Em Ramadi, a bandeira do Estado islâmico tremula a dois quilômetros

Cerca de 600 bombas da coalizão liderada pelos EUA foram lançadas sobre Ramadi, distante 119 quilômetros de Bagdá, enquanto tropas iraquianas avançavam por terra. Parece que os prédios foram esmagados por um gigante

Fica a 119 quilômetros de Bagdá um dos principais fronts do exército iraquiano contra o Estado Islâmico: Ramadi. É para lá que eu vou no sábado, 14 de maio.

A cidade está controlada pelas tropas do governo. Sua retomada, em dezembro, após oito meses de jugo pelos extremistas, é até agora o maior golpe contra o EI no Iraque. Há uma segurança relativa, alguns poucos civis nas ruas, carros, caminhões. Mas há confrontos diários nos arredores, e as posições no campo de batalha podem mudar a cada momento.

Ramadi está cercada. Para ir de Bagdá, só de helicóptero. As estradas estão apinhadas de minas terrestres. No caminho, há Fallujah, uma das cidades mais importantes do país, ainda sob o domínio do EI – e que nos últimos dias de maio tornou-se alvo de uma ofensiva do exército iraquiano, com apoio aéreo da coalizão liderada pelos EUA. O helicóptero em que viajamos precisa circundar Fallujah para fugir da ameaça constante de franco-atiradores.

Ao lado do general Yehya Rasoul Al-Zulbedy, chego a Ramadi em um helicóptero Mi-171E, voando baixo por 45 minutos. A manobra de voar a 300 metros de altura deixa o equipamento fora da detecção de radares, dificulta a mira de um potencial atirador do solo e tem forte efeito psicológico no inimigo – o som estridente projeta força, o que, no jargão militar, os estrategistas chamam de “poder de dissuasão”. Em cada uma das duas portas do helicóptero, mantidas abertas, os atiradores munidos de metralhadoras perscrutam possíveis inimigos no solo. A tensão é total na aproximação do campus da Universidade de Anbar. Um dos atiradores faz sinal com os dedos indicador e médio, sobre os olhos, para que o colega ao lado, com a outra metralhadora, mantenha a atenção. Na aproximação, o Mi-171E vira alvo fácil, lento como um elefante pronto para o abate.

Do alto, Ramadi, uma das maiores cidades iraquianas, onde viviam 200 mil habitantes, parece fantasma. Para que as tropas iraquianas avançassem por terra, aviões da coalizão liderada pelos EUA lançaram mais de 600 bombas. Mais de 3 mil edifícios foram destruídos, 400 rodovias e pontes foram devastadas. Não há vida aparente.

Ao aterrissarmos, sou levado para o blindado Humvee 99. Olho para a direita, e uma caminhonete preta do exército tem os vidros traseiros cravejados de disparos de fuzil. A blindagem resistiu.

A maioria da população de 250 mil habitantes fugiu quando os terroristas do Estado Islâmico chegaram, em maio do ano passado. Hoje, poucos moradores começam a voltar. Ao fugir, os extremistas explodiram prédios e plantaram minas terrestres

O  campus da universidade, com prédios de dois andares, está abandonado. Uma pracinha tem gangorra e escorregador quebrados. O teto e a lateral de folhas de zinco do ginásio da Faculdade de Educação Física foram entortados pela força de alguma explosão. Paredes dos prédios têm marcas de tiros de fuzil. Algumas, rombos de canhão. Todas as janelas guardam marcas de incêndio. Nenhuma tem vidro. A Universidade de Anbar, outrora um dos principais templos de conhecimento da região central do Iraque, foi palco de um dos principais combates da guerra contra o EI. Aqui, o grupo terrorista manteve sua base nos oito meses em que subjugou a cidade. O exército iraquiano arrancou Ramadi dos extremistas em dezembro e instalou na universidade seu quartel-general.

