s pingos de chuva caíam sobre seu rosto. No segundo anterior, Carlena repousava a cabeça, meio sonolenta, sobre o ombro do primo que viajava a seu lado, no banco de trás do carro que rumava a Santa Catarina, madrugada adentro. Agora, estava ao relento, no meio da estrada, esperando que alguém pudesse lhe resgatar — da chuva e das ferragens. Estava presa na tragédia que ceifou seus pais e seu primo, companheiros de viagem.

 

Quando em meio a uma chuva forte — a tempestade abafava até o som do rádio — o carro aquaplanou na pista e encontrou um caminhão, selou-se um novo destino para Carlena, à época com 21 anos. Ao receber o diagnóstico de tetraplegia, ela se fechou em um casulo. Hoje, 15 anos depois, vive como borboleta.

E das coloridas. Carlena prova que a deficiência não é sinônimo de perda de feminilidade. Vaidosa, não se preocupa em usar saia e, assim, mostrar o vestígio da fratura exposta no joelho. Usa decotes sem medo de exibir a cicatriz que lhe salta da garganta, uma das marcas restantes dos oito meses em que ficou internada na UTI do Hospital São Lucas da PUCRS, em Porto Alegre. A traqueostomia foi imprescindível para voltar a respirar. Antes do acidente, nunca tinha passado por problemas de saúde. Também nunca havia convivido com qualquer pessoa que dependesse de cadeira de rodas.

O sorriso de Carlena — sua marca registrada, dizem os amigos — esmaeceu durante o período que os psicólogos definem como negação. Ela confessa: pediu para morrer muitas vezes. Como não foi atendida, travou uma briga com o espelho. Durante dois anos, evitou encarar a própria imagem.

— Imagina: sair de casa linda, caminhando, bem faceira, e voltar careca, magrela, meio torta e mexendo só a cabeça. De uma hora para outra, eu tinha um outro corpo. Eu precisava encarar o mundo desse jeito, e o pior: sem as duas pessoas mais importantes da minha vida — relembra ela.

Mas Carlena teve o que chama de "uma raiva motivadora". Por conta própria, começou as sessões de fisioterapia e recuperou parte da autoestima quando viu que alguns de seus movimentos ainda podiam ser readquiridos. Consegue, hoje, mover o tronco e gesticular enquanto conversa. E como conversa: participar de debates acalorados é um de seus maiores divertimentos.

Ao conhecer outras meninas cadeirantes, Carlena reagiu. Retomou a faculdade de Ciências Sociais e fez pós-graduação em Educação Especial. A fisioterapia deixou de ser a razão da sua vida — era, sim, um complemento, como uma pessoa que anda e encontra um tempo na agenda para frequentar a academia. Começou a sair, a paquerar, a botar seu bloco na rua.

— A vida vai te dando as respostas, mas é preciso vivê-la. Não é fácil: a sociedade ainda segrega pessoas com deficiência.

"Ah, tão bonita, pena que não anda", ouviu, certa vez. Em outra, na parada do ônibus, viu um senhor se aproximando de forma tão firme que achou que lhe roubaria a bolsa. Mas não: queria era lhe dar uma esmola.

— Jogou umas moedinhas no meu colo e disse "Deus te abençoe". Tive que rir. Faço piada porque sempre fui bem-humorada. É assim que eu encaro a vida.

Carlena não quer ser tratada como coitadinha, tampouco como super-heroína. Mas, mesmo sem querer, acaba inspirando outras pessoas. Em julho, vai lançar um livro sobre sua história de vida, um antigo sonho. Embora não acredite muito nessas coisas transcendentais, ela faz jus ao nome que recebeu dos pais. Carlena, segundo os livros esotéricos, tem um significado: "Aquela que é forte".

Forte o suficiente para encarar a mesma casa onde morava com os pais, em Gravataí, quando saiu do hospital, em junho de 2001. Não pretende sair do recanto familiar onde coleciona memórias. Com a ajuda de Cris, sua assistente 24 horas, redecorou as paredes com quadros e porta-retratos. É Cris quem auxilia Carlena a sair da cama e sentar na cadeira motorizada — e também a se emperiquitar.

"Cris, o blush. Cris, a base. Cris, agora o batom. O rímel, por favor, Cris." São alguns dos pedidos que a ajudante mais recebe. No Hospital Sarah Kubitschek, um centro de reabilitação para deficientes físicos que frequentou por dois meses, em Brasília, Carlena aprendeu a se maquiar sozinha, com um adaptador. Sente-se bonita, confiante, sensual. Em janeiro de 2012, participou de um ensaio fotográfico com Paulo, com quem namora há cinco anos, que virou até exposição, com o título Mulher, Linda e Tetra.

Os dramas comezinhos afetam Carlena tanto como acontece com quem não é cadeirante. Porque é isso que, no fim das contas, define os humanos, todos, os que andam com as pernas e os que andam com as rodas: sofrer e se recuperar.

— Nem sei conviver com pessoas que reclamam muito da vida, porque acho chato.

 

 

Nem sei conviver com pessoas que reclamam muito da vida, porque acho chato

Aquela que

é forte

Artur
Carolina Luis Fernando
Berta Germano Pablo
Carlena Gregório Vitória & Esperanza