A General Paranhos era uma rua estreita e sinistra, quase um beco, que subia da Andrade Neves até a Duque de Caxias e depois mergulhava em direção à Coronel Genuíno. Recheada de cortiços e bodegas, refúgio de desocupados, era famosa por concentrar prostituição e crimes. Corcoveava o ponto mais elevado do Centro, um pico que bondes e automóveis não tinham força para transpor. Para deslocar pessoas e mercadorias da região do Mercado Público até o outro lado do morro, a zona da Ponte dos Açorianos, era necessário dar toda a volta pela beira do Guaíba, um problema que remontava aos primórdios da povoação, ainda no século 18. A General Paranhos era o símbolo de uma Porto Alegre atrasada, antiquada e atravancada por problemas sociais.

Na década de 1920, a cidade se dispôs a enfrentar o obstáculo. Quarteirões inteiros foram demolidos e explodiu-se o cocuruto a dinamite, abrindo uma imensa passagem no meio da elevação. No local onde corria a estreita e mal afamada Paranhos, abriu-se uma larga avenida, a Borges de Medeiros, que permitia o acesso direto da zona sul à área central. Coroando o empreendimento levado a cabo por uma construtora holandesa, o vão aberto no morro foi preenchido com uma imponente estrutura em estilo neoclássico, o Viaduto Otávio Rocha, dotado de escadarias, parapeitos, arcadas e lojas. Inaugurada em 1932, consistia na obra de engenharia mais arrojada já realizada na cidade, insuperada até os dias atuais. O viaduto era o símbolo de uma Porto Alegre moderna, próspera e vibrante, orgulhosa de si mesma.

Durante décadas, foi um cartão-postal incontornável, cenário de filmes, de ensaios fotográficos e de comerciais de grandes marcas nacionais e internacionais. Em 2014, forneceu a imagem mais icônica da realização da Copa do Mundo em Porto Alegre: a de uma multidão de torcedores da Holanda emoldurados por sua estrutura, com roupas e bandeiras cor de laranja, a caminho do Estádio Beira-Rio. A foto, uma celebração de alegria e plasticidade, correu o mundo.

Foi como um último suspiro.

Transcorridos apenas dois anos, o viaduto está de volta aos dias de General Paranhos. Vítima de abandono, desleixo e degradação, começou a concentrar moradores de rua a partir do verão passado e rapidamente transformou-se em acampamento de indigentes, drogados e doentes mentais. De local turístico, as arcadas viraram teto para dezenas de desvalidos que ali montaram barracas ou levantaram tendas feitas de tábuas e de papelão. Uma ao lado da outra, elas se estendem ao longo de toda a construção, dos dois lados da Borges de Medeiros, oferecendo um cenário desolador para as pessoas que ainda se arriscam a circular por ali. O viaduto tornou-se símbolo de uma Porto Alegre inerte, suja, descuidada, repleta de miseráveis vivendo em suas ruas. Símbolo de uma cidade que não é capaz sequer de cuidar de seus símbolos.

O Viaduto Otávio Rocha na época de sua construção, em 1932

Um mar de holandeses colore a Borges de Medeiros em dia de jogo de Copa

São cerca de 30 espaços ocupados, alguns com somente um morador, outros compartilhados por casais ou amigos. Os mais simples consistem apenas em um colchonete encostado à parede, mas a maioria é bem mais incrementada - como não houve resistência das autoridades, os inquilinos do viaduto sentiram-se à vontade para ampliar seus domínios.

Em geral, cada lar tem um pequeno aposento de tábuas, com um teto feito de lona preta ou outro material. No interior, todos estão dotados de colchões. À porta de um, alinha-se com capricho um par de pantufas, as pontas voltadas para fora. Em várias dessas moradias, um pátio foi demarcado na calçada, e nesses quintais é possível contemplar um tapete com arabescos, uma poltrona, estantes feitas com caixotes e até uma mesa improvisada a partir de uma caixa de papelão, coberta por uma toalha cor de rosa e ornamentada por um vaso de flor e um porta-retratos sem foto alguma.

"Fui primeiro para albergue. Mas não dá para ficar muito. A gente enjoa. Então vim morar na rua. Já estive em vários lugares. Para que vou caminhar toda a distância até o albergue, se tenho um colchão aqui? Aqui é bom porque tem esses padrinhos que vêm durante a noite e trazem comida. E todo mundo me chama de tia e me respeita."

