíso meio kitsch, lembra o Elvis cantando ao lado daquelas dançarinas. Era uma referência que queríamos abarcar – diz Gessinger.

 
 

Naquela noite de 11 de janeiro, a grande atração no palco armado na Faculdade de Arquitetura seria a banda cover de heavy metal Ritual. Afinal de contas, o evento havia nascido do esforço do baterista do grupo, Rainer Steiner. Mas os recém-criados Engenheiros do Hawaii acabaram se tornando protagonistas por conta de um acaso: o vocalista da Ritual abandonou o grupo poucas semanas antes do show.

– Sem vocalista, resolvemos fazer um show instrumental e mais curto. Então, convidei o Humberto para colocar a banda dele como destaque. Assim, a Ritual acabou abrindo o primeiro show dos Engenheiros – conta Steiner, hoje integrante da banda de rock progressivo Apocalypse.

 
 

A Ritual cedeu bateria e equipamento de som para os dois shows da noite. Quando tudo estava montado, alguém perguntou a um dos organizadores do evento, o estudante Ricardo Sommer, onde andava a banda principal, que ainda precisava fazer a passagem de som.

– Mas o que era "passar som"? Ninguém de nós, nem mesmo os guris da banda, sabia que aquilo era necessário. Nenhum era músico de verdade – lembra Sommer. – Fomos buscá-los, mas eles haviam sumido!

Quando os Engenheiros apareceram, o motivo do sumiço estava na cara: eles voltaram com um corte de cabelo new wave recém-feito no Scalp, salão do Bom Fim que era a sensação da juventude dos anos 1980.

– Era apenas uma banda começando, tudo muito improvisado, mas já tinha uma preocupação com a imagem dos integrantes e contava com ideias bem pensadas – comenta Stein.


A discografia comentada da banda:

 
 

O sucesso da estreia estava ameaçado por dois problemas: a hipótese de chuva e a concorrência da transmissão ao vivo do festival Rock in Rio, que começaria na mesma noite e era apregoado pela imprensa como "o maior festival de música desde o Woodstock".

Por conta do risco de temporal (que não se confirmou), os shows, que seriam no terraço, foram abrigados no auditório da faculdade. Para entrar, era necessário pagar uma contribuição espontânea, sem controle do número de pagantes. Mas quem esteve lá lembra que centenas de pessoas ignoraram os shows de bandas como Iron Maiden e Queen na TV para ver os Engenheiros tocarem uma série de música próprias (jamais gravadas pelo grupo), covers bem-humorados de Lady Laura (de Roberto Carlos) e de Rebelde sem Causa (do Ultraje a Rigor) e debochadas versões dos jingles publicitários do biscoito Sem Parar e do extrato de tomate Elefante.

– Foi a melhor de todas as festas da faculdade – define Eliane Sommer de Almeida, então professora dos garotos.

Além dos cabelos modelados no Scalp, os integrantes vestiam bombachas e camisas havaianas. Para Gessinger, o repertório e o visual inusitado refletiam o espírito da época, um Brasil que saía da ditadura militar – no mesmo mês, o Colégio Eleitoral fez de Tancredo Neves o primeiro presidente civil após 21 anos de ditatura:

– Era o início da abertura política e o new wave estava acontecendo. Era quase que um desbunde, do tipo "vamos ser mais leves, mais divertidos", de quem via a perspectiva das coisas melhorando.

Humberto Gessinger canta parte do repertório do primeiro show

 
 

Apenas duas semanas após a estreia, o Engenheiros do Hawaii voltaram a se apresentar na Faculdade de Arquitetura, ao lado da banda Os Eles. Dessa vez, os guris vestiam aventais de médico.

– Era uma briga de beleza com os estudantes da medicina, que faziam sucesso com as gurias da Arquitetura e acompanhavam Os Eles – conta Sommer.

Depois de muitos ensaios, a banda já parecia outra.

– Musicalmente, essa apresentação foi muito melhor – diz Steiner.

Aí começaram os convites para shows em danceterias, e a banda seguiu ensaiando verão adentro. Mas sem Carlos Stein, que preferiu veranear com a família: no ano seguinte, ele seria um dos fundadores da banda Nenhum de Nós.

O momento não poderia ser mais propício para os Engenheiros: o rock brasileiro ganhava as rádios, as TVs e o público pelo Brasil. Naquele mesmo ano, Gessinger, Maltz e Pitz abandonariam a faculdade para viver de música.

– Não tomei a decisão de ser músico, simplesmente me dei conta de que já não era mais um estudante de Arquitetura, pois só aparecia uma vez por mês na aula para pedir favor aos professores. Então parei de ir, nem lembro se tranquei matrícula ou abandonei – força a memória Gessinger.

Os ex-futuros arquitetos passariam a ser Engenheiros do Hawaii em tempo integral e para muito além da Faculdade de Arquitetura, de Porto Alegre ou do Rio Grande do Sul. Ao som dos hits Sopa de Letrinhas e Segurança, em menos de um ano eles estariam tocando na TV, nos palcos e nas FMs do país. E era só o começo.


Confira imagens do início em galeria:

 
 

Punks, darks, amantes do rock clássico ou antenados na moda new wave, milhares de jovens lotavam o circuito de shows de Porto Alegre em 1985, ano da estreia dos Engenheiros do Hawaii. Dezenas de bandas gaúchas fortaleciam uma cena local diversificada, mas ainda longe demais das grandes capitais. O isolamento, no entanto, estava prestes a acabar.

