Promovido pelo jornal Zero Hora, o projeto traz a Porto Alegre profissionais de atuação reconhecida para debater com jornalistas, professores e estudantes sobre a profissão e o papel da imprensa em uma sociedade livre e democrática.

Edição | Lúcia Pires

Design | Thaís Müller

CACO BARCELLOS

 

Repórter e escritor

16 de Setembro de 2015

 

O jornalista concedeu entrevista e participou da terceira edição do Em Pauta ZH – Debates sobre Jornalismo, com a mediação do colunista de ZH, Paulo Germano.

"A imprensa não se importa com a periferia"

Repórter e apresentador do programa Profissão Repórter da Rede Globo, Caco Barcellos trabalhou nos maiores jornais do Brasil e nas revistas IstoÉ e Veja. Recebeu mais de 20 prêmios por reportagens especiais e documentários produzidos para televisão, entre os quais dois Vladimir Herzog e dois Prêmios Jabuti pelos livros “Rota 66” e “Abusado”. Em 2008, recebeu o Prêmio Especial das Nações Unidas como um dos cinco jornalistas que mais se destacaram, nos últimos 30 anos, na defesa dos direitos humanos no Brasil.

Entrevista por Paulo Germano

 

Um dos rostos mais conhecidos do jornalismo brasileiro, Caco Barcellos é um indignado de fino trato. Não altera a voz mansa – tampouco se irrita com o repórter que diz ouvi-lo muito baixo – e passa meia hora enfileirando críticas à polícia, à imprensa e a uma sociedade que, segundo ele, aplaude a violência policial.

Aos 65 anos, nascido na Vila São José do Murialdo, em Porto Alegre, onde chegou a trabalhar como taxista, Caco conhece como poucos as estratégias policiais para matar gente nas periferias – assunto que abordou em Rota 66 (1992), livro sobre a ação da polícia em São Paulo que lhe rendeu um Prêmio Jabuti de literatura. Hoje ele lidera a equipe de jovens jornalistas do programa Profissão Repórter, exibido pela RBS TV.

 

O Profissão Repórter mostrou que houve uma espécie de “pré-chacina”, com seis mortos, antes da chacina que matou 19 em Osasco, no dia 13 de agosto. Como chegaram a essa informação?

Pelos familiares das vítimas. Para o povo da periferia de Osasco, não havia dúvida sobre quem comandou a chacina (policiais mascarados). Como sempre ocorre nesses casos, só a polícia não sabia.

 

Por que a chacina anterior, com seis mortos, não havia sido noticiada antes?

De um modo geral, a imprensa não dá importância a esses casos na periferia. Só tem importância quando há mais de 10 ou 15 vítimas, aí vira notícia. Antes dos seis primeiros mortos, houve mortes idênticas praticadas por mascarados, e o cotidiano de São Paulo é assim desde 1970. Todo dia uma pessoa é vítima das forças do Estado. A imprensa negligencia porque, se ocorre todo dia, não é notícia. Mas, se você ignorar que diariamente a polícia mata um ou dois, no final do mês você ignorou 60 mortos. A polícia de Portugal matou quatro pessoas em 20 anos. Aqui em São Paulo, em um mês a polícia mata 60 pessoas e não é notícia?

 

Desde Rota 66, seu livro lançado em 1992, você denuncia que a polícia afronta os direitos humanos. Algo mudou nesses 23 anos?

Mudou para pior. Antes só havia uma tropa de elite em São Paulo. Agora, quase todos os Estados têm policiais que brincam de mocinho e bandido. Para alguns, é uma diversão fazer isso; para outros, é uma forma de se valorizar no mercado de segurança privada. Todos eles fazem “bico” e, quando são matadores, o valor no mercado sobe, com mais empresas cobiçando-os para fazer segurança. A verdade é que parte da sociedade apoia e elogia. Não é à toa que os principais matadores foram eleitos com grande quantidade de votos.

 

Quem, por exemplo?