 

Marli Pires Pereira l moradora de rua

Estendida em um dos colchões, numa manhã recente, encontrava-se uma mulher de 52 anos que se apresentou como Marli Pires Pereira. Antes moradora de uma casa alugada na Vila Assunção, ela contou já ter trabalhado como frentista, faxineira e pintora de paredes. Nesta última atividade, caiu de um andaime, não pôde mais trabalhar e começou a receber um auxílio mensal de cerca de R$ 1 mil do INSS. Dois anos atrás, relata, o benefício foi cortado e ela não conseguiu mais pagar as contas.

- Entreguei tudo o que eu tinha. Fui primeiro para albergue. Mas não dá para ficar muito. A gente enjoa. Então vim morar na rua. Já estive em vários lugares. Para que vou caminhar toda a distância até o albergue, se tenho um colchão aqui? - diz.

Neste ano, na Avenida João Pessoa, Marli sofreu um atropelamento e esfacelou a mesma perna que já quebrara no acidente anterior. Alimenta a expectativa de receber uma indenização do DPVAT e de usar o dinheiro para comprar uma carroça de cachorro-quente. Enquanto espera, remói preocupações com os netos, sobre os quais obtém notícias em telefonemas para uma das filhas:

- Queria que eles viessem me ver, mas ela não traz. Antes minha filha vinha me visitar, mas não vem mais. Ela fica com vergonha.

Marli gosta de ficar no viaduto porque, além de o lugar oferecer um teto contra as intempéries, está dotado de banheiros públicos. Outros fatores são as pessoas e entidades que comparecem todos os dias para doar alimentos, roupas, cobertores e colchões:

- Aqui é bom porque tem esses padrinhos que vêm durante a noite e trazem comida. E além disso eu me dou com muitos andarilhos aqui. Todo mundo me chama de tia e me respeita.

"Fazem xixi, fazem sexo e se drogam no viaduto. À noite, o barulho é terrível, porque eles dormem durante o dia. Tem assaltos. Quem é que sofre com todos esses problemas? Os moradores dos edifícios próximos. Estamos cansados. Com o Mercado Público, o viaduto é o símbolo mais importante da cidade. Precisamos de uma solução o mais rápido possível."

 

Ana Maria Lenz l presidente da Associação Comunitária do Centro Histórico

Enquanto moradores de rua como Marli sentem-se à vontade com as condições que encontram no viaduto e veem com naturalidade habitar um espaço público, as pessoas que vivem nos prédios e que administram negócios no entorno exasperam-se com o impacto que a chegada dos sem-teto ao local teve em seu dia a dia. Presidente da Associação Comunitária do Centro Histórico, Ana Maria Lenz mora em um prédio junto ao viaduto e se diz estarrecida. Mostra-se preocupada com a insegurança, com a sujeira, com o mau cheiro, com o consumo de drogas e com as gritarias na madrugada.

- Fazem xixi, fazem sexo e se drogam no viaduto. À noite, o barulho é terrível, porque eles dormem durante o dia. Tem assaltos. Quem é que sofre com todos esses problemas? Os moradores dos edifícios próximos. Estamos cansados - desabafa. - Com o Mercado Público, o viaduto é o símbolo mais importante de Porto Alegre. Precisamos de uma solução o mais rápido possível.

O relato de Ana Maria é similar ao de Adacir Flores, que tem uma loja de livros usados na parte inferior da estrutura e lidera a Associação Representativa e Cultural dos Comerciantes do Viaduto Otávio Rocha (Arccov). Mas ele cita também o prejuízo que a ocupação do local por moradores de rua trouxe para os concessionários dos espaços comerciais. Alguns estabelecimentos já foram embora, diz, caso de uma barbearia e de uma loja de carimbos. Os que continuam em atuação viram o movimento de fregueses e o faturamento despencarem, a ponto de encontrarem dificuldades para cobrir os custos de seguir de portas abertas.

- A situação não é complicada, é crítica. Isso aqui virou uma cracolândia. Consomem e traficam direto. Tem também delinquentes que foram corridos das vilas. Mais para baixo fica uma mulher que é doente mental, transa com todo mundo e lava os genitais na frente dos carros, com0 se estivesse lavando as mãos. É sexo, drogas e rok'n'roll - descreve Flores.