A virada começou com a vinda de um olheiro de uma grande gravadora ao Estado. Tadeu Valério, da multinacional RCA, foi convidado pelo DJ, radialista e cineasta Claudinho Pereira a conferir de perto o potencial dos grupos do Rio Grande do Sul.

– As bandas do Rio, São Paulo e Brasília já tinham estourado, mas as do RS ainda não. Falei para o Tadeu: "Vocês têm que olhar para o rock do Sul. E venha de uma vez para cá, pois logo vai ter uma amostra importante aqui!" – conta Pereira.

A tal amostra era o festival Rock Unificado que reuniu mais de 10 mil pessoas, em 11 de setembro de 1985, no Gigantinho. O evento teve uma dezena de bandas locais de destaque: Astaroth, Banda de Banda, Os Eles, Engenheiros do Hawaii, Garotos da Rua, Júlio Reny & Km 0, Prise, Os Replicantes, TNT e Taranatiriça.

A profusão de bandas era um reflexo do boom do rock em todo o país nos anos 1980, fenômeno conhecido como BRock.

– A partir do nascimento do BRock, todo mês havia quatro ou cinco bandas novas. Para gravadoras, imprensa e rádio, parecia não haver outra coisa no mundo da música – conta o crítico musical Juarez Fonseca.

A safra de bandas gaúchas logo revelou ter potencial para estourar:

– Fomos ao ensaio do Rock Unificado, e lá estavam os Engenheiros do Hawaii no palco. Era muito bom, meio Paralamas, meio The Police. Nos interessamos por eles na hora – lembra Claudinho.

Além dos Engenheiros, destacaram-se Os Replicantes, TNT e Garotos da Rua. Os quatro foram selecionados para entrar na coletânea Rock Grande do Sul, que já nasceu com o objetivo de apresentar a música jovem do Estado ao Brasil. Apesar de não estar no festival, o DeFalla, que vinha se destacando por seu som experimental e inovador, também entrou. Foi assim que, ainda naquele setembro, os Engenheiros assinavam seu primeiro contrato.

– Confesso: eu, um fruto do formato LP e dos álbuns conceituais, não me emocionava muito em ter duas músicas num disco coletivo. Mas, para o ambiente do RS, o interesse de uma major era revolucionário – lembra Humberto Gessinger. – O álbum nos levou ao Longe Demais das Capitais e nos mostrou para o pessoal de fora do Estado.

A gravação foi no Rio de Janeiro, com produção de Reinaldo Barriga. Em janeiro de 1986, o disco já estava nas lojas de todo o Brasil e faixas como Tô de Saco Cheio, dos Garotos da Rua, estavam entre os hits de verão. Sopa de Letrinhas, dos Engenheiros, além de tocar nas rádios, ganhou clipe, exibido até mesmo na MTV internacional. O sucesso impulsionou a carreira dos participantes – até 1987, todas as bandas já teriam lançado álbuns individuais.

Quase 30 anos depois, o álbum segue repercutindo: Claudinho Pereira planeja rodar um documentário sobre o bolachão em breve – ele vai submeter o projeto às comissões que selecionam trabalhos para financiamento via leis de incentivo.

– Foi o disco que tirou o rock gaúcho da garagem e o levou para o Brasil – opina Pereira.



As bandas

Engenheiros do Hawaii

Humberto Gessinger (guitarra e vocais), Marcelo Pitz (baixo) e Carlos Maltz (bateria) chamavam a atenção pela musicalidade ska e reggae, em alta na época com o sucesso do The Police.

Faixas: Sopa de Letrinhas e Segurança.


Os Replicantes

Com um som sujo, agressivo e despojado de qualquer virtuosismo, deixava claras suas influências do punk inglês. Com Wander Wildner (vocal), Cláudio Heinz (guitarra), Heron Heinz (baixo) e Carlos Gerbase (bateria), eram a grande aposta da coletânea.

Faixas: Surfista Calhorda e A Verdadeira Corrida Espacial.


Garotos da Rua

Com influências do rock clássico e do blues, era a banda mais experiente entre as selecionadas, formada em 1982. A banda era formada por Bebeco Garcia (guitarra e vocal), Justino Vasconcellos (guitarra), King Jim (sax), Geraldo Freitas (baixo) e Edinho Galhardi (bateria).

Faixas: Tô de Saco Cheio e Sozinho Outra Vez.


TNT

Também influenciada pelo rock clássico, era formada por Flávio Basso (conhecido depois como Jupiter Apple, na guitarra e vocal), Nei Van Sória (guitarra e vocal), Charles Master (baixo) e Felipe Jotz (bateria).

Faixas: Entra Nessa e Estou na Mão.


DeFalla

Com Edu K (vocal e guitarra), Carlo Pianta (baixo) e Biba Meira (bateria), o grupo quase não entrou na coletânea:

– Eles estavam fazendo um som muito à frente do que estávamos vivendo – explica Claudinho Pereira.

Faixas: Você me Disse e Instinto Sexual.

 
 
 
 
 

 
 
 
 
 
 

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Textos: Alexandre Lucchese
Arte: Guilherme Gonçalves
Programação: Michel Fontes e Guilherme Maron
Videoclipe "Por que não?": Leonardo Azevedo  
 
 

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