Identifiquei mais de 40 vítimas de Conte Lopes (deputado estadual por seis mandatos em São Paulo, hoje ele é vereador pelo PTB na capital paulista). O falecido coronel Ubiratan Guimarães, comandante do massacre do Carandiru, foi eleito usando na urna o número 111, que foi o total de detentos mortos. Só existe brutalidade praticada de forma sistemática quando há um ambiente de apoio – e esse ambiente de apoio envolve o chamado “cidadão de bem”. É uma hipocrisia achar que o problema está no policial que aciona o gatilho.

 

Está em nós mesmos?

Claro. Quem aciona o gatilho é o soldado, mas quem está matando é todo mundo que paga imposto. Porque o policial assassino está cumprindo ordens do Estado. E quem elegeu o governador, que por sua vez escolhe o secretário de Segurança, somos nós. Mesmo que eu não tenha votado no governador eleito, ele é o meu representante. Se o governo dele mata, estou matando junto. É curioso que essa violência só ocorra nas polícias estaduais militares.

 

Na Polícia Civil não?

Muito raramente, e na Polícia Federal mesmo ainda. Trabalham de maneira eficiente e não matam ninguém. Veja a quantidade de gente presa na Operação Lava-Jato: alguém foi torturado? Qual é a lógica disso? Quem comete um crime que traz prejuízo milionário para a sociedade é tratado pela polícia dentro da lei. Agora, se o acusado é um pobre, aí a execução é considerada legítima.

 

E há culpa da imprensa nisso?

Na imprensa, o rico que vai preso sempre é chamado por sua profissão: lobista, empresário, deputado. Já o indivíduo de baixa renda nunca é chamado pela profissão, é apenas bandido. Já notou isso? Pequenos comportamentos da imprensa e do sistema judiciário acabam legitimando a ação desses maus policiais.

 

Como você consegue, com um rosto tão conhecido, fazer tanta reportagem na rua?

Lugar de repórter é na rua. Se deixa de ir para a rua, deixa de ser repórter. A gente pouco frequenta gabinetes, pouco ouve especialistas, porque o que há de mais instigante está na rua. Tenho um rosto conhecido, mas na periferia ouço muito: “Lá vem aquele bando de repórter que entra na casa da gente”. Acho isso maravilhoso. Eles sabem que nós gostamos de gente. E naturalmente eles gostam de nós. Outro dia meu filho falou brincando que, quando eu morrer, meu enterro estará cheio de mendigos, prostitutas, craqueiros e pedintes (risos).

 

Como foi cobrir os protestos de junho de 2013, nos quais havia uma grande rejeição à Globo?

Para muita gente entre os manifestantes, aquela era a primeira vez em que estavam na rua protestando. Me pareceu relativamente natural que houvesse tumultos, já que as pessoas estavam aprendendo a fazer política na rua. Havia uma forte resistência, de fato, e em determinado momento eu disse: “Quem bate em trabalhador é de extrema-direita. A história do Brasil nos mostra isso. Vocês são de extrema-direita? É que já estou tentando identificar quais são os grupos aqui”. E, aos poucos, foram nos deixando trabalhar.

 

Todas as pesquisas mostram que o celular tornou-se a tela mais vista e que a audiência da TV está caindo. Como o jornalismo deve lidar com isso?

Isso é relativo. Há quem diga que é o contrário, que a audiência da TV vem aumentando, já que as redes sociais e uma série de plataformas reproduzem o trabalho das emissoras. Tem muita gente assistindo ao meu programa pelo computador e, ao meu ver, a conjuntura atual é muito favorável para quem produz conteúdo. O jornalismo profissional é cada vez mais necessário para colocar ordem nas coisas, para ajudar as pessoas a selecionar as informações que vão consumir. E o repórter, especialmente, é fundamental.

 

Por quê?