Oficiais se esforçam para mostrar que dominam a cidade. Apresentam munição apreendida do EI, cartuchos de morteiros, fios utilizados para confecção de carros-bomba e dezenas de galões com subtâncias químicas colocadas em uma vala escavada no solo da universidade. Exibem como troféu uma bandeira do EI de cerca de dois metros de largura.

Em maio de 2015, 500 extremistas expulsaram os iraquianos, assumiram Ramadi e impuseram seu cotidiano de terror. A libertação, em dezembro, custou a destruição da cidade e algumas descobertas macabras. Em abril, o exército iraquiano encontrou no estádio de futebol dezenas de corpos mutilados de homens, mulheres e crianças. Refugiados disseram que o EI usou civis como escudos humanos. Alguns morreram de fome.

No centro da cidade, para onde poucos moradores começam a voltar, a maioria das casas está destruída. Alguns mercadinhos estão abertos. Com a camiseta da seleção argentina, o barbeiro Ahmed sorri, com um cigarro entre os dedos – algo que havia sido proibido pelos extremistas, que banem todos os “vícios” dos “infiéis”. Quando os terroristas chegaram, Ahmed fugiu com a família para Hadisha. Retornou porque acredita que, aos poucos, a vida irá voltar ao normal.

– Pelo menos tenho água e gás. Agora, as coisas estão começando a ficar boas – diz.

Ramadi nunca será como antes. Em outro mercado, o comerciante Mustafa apresenta poucos produtos à venda na prateleira: óleo de cozinha, chá, papel higiênico, ovos. Antes, caminhões de distribuidores evitavam a cidade. Agora, o mercado começa a ser abastecido. Do freezer, ele retira uma garrafa de Pepsi e me oferece. Ordena que o filho Ranush traga frutas aos visitantes. Fico constrangido: mesmo com tão pouco, eles mantêm a tradição de cortesia aos recém-chegados. A um oficial, ele pede:

– Não temos eletricidade na maior parte do dia. Nem água potável. Precisamos de um caminhão-pipa.

Uma escola de 160 alunos, localizada no centro, foi reaberta em abril. Reparo que os alunos foram orientados para a visita. Estão faceiros e bem arrumados.

– Agora, está tudo ok. Sem Daesh – diz o militar que fazia as vezes de tradutor.

Alguns observam com curiosidade os militares. Ao fundo, a parede da sala de aula tem marcas de bala.

Viajo embedded (embutido, termo que ficou conhecido entre jornalistas durante a Guerra do Iraque) com as tropas, em um comboio superprotegido do exército iraquiano. À frente, há três militares à paisana na capota de uma caminhonete. Na sequência, vários Humvees, todos com metralhadoras 12.7mm DShK. No último carro, mais militares de forças especiais iraquianas. Não parece suficiente. Na batalha por Mossul, cidade do norte do país, os militantes do EI capturaram centenas de Humvees do exército iraquiano. Dois dias atrás, os terroristas romperam a linha de frente em Ramadi e mataram 17 soldados iraquianos com um caminhão-bomba perto daqui. Foi o maior ataque do tipo desde que as forças do governo recapturaram a cidade, capital da província de Anbar, em dezembro. Eles também cercaram um regimento iraquiano, tomaram uma ponte e cortaram a rota de suprimentos entre Ramadi e Thirthar.

Longe do centro, o comboio segue em direção a Zagora, a 20 quilômetros da zona urbana. Há pontes bombardeadas, tanques incinerados e mais prédios destruídos. À medida que as tropas iraquianas avançaram, os terroristas do EI fugiram. Deixaram para trás terra arrasada. Explodiram prédios e plantaram minas pelo caminho. Áreas inteiras são consideradas zonas proibidas, porque precisam passar pelo rastreamento de armadilhas. Por isso, nossa visita é muito controlada. Não dou mais de 10 passos longe dos militares, e todo o deslocamento é feito em comboio. A retirada das minas pode levar décadas. Ramadi é hoje uma das cidades mais minadas do mundo. Em dois meses, 35 pessoas morreram fazendo o trabalho de retirada dos artefatos. Esse perigo é um dos principais obstáculos para o retorno dos moradores.