"Se fosse designado apenas um agente da Guarda Municipal para ficar lá, considerando que é um local importante no imaginário de Porto Alegre, acredito que sairia muito mais barato do que a cada cinco anos renovar obras. A falta de um vigilante significa que não há alguém que diga: 'Aqui tu não podes ficar' ou 'Se quiseres ficar, fica, mas sem os teus pertences'."

 

Ana Marchezan l promotora do Ministério Público

Os sem-abrigo instalaram-se no viaduto depois de um longo período de degradação da estrutura. Duas décadas atrás, a prefeitura teve de assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Estadual, no qual se comprometeu a realizar obras de recuperação. Foi anunciada uma intervenção profunda, abrangendo reforma de passeios, pisos, revestimentos, esquadrias e instalações hidráulica e elétrica, além de reparos na estrutura. Os trabalhos se estenderam de 1997 até 2001, quando o viaduto foi reinaugurado com pompa.

Mas os problemas reapareceram quase de imediato. Passados menos de dois anos, infiltrações e rachaduras voltavam a ser vistas. Sujeira, mau cheiro e luminárias quebradas completavam o cenário. Em 2004, o viaduto já estava completamente pichado. Foram as pichações que motivaram um novo inquérito do Ministério Público, que acabou constatando também as infiltrações e problemas estruturais.

A Promotoria de Defesa do Meio Ambiente apresentou então uma ação civil pública para exigir que a prefeitura providenciasse nova obra de restauro e garantisse a conservação do local. Em 2011, em primeira instância, a Justiça acatou a argumentação dos promotores e fixou um prazo de nove meses para apresentação de um projeto. Em caso de atraso, a prefeitura teria de pagar multa de R$ 500 por dia. O processo levou o município a encaminhar uma licitação para o projeto. Ela seguiu adiante, mas um recurso da prefeitura saiu vitorioso no Tribunal de Justiça, em 2012, suspendendo a decisão anterior. Com isso, a obrigação de fazer a obra caiu. O caso está até hoje no Superior Tribunal de Justiça.

Outras exigências da ação do MP são a colocação de câmeras e a existência de vigilância 24 horas no viaduto. A promotora Ana Marchezan observa:

- A restauração não resolveria aquela coisa horrível dos moradores de rua, mas o outro pedido que fizemos, de vigilância permanente, talvez ajudasse. Se fosse designado apenas um agente da Guarda Municipal para ficar lá, considerando que é a principal obra de arte viária da nossa cidade e que é um local muito importante no imaginário de Porto Alegre, acredito que sairia muito mais barato do que a cada cinco anos ter de renovar obras e obras. O problema é que, como não temos manutenção e vigilância, tudo se deteriora. A falta de um vigilante lá significa que não há alguém que diga: "Aqui tu não podes ficar" ou "Se quiseres ficar, fica, mas sem os teus pertences".

"Fica um contraste muito triste. Ali no pub, o pessoal é mais ligado à cultura, à intelectualidade, à comunicação. Parece assim: lá embaixo está a ralé, aqui em cima está a nata. Não sei se a questão econômica pegou e botou mais gente nas ruas, mas acho que foi principalmente o descaso, a falta de fiscalização."

 

Renato Pereira Jr. l Dono do Armazém Porto Alegre

No Paço Municipal, o encarregado de levar adiante a recuperação do viaduto foi o vice-prefeito Sebastião Melo, candidato derrotado nas eleições deste ano. Em 2013, a obra chegou a estar listada entre as que poderiam receber verbas federais do PAC Cidades Históricas, mas como as diferentes secretarias municipais não chegaram a um acordo sobre o projeto, essa possibilidade não foi adiante. Hoje, o projeto está finalizado (prevê correção de problemas de infiltração, sala de monitoramento, reabertura de escadarias e banheiros que estão fechados, iluminação no pavimento e pintura antipichação), mas a prefeitura alega estar impossibilitada de realizá-lo por falta de dinheiro. O custo é de R$ 33 milhões. Comerciantes e moradores reivindicaram assumir o empreendimento, buscando recursos via leis de incentivo à cultura.

