SOBRE

AMORES

SEM

LIMITES

Já estava difícil disfarçar. Paulo havia se tornado um anexo de Shirley – e vice-versa. Não demonstravam qualquer tipo de intimidade além da simples e permanente companhia um do outro. Mesmo assim, instalou-se um murmurinho entre os colegas. Até que um deles teve a coragem de perguntar, de supetão:

– E aí? É namoro ou amizade?

Enquanto Paulo ria, Shirley desconversou:

– Não sei, não sei…

Era o início de uma história de amor que seria bastante comum se não fossem as idades, o ambiente e as histórias de vida de cada um. Ele tem 72 anos e uma dificuldade crônica de andar, sequela de um acidente vascular cerebral. Ela, aos 77, já havia sofrido um infarto, tratado uma trombose, desenvolvido um problema de coluna e chorado a morte do único filho. Suas solidões se encontraram no asilo Padre Cacique, em Porto Alegre, instituição que abriga idosos com vínculos familiares fragilizados.

Os olhos de Paulo brilharam no momento em que ele, na mesa do refeitório, mirou aquele rosto sóbrio e meio desenturmado da nova residente. Acabado o almoço, servido diariamente às 11h, ele logo foi recepcioná-la.

– Comecei com aquela coisa: seja bem-vinda, qual teu nome?, quer conhecer o asilo? Aí a gente foi pegando amizade – relembra o pai de três filhos, avô de três netos e ex-caminhoneiro, um exímio contador de histórias, algo que, aos poucos, foi encantando a aposentada.

Nenhum dos dois é viúvo. O insucesso dos casamentos anteriores criou a ponte para que se encontrassem. Shirley e Paulo eram dois desesperançados: sequer cogitavam apaixonar-se novamente. Mas, diria um poeta, o amor aparece para os distraídos – e vai se mostrando nos pequenos gestos.

Teve um dia, por exemplo, em que ela participou de um passeio até o Mercado Público. Como não conseguia parar de pensar em Paulo – estavam no início de um flerte que nem eles sabiam que se tornaria um romance –, não hesitou em lhe levar um presente.

– Ela me trouxe uma morcilha, que é um negócio que eu adoro. Se isso não é amor, nem sei o que é – conta ele, que chegou ao asilo de cadeira de rodas e, hoje, de braço dado com a amada, consegue se movimentar até sem o andador.

Paulo devolveu a Shirley a vontade de sorrir. Ela se sentia triste, sozinha, cansada. Até hoje, a depressão a pega de jeito quando ela lembra do filho, silenciado por um câncer, aos 54 anos.

– Eu tinha parado no tempo. Mas comecei a gostar da vida de um outro jeito. Até as refeições, que são coisas banais à primeira vista, hoje têm outra graça para mim. Voltei a ser jovem – diz ela.

Shirley não ouve bem. Paulo, que fala muito, é paciencioso: repete que a ama quantas vezes forem necessárias. Tentam, como acontece com qualquer casal, encontrar um ponto de equilíbrio para duas personalidades tão distintas: ela é tímida e ele comunicativo, ele é mais prático e ela mais durona,  ela gosta de filmes românticos e ele de bangue-bangue. Para eles, namorar é sinônimo de compreender.

– Gostar a gente gosta de todo mundo, mas a gente pega para amar aquela que entende o coração da gente – explica ele.

A aposentada se rendeu até às músicas gauchescas dos bailes organizados no asilo, que nunca apreciou durante a juventude, só para poder ficar de rosto colado com Paulo. Mas o que eles gostam mesmo é de se sentar lado a lado, entrelaçar as mãos e jogar conversa fora.

É que, depois de uma certa idade, ter histórias para contar e dividir é o que prevalece. Não que não tenham outros desejos. Mas a rotina do asilo não permite nem um cochilo na mesma cama: os dormitórios feminino e masculino são separados e não são permitidas visitas. Assim, o namoro entre os dois é feito de puro afeto. Comedido, é claro.

– Na hora de a gente se separar, lá pelas oito da noite, a gente olha pra lá, olha pra cá, vê se não tem ninguém olhando e se dá um beijinho na boca. Bem rápido – conta Shirley.

Os dois têm, nos seus respectivos quartos, álbuns idênticos de fotografias suas. Quando sentem falta um do outro, basta folheá-los para amenizar a saudade. E dormir logo, para que o amanhecer não demore muito.

ANDRÉ

& DAYSI

O AMOR NÃO ESCOLHE ONDE