Porque hoje todos têm opinião. E, para alguém opinar com o mínimo de embasamento, a informação precisa estar correta. Admiro muito o jornalismo de opinião, mas, se o jornalista opinativo estiver mal informado porque o repórter descumpriu o papel dele – que é informar corretamente –, a opinião não vale nada. Se a nossa função, que é registrar o acontecimento, for mal feita, ocorre uma deformação em cadeia prejudicial demais em uma sociedade na qual todos opinam.

 

É uma preocupação com a honra alheia?

Sim. Aliás, criei o Profissão Repórter por isso. Eu passava um ano inteiro investigando antes de publicar uma denúncia, mas nunca dava um ano inteiro para o cara se defender. Me preocupo demais com o denunciado. E o Profissão Repórter permite olhares cruzados sobre um mesmo tema. Se eu não chequei tal coisa, o outro terá checado. Se vou apontar o dedo contra alguém, há outro repórter buscando compreender o lado dessa pessoa. A ideia é que tenhamos o mesmo tipo de atenção para todos os lados.

 

Como jornalista, já fez alguma bobagem e se arrependeu?

Durante cinco anos, fiz uma espécie de Profissão Repórter na TV a cabo, era um programa de meia hora. Ali, me dei conta de que a precisão que sempre busquei ao denunciar alguém, veja só, não se refletia quando eu contava histórias de bons brasileiros, histórias edificantes. Fui enganado muitas vezes e não me dei conta.

 

Por exemplo?

Uma vez, contei a história de um ex-presidiário que levava atenção às crianças da Cracolândia. Eram crianças com feridas nas pernas que nunca cicatrizavam, e esse cidadão levava uma caixinha de primeiros-socorros para lá. Mais tarde, à noite, ele levava a garotada até um ônibus, onde havia uma sopa quente para todos: as crianças terminavam a noite de barriga cheia. Uma linda história. Só que, após a matéria ir para o ar, um empresário me ligou: “Nem quero que divulgue meu nome, não faço nada em busca de reconhecimento, mas eu gasto uma fortuna por mês com a sopa e com o ônibus, e aí esse vagabundo leva o crédito?” (risos). O ex-presidiário havia me enganado.

 

Quando decidiu ser jornalista?

Não sei exatamente, mas, quando era menino, adorava escrever crônicas sobre o meu cachorro vira-lata, que queria conhecer a cidade. O Duque e eu sempre saíamos à noite para acompanhar as obras do Beira-Rio (inaugurado em 1969). Tinha um louquinho no Partenon, perto de casa, chamado Cabunco, que sempre me perguntava qual era a novidade do dia. Eu sempre contava o que via.

 

Era um repórter e não sabia.

Exatamente. Lembro que, no alto da Rua Barão do Amazonas, tinha uma favela grande. E a líder do tráfico era uma mulher que tinha um “cavalo”. Ela não tinha as funções das pernas, e o “cavalo” era um jovem que a carregava nos ombros. Vi aquilo em uma noite e fiquei impressionado. Contei tudo para o Cabunco. Nessa época, aprendi como andar à noite sem sentir medo na rua: é uma questão de postura. Se tinha alguém na calçada oposta, eu atravessava para o lado dele.

 

O mercado de jornalismo vive uma crise inegável, com demissões cada vez mais frequentes. Como resolver isso?

Não sei. Acho que, para quem produz conteúdo, a situação é boa, ainda que o perfil do mercado esteja mudando. Me parece que recebemos uma avalanche tão violenta de novas plataformas, uma coisa tão rápida que envolve redes sociais, novas linguagens e todo tipo de possibilidade de publicação, que não temos ainda uma formação específica para essas plataformas. A tendência é que, com o tempo, saibamos cada vez mais como utilizá-las. Mas não sou ninguém para dizer isso, nunca estudei o assunto.

 

Você é um caso raro de repórter que se mantém repórter há quatro décadas. Boa parte dos profissionais vira apresentador, comentarista... Como consegue se renovar?

Olha, quando apareceram propostas para mudar de vida e ganhar muito mais dinheiro, ouvi meu coração. E o coração apontava para a reportagem.