- Não existe um viaduto com a beleza do Otávio Rocha. É uma obra única no mundo. E o projeto está pronto. Acredito ter sido o abandono completo que colaborou para os moradores de rua se instalarem lá, porque não existe nenhum cuidado, nenhuma fiscalização. O poder público não toma nenhuma atitude. Temos cobrado que se faça alguma coisa, mas a gente sabe que a Fasc (Fundação de Assistência Social e Cidadania) não toma nenhuma medida, não tem nenhuma política. Enquanto isso, as pessoas vão ficando por lá. Virou um albergue, o albergue do Viaduto Otávio Rocha - critica Felisberto Luisi, assessor jurídico da Arccov.

A situação do viaduto encontra paralelo no abandono que, nos últimos anos, afetou muitos dos símbolos da cidade: o Mercado Público até hoje não recuperado de um incêndio ocorrido em 2013, a Rua da Praia esburacada de uma ponta à outra, o Cais Mauá fechado e sem obras à vista, os monumentos pichados de alto a baixo, as estátuas e bustos roubados sob o olhar indiferente da prefeitura e depois substituídos por réplicas de plástico.

No caso do viaduto, o abandono se manifesta até em questões básicas de manutenção. Renato Pereira Jr., proprietário do Armazém Porto Alegre, um pub instalado há quatro anos nas escadarias do complexo, coleciona protocolos pedindo que a prefeitura tome providências para recolocar em funcionamento as luminárias dos parapeitos. Recentemente, contabilizou nove lâmpadas fora de operação no trecho. Até o dia 6 de dezembro, seguiam não funcionando.

- A iluminação é uma das poucas coisas que consigo cuidar e alertar a prefeitura. Aciono o 156 (telefone do município para solitação de serviços), faço todo o processo. É um local de fluxo de pedestres, gente que vem do trabalho. A escuridão facilita os furtos, que não são poucos. Mas a gente ficou sem prefeitura o tempo todo. Não entendo o que aconteceu. Antes do pub, morei 10 anos em um prédio da outra escadaria e nunca tinha visto o viaduto em situação tão complicada. Nunca vi tanto abandono. Piorou e foi num ritmo muito rápido, especialmente neste ano - lamenta Pereira.

Segundo o empresário, os primeiros sinais de ocupação do espaço pelos sem-teto apareceram no ano passado, mas ainda de forma tímida _ um ou outro colchão instalado sob as arcadas. Com o tempo, do seu posto privilegiado no alto do viaduto, viu a aglomeração de gente fermentar e os colchões serem substituídos por barracas. Já testemunhou de tudo no local: uso de drogas, roubo e até sessão de exorcismo. Afirma que a degradação do viaduto causa espanto entre os frequentadores do seu bar:

- Fica um contraste muito triste. Ali no pub, o pessoal é mais ligado à cultura, à intelectualidade, à comunicação. Parece assim: lá embaixo está a ralé, aqui em cima está a nata. Não sei se a questão econômica pegou e botou mais gente nas ruas, mas acho que foi principalmente o descaso, a falta de fiscalização, tanto da estrutura quanto do ambiente. Vejo o viaduto como um problema e uma oportunidade, a oportunidade de resgatar um ponto turístico de uma cidade que carece de opções turísticas. Muitos chegam ao Hotel Everest e em outros hotéis dali e ficam encantados com o viaduto, mas também espantados com o abandono - observa.

O secretário municipal de Turismo, Luiz Fernando Moraes, confirma que a situação não é nada confortável, do ponto de vista da promoção da cidade como um local que merece ser visitado. Entende que falta uma articulação das ações referentes ao viaduto, hoje distribuídas entre vários órgãos _ o DMLU cuida da limpeza, a Smic responde pelas lojas, e assim por diante. Moraes ressalta que há vários outros locais emblemáticos da cidade que apresentam condições similares:

- Eu diria que o Viaduto Otávio Rocha e vários outros lugares são hoje espaços que dificultam o trabalho do turismo. Como é que as pessoas estão levando isso da cidade, qual é o impacto negativo que isso gera, é difícil de avaliar neste momento. Mas segurança, limpeza e conservação são questões fundamentais para o turismo. A questão de moradores de rua espalhados por todo o Centro, morando em praças, é delicada. A gente compreende que há um problema social envolvido, mas o problema social existe no mundo inteiro e não é no mundo inteiro que a gente vê morador acampando nas ruas da cidade.

