Como eles enfrentam a violência

PARTE 3

Nova Lima, onde a ressocialização acontece

A série que apresenta alternativas à violência no Rio Grande do Sul se encerra com uma alternativa para transformar o sistema carcerário, fonte inesgotável de insegurança pública no Estado. Município da região metropolitana de Belo Horizonte (MG) tem cadeia onde detentos controlam os apenados. Eles têm as chaves da prisão. Estudam, trabalham e conseguem a ressocialização, fato que dificilmente se reprisa em solo gaúcho.

Nos últimos nove meses, Rafael Henrique Oliveira Carvalho, 23 anos, concluiu cursos profissionalizantes nos mais variados ramos, em todas as áreas da construção civil, como auxiliar de cozinha, vendedor e até para atuar em lavanderia hospitalar. Também conseguiu cursar o 2º ano do Ensino Médio e, à distância, tem aulas de espanhol. Você empregaria Carvalho? Pois todo esse aprendizado ele tem conseguido dentro da cadeia.

Ele é quem abre as grades da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac), em Nova Lima, região metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais, para a reportagem. É um dos recuperandos, forma como os detentos são chamados nas APACs, e está há nove meses na casa cumprindo pena em regime semiaberto. Talvez já esteja de volta às ruas no final do ano. E tem uma certeza: não haverá recaída.

— Aqui dentro tive oportunidades, fui tratado como gente, chamado pelo nome, sem algema. No presídio, a gente fica como em um porão, sem dignidade. Sei que cometi um erro e preciso pagar por ele. Mas a prisão serve para se recuperar desse erro — diz.

Antes de chegar na Apac, Carvalho passou 11 meses no presídio da cidade. Assim como todos os 80 homens e duas mulheres que atualmente ocupam a recém inaugurada ala feminina da Apac Nova Lima, evita falar qual crime cometeu para estar na prisão. É que a frase estampada na entrada da Apaca é tratada como lema lá dentro: "Aqui entra o homem, o delito fica na rua".

Criada a partir de experiência do advogado Mário Ottoboni, nos anos 1970, em São José dos Campos (SP), as Apacs foram encampadas pelo governo de Minas Gerais a partir de 2006. Em Nova Lima, foi criada em 2003 por iniciativa do Poder Judiciário e construída a partir de doações. Hoje, existem 51 unidades em todo o Brasil, 40 delas no estado mineiro.

O grande mérito dessa iniciativa é reduzir a reincidência criminal — e, por consequência, também o custo do sistema penitenciário. Entre as Apacs, o índice de reincidência é de 20% — em Nova Lima, é em torno de 15% —, enquanto, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no sistema tradicional a reincidência chega a 80%. Como acontece no Rio Grande do Sul.

 

 

Trabalho e produção inclusos na rotina

 

Não há carcereiros na Apac, as chaves de cada setor são guardadas pelos próprios presos. Praticamente todos os serviços internos, incluindo obras estruturais, são realizados pelos próprios recuperandos.

— É questão de conquista da confiança, de mérito e de responsabilidades que eles precisam ter com eles e com os outros recuperandos — explica a presidente da Apac Nova Lima, Sandra Miroslawa Tibo.

Ali, todos trabalham e estudam. É obrigação que se transforma em satisfação. Em cada setor, há um quadro com o "recuperando do mês", os destaques daquele período e também os deméritos de cada mês. Tudo é pontuado e avaliado.

Carvalho, por exemplo, atualmente trabalha na padaria. Dali, saem até 6 mil pães por dia. Além do alimento para os recuperandos, a produção é vendida em feiras da cidade, creches e em canteiros de obras para os funcionários da prefeitura local.

A cada 12 horas de curso ou trabalho, um dia de pena é reduzido. A leitura de livros, que são oferecidos na biblioteca própria, com a apresentação de resumos, garante até quatro dias de remissão. No sistema penitenciário comum, somente 10% dos detentos estudam e 16% trabalham.