O comboio avança, e mergulhamos no coração sunita. Um militar iraquiano aponta:

– Daesh! Daesh!

Entre dunas de areia, do outro lado do rio Eufrates, a bandeira negra do Estado Islâmico surge à direita da janela do Humvee, a dois quilômetros de onde estamos. Gigante e aterrorizante. Ali estão os terroristas conhecidos pelas decapitações de reféns – com preferência por jornalistas. Desconforto. Não é medo exatamente. É uma sensação de vulnerabilidade: no meio do deserto, longe de casa, com a sua vida garantida por poucos militares iraquianos. Preocupa-me o fato de os extremistas estarem tão perto. Um novo ataque, como o de quinta-feira, não parece improvável no deserto. A cada 10 minutos, passamos por um checkpoint do exército. A bandeira iraquiana, a presença de soldados em postos com flores de plásticos coloridas em meio à aridez do terreno, quem diria, trazem alguma tranquilidade.

Chegamos a uma casa grande em Zagora, a 20 minutos do centro de Ramadi. Estamos mais perto do front.

– Não se preocupe. Você morre, eu morro com você – o general tenta fazer uma piada.

Soldados precisam ficar atentos à presença de possíveis snipers do Estado Islâmico no solo

Exército iraquiano exibe munição apreendida dos terroristas. Carros e paredes de escola estão cravejados de balas

Oficiais explicam que, a 1,5 quilômetro dali, o rio Eufrates estabelece uma fronteira natural entre as posições das tropas iraquianas e os terroristas:

– Ali nossos homens ficam frente a frente com o Daesh, a 200 metros uns dos outros.

Os blindados estacionam em frente à residência, em posição de combate. A casa ampla, com um jardim bonito, onde uma família costumava sentar à noite para observar o céu, pertence a um xeque, Akram. Ele fugiu com os parentes diante do avanço do EI. Quando os iraquianos chegaram, ocuparam a casa. O coronel Mohammad Hassan, que faz as vezes de anfitrião, garante que os militares pediram autorização para “cuidar” do local até a pacificação. O xeque teria aceitado ceder sua residência.

Hassan é um sujeito engraçado, mantém um sorriso fanfarrão por trás de um bigode parecido com o que militares iraquianos usavam à época de Saddam. Fala um inglês imperfeito e está feliz com a visita de um jornalista brasileiro. Orgulha-se de mostrar sua cidade natal e lembra seus tempos de piloto da força aérea iraquiana – durante 17 anos, comandava caças MIG-23 da aviação de Saddam. É um veterano das guerras contra o Irã e do Golfo, quando o Iraque foi bombardeado após a ocupação do vizinho Kuwait.

– E em 2003, onde você estava? – questiono.

– Quando os americanos entraram no Iraque, todos os pilotos foram pra casa – diz.

A guerra estava perdida desde que o primeiro míssil Tomahawk penetrou em Bagdá, em 20 de março. Hassan desapareceu por algumas semanas. O exército de Saddam foi extinto – muitos militares migraram para o lado da insurgência, um dos ninhos que geraram o EI. Quando a situação se normalizou, o oficial se reapresentou. Dessa vez, aos americanos, que haviam assumido o governo provisório. Pediu para não ficar em Bagdá. Como muçulmano sunita, ex-oficial do regime deposto, ele temia ser morto por milícias xiitas. Hassan foi alocado em Ramadi. Hoje, luta contra o Estado Islâmico, enquanto as duas esposas – no Iraque, o homem pode ter até quatro mulheres – e seis filhos estão na capital:

– Pra mim, não importa o governo, se é Saddam, Malik (Nouri al-Maliki, primeiro-ministro iraquiano entre 2006 e 2014), o que importa é defender minha terra. Hoje, voltei.

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