"Não existe nenhuma política no sentido de buscar, conversar com os moradores de rua, fazer um diagnóstico. Se cada vez tem mais gente no local, é porque estão fazendo a coisa errado. Deviam ter albergues abertos 24 horas. Mas não, o albergue fecha às 19h. São políticas feitas por pessoas que não conhecem a realidade do morador de rua."

 

Felisberto Luisi l Assessor jurídico da Arccov

Moradores, comerciantes do entorno e outros interessados reconhecem que a questão dos sem-teto é um problema social complicado, ressaltam que os direitos devem ser respeitados e que a solução não se resume a apenas expulsar as pessoas de lá, sem oferecer-lhes algum tipo de alternativa. Mas com frequência entendem que a Fasc, o órgão municipal encarregado de lidar com a população de rua, está longe de dar uma resposta satisfatória. Comandado pelo PP, da coligação que elegeu o futuro prefeito Nelson Marchezan Júnior, o órgão municipal tem tido uma gestão envolta em polêmicas.

Em outubro, o Ministério Público deflagrou uma operação na fundação, motivada por suspeitas de corrupção, estelionato, crimes licitatórios, improbidade administrativa e lavagem de dinheiro. Mandados de busca e apreensão foram cumpridos não só na sede da Fasc, mas também na residência do seu presidente, Marcelo Machado Soares, e de outros dirigentes.

Ao mesmo tempo, a Fasc foi alvo de críticas por não ter sequer um levantamento atualizado a respeito dos sem-teto. Eles pareceram se multiplicar nos últimos anos, mas o órgão público continuou a trabalhar com um censo realizado em 2011, que identificou 1.347 pessoas na rua. A fundação deveria ter feito uma nova pesquisa no ano passado, mas ela foi adiada sucessivas vezes. A promessa era de que um novo levantamento seria publicado no início deste mês de dezembro.

Entre os que convivem com a concentração de moradores de rua no Viaduto Otávio Rocha, não faltam críticas à Fasc. Eles reclamam da falta de ações efetivas para resolver o problema e de um sistema de albergues que não contempla as necessidades do público-alvo – a entrada só é permitida até as 19h, por exemplo. E as vagas atenderiam menos de um terço do número de moradores de rua com o que o órgão trabalha: são 120 no Albergue Municipal (no bairro Floresta), 145 no Felipe Diehl (na Azenha) e 90 no Dias da Cruz (Praça Navegantes), totalizando 355.

- Não existe nenhuma política no sentido de buscar, conversar com os moradores de rua, fazer um diagnóstico de por que estão na rua. Se cada vez tem mais gente no local, é porque estão fazendo a coisa errado. Não existe nenhum resultado. Até porque o que oferecem para o morador de rua, o morador de rua não quer. É uma incompetência geral. Falta visão do que é assistência social. Deviam ter albergues abertos 24 horas, para que as pessoas entrassem ali, tomassem banho e depois, se quisessem fazer suas coisas, saíssem e entrassem. Mas não, o albergue fecha às 19h. Aí não tem como. São políticas feitas por pessoas que não conhecem a realidade do morador de rua.

"Tem gente que nos odeia, nos acusa de manter as pessoas na rua. Sabe o que ia acontecer se não houvesse gente para dar comida e dar banho? Teríamos uma tropa de famintos assaltando em tudo que é buraco da cidade. Simples assim. Até parece que estamos num mundo cor de rosa, com vaga (em albergue) para todo mundo."

 

Letícia Andrade l Banho Solidário

Os vizinhos do entorno e os comerciantes acreditam que o viaduto se tornou um chamariz pelas comodidades incomparáveis que oferece. E a responsabilidade por isso, dizem, não é apenas da Fasc. Porque não se trata apenas do fato de os sem-abrigo não encontrarem resistência para ocupar o espaço e de contarem ali com teto, banheiro e iluminação.

- Os caras recebem alimentação diária aqui. Toda noite, são duas, três entidades que vêm. Uma vem às 22h, outra vem à meia-noite, outra vem de madrugada. No outro dia, um cara desceu de um carro e entregou seis quentinhas de isopor para uma mulher que fica ali. Como é que essas pessoas vão sair desse jeito? Não vão. Enquanto houver essas entidades fornecendo alimentação, vão ficar aqui _ reclama Adacir Flores.