A receita das Apacs

Ressocialização do preso — Unidades pequenas, com capacidade máxima para 150 recuperandos, o tratamento ao apenado é individualizado. Ele é tratado pelo nome e tem suas atribuições próprias para que a casa funcione. Todos têm atividades enquanto estão cumprindo pena.

Trabalho e educação — Trabalhar e estudar é obrigação nas Apacs. A probabilidade de alguém entrar no crime reduz 10% a cada ano, a partir do 6º ano do Ensino Fundamental, que a pessoa consegue estudar.

Participação da comunidade e da família — Enquanto em prisão comum a comunidade se distancia, em Apac, a participação é fundamental para garantir a recuperação do apenado. É da comunidade que surgirão as oportunidades de emprego, por exemplo, depois de cumprir a pena. As famílias participam diretamente do cumprimento da sentença, diferente do que acontece nas prisões.

COMO FUNCIONA

São, atualmente, 3,1 mil detentos em Apacs. São abertas a condenados por qualquer delito e em qualquer regime (fechado, semiaberto e aberto). Basta ao apenado enviar carta à Vara de Execuções informando o seu interesse em cumprir pena nesta modalidade, se submetendo às regras da casa e comprovando seu vínculo com a comarca onde exista uma Apac. Passa, então, por avaliação minuciosa desde o seu comportamento na prisão — qualquer falta impede a mudança — até o seu perfil. Atualmente há longa fila de espera, que chega a seis meses, para essas transferências em Minas Gerais.

ENTENDA

A primeira experiência de Associação de Proteção e Assistência aos Condenados foi criada em 1972, em São José dos Campos, interior de São Paulo. Mas só no final dos anos 1990 a experiência foi retomada e passou a se multiplicar e entrar na agenda do Poder Judiciário e dos governos.

Atualmente existem 51 unidades no Brasil, sendo 40 em Minas Gerais. No papel, o Rio Grande do Sul já tem a constituição da Apac Canoas, que deveria funcionar no bairro Guajuviras, mas por falta de recursos ainda não foi construída.

Além do Brasil, o método é aplicado em Belize, Bulgária, Chile, Colômbia, Costa Rica, Alemanha, Hungria, Itália, Lituânia, Cingapura e Estados Unidos como proposta da Prison Fellowship International, entidade consultora da ONU para assuntos penitenciários.

As 12 regras da Apac

1 — Participação da comunidade

2 — Recuperando ajudando recuperando

3 — Trabalho

4 — Religião

5 — Assistência jurídica

6 — Assistência em saúde

7 — Valorização humana

8 — Família

9 — Voluntário e sua formação

10 — Centro de Reintegração Social

11 — Mérito

12 — Jornada da libertação com Cristo

Realidade brasileira e gaúcha

O Brasil enfrenta hoje grave crise no sistema carcerário. Há déficit estimado de 200 mil vagas em prisões no país. Com acréscimo preocupante, que torna esse sistema ainda mais caro para o poder público. O índice de reincidência chega a 80%. E criar vaga em prisões custa pelo menos R$ 60 mil. Manter este preso a cada mês, não custa menos de R$ 3 mil. No ambiente em que apenas 10% dos detentos estudam e 16% trabalham, a ressocialização é inexistente.

No Rio Grande do Sul, o déficit chega a 10 mil vagas que, neste ano, chegaram ao cúmulo do retorno de presos às delegacias. O índice de reincidência no Estado está entre os maiores do país.

Nas Apacs, o índice de reincidência não passa dos 20% e a criação de vaga nesse sistema é avaliada em R$ 27 mil. A manutenção desse detento é semelhante ao sistema comum, mas a economia vem na menor possibilidade de reincidência.

Desde 2013 Canoas tem formalizada a criação de uma Apac. Ainda não saiu do papel.

As regras de uma prisão diferente

Disciplina e religião estão no centro da recuperação dos detentos. Em cada cela, dormem quatro recuperandos. Todos os dias, às 7h, a direção passa por cada espaço para checar se as camas estão perfeitamente arrumadas e se a cela está limpa. Se essa ordem não é cumprida, é uma falta.