Além das pessoas que levam colchões, cobertores, roupas e comida, moradores e lojistas se insurgiram contra a organização Banho Solidário, uma entidade que se mobilizou via crowdfunding para oferecer ducha quente às pessoas que estão nas ruas. O grupo conta com um reboque sobre o qual instalou um contêiner dotado de dois banheiros com junker. Durante alguns meses, o local de atuação era a Borges de Medeiros.

- O que esse grupo faz é um desrespeito com moradores e proprietários que pagam impostos altíssimos. A Associação dos Moradores quer que a doação de alimentos, de cobertores, de roupas e o Banho Solidário sejam erradicados o quanto antes. Por causa dessa caridade, eles não querem ir para os albergues. Não precisam _ critica Ana Maria Lenz.

Diante dessa oposição, e também para impedir que os sem-teto se acomodem, os responsáveis pelo Banho Solidário dizem ter deixado a área do viaduto, depois de promover uma dezena de ações por lá. Ultimamente, têm atuado junto à catedral. Mesmo assim, Letícia Andrade, uma das fundadoras, apresenta uma visão diferente daquela de seus opositores no que diz respeito ao papel desempenhado pela entidade.

Ela observa que, além de não atenderem às necessidades reais dos moradores de rua, os albergues estão subdimensionados em Porto Alegre. Diante da deficiência do poder público, entidades como o Banho Solidário seriam fundamentais:

- A Fasc diz que tem 1,4 mil moradores recenseados, mas a estimativa é que já são 3 mil. E tem só 450 vagas nos albergues. Querem que eles saiam das ruas. Mas tu vais pegar essas pessoas e botar onde, se não tem vaga? Quando a gente estava lá no viaduto, dávamos banho e eles ficavam mais limpos, mais pacíficos. Tem gente que nos odeia, nos acusa de manter as pessoas na rua. Mas não é verdade. Sabe o que ia acontecer se não houvesse gente para dar comida e dar banho? Teríamos uma tropa de famintos assaltando em tudo que é buraco da cidade. Simples assim. Até parece que estamos num mundo cor de rosa, com vaga para todo mundo.

Letícia afirma que, ao contrário do que dizem os críticos, grupos como o Banho Solidário são das poucas iniciativas que conseguem tirar pessoas da situação de rua em Porto Alegre _ ela cita alguns casos de sem-teto que foram atendidos, recuperaram a autoestima, saíram da rua e depois agradeceram à organização por ter servido de motor para a mudança.

- Nossa ideia não é caridade, é inclusão social. Morador de rua não é ladrão. Porque ladrão tem dinheiro para tomar banho. Morador de rua é o fim da cadeia alimentar. É o que está tão drogado, tão perdido, que não tem nem percepção de banho. Nossa proposta é que a pessoa chega, ganha um lanche, toma um banho decente, faz a barba, recebe uma roupa limpa. Ela se humaniza, ganha dignidade, desperta. Quando se olha no espelho, pensa: "Tenho de mudar de vida". Depois do banho, eles vêm dizer que querem emprego, querem fazer o segundo grau. Aí vão na prefeitura e não tem vaga. Eles não têm ninguém por eles. Estão completamente abandonados. Nós conseguimos tirar mais gente da rua do que a própria Fasc _ afirma Letícia.

"Deixa eu ser bem sincero. A gente está num primeiro momento fazendo um diagnóstico das contas públicas. Nosso olhar está fechado em receita-despesa, e não estamos ainda de olho em questões específicas. Ainda não está no nosso horizonte isso. É uma questão que não podemos analisar."

 

Gustavo Paim l vice-prefeito eleito

Apesar do agravamento do problema e da situação vergonhosa no viaduto, a recente campanha eleitoral chamou a atenção por ignorar a questão dos moradores de rua. Eleito Nelson Marchezan para a prefeitura, as perspectivas são incertas _ não há nenhuma proposta para o local. O futuro vice-prefeito, Gustavo Paim, que trabalha na montagem do governo, diz que a equipe não se debruçou sobre o assunto.

- Deixa eu ser bem sincero. A gente está num primeiro momento fazendo um diagnóstico das contas públicas. Nosso olhar está fechado em receita-despesa, e não estamos ainda de olho em questões específicas. Ainda não está no nosso horizonte isso. É uma questão que não podemos analisar.

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