Todos os dias, os recuperandos também têm os períodos de oração. Faz parte da avaliação deles a dedicação a essa obrigação espiritual. Em cada setor da Apac há uma pequena capela.

— O resultado dessa dedicação é a transformação deles. São raras as vezes em que um recuperando não se adapta e volta para a prisão comum. Aqui, aprende disciplina, respeito e confiança. Se torna protagonista da ressocialização dele — estima a presidente da APAC Nova Lima, Sandra Miroslawa Tibo.

A dedicação tem suas compensações. Na Apac, a visita íntima não é só uma visita. Há uma suíte, com direito a ar condicionado, onde o recuperando pode receber a companheira e passar a noite toda com ela. O luxo só é permitido depois de certo período na casa e com a conquista de méritos pelo trabalho e as atividades diárias.

 

Em 13 anos, apenas uma fuga registrada

 

Não há grades, e os muros são como os de uma casa. Ainda assim, em 13 anos, a Apac Nova Lima registrou apenas uma fuga. Foi no segundo ano de existência, na véspera do Natal. Um grupo de presos, descontente por não terem recebido a saída para visitarem as famílias, fugiu. Poderia representar o insucesso da iniciativa, mas o efeito foi o contrário.

— Aí sentimos a importância para as famílias deste método de ressocialização real que temos aqui — conta o juiz Juarez Moraes Azevedo, principal incentivador da abertura dessa unidade.

Isso porque, dias depois, alguns detentos voltaram. Outros, foram levados pelos familiares. Não foi necessária a busca de nenhum dos recuperandos. Na verdade, desde que a primeira Apac foi criada no país, nunca se registrou nenhum assassinato ou rebelião.

— É muito mais econômico para o poder público, porque quem passa por aqui tem a sua vida transformada mesmo. Ele não vai voltar ao crime e, portanto, não dará esse custo novamente ao Estado — afirma o juiz.

"Ninguém te obriga a ficar aqui, e é cheio de regras para seguir. É pela vontade de se recuperar mesmo que a gente fica, e a família conta muito nessas horas. Quando a minha família chegou aqui a primeira vez, choravam com o que viram. Porque não é comum você ser tratado pelo nome e não como um número."

Franklin Harlley Miranda, 37 anos

Condenado até 2020

APACs não desafogam as prisões

Apesar dos bons resultados na diminuição da reincidência de criminosos, as Apacs não representam solução, ao menos a curto prazo, para a superlotação do sistema prisional. Justamente em Minas Gerais, onde o método virou política pública, está um dos maiores déficits de vagas no sistema. Conforme o governo estadual, faltam 26 mil vagas atualmente. No RS, o déficit é de cerca de 10 mil vagas.

— As APACs não são adequadas para muitos presos. Precisamos saber o nome de cada um. Não é adequado tratar esse modelo como solução imediata para desafogar uma grande cidade — diz o juiz Juarez Azevedo.

São Paulo também experimentou a multiplicação de vagas, com as criações dos Centros de Detenção Provisória. Foram criados 41 no estado. Pelo menos 10 deles estão superlotados.

 

Solução a longo prazo

 

Em uma das estruturas construídas pelos próprios recuperandos de Nova Lima fica uma colorida sala de aula que é o motivo do mais recente orgulho entre eles. Ali, funciona uma unidade da Uaitec, a universidade com cursos à distância de Minas Gerais. Neste ano, a APAC terá seus três primeiros formandos.

O Rio Grande do Sul já poderia ter conquista semelhante. Em 2013 foi criada, no papel, a Apac de Canoas. Um terreno foi doado pela prefeitura no bairro Guajuviras. No entanto, três anos depois, ainda não há recursos para construir a unidade. Para o juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, que é um dos entusiastas da ideia no Estado, o investimento em educação e emprego são a melhor forma de conseguir a redução da população carcerária a médio e longo prazo.

— Hoje não temos ressocialização. Não é preciso mexer na lei penal, mas fazer plano para mudar o atual sistema, que custa caro, não protege a vitima e dá lucro aos criminosos — diz.