Um grito coletivo

de resistência

Rua Mutanabbi é um oásis cultural em meio ao caos de Bagdá. Às sextas-feiras, o local reúne vendedores de livros, de chás e de sucos

Ainda na sexta-feira, 13 de maio, passo pela Mesquita Hayder Khana rumo à rua Mutanabbi, batizada em homenagem ao lendário poeta iraquiano do século 10. A rua materializa um ditado árabe:

“O Cairo escreve, Beirute imprime e Bagdá lê”. A frase é da época em que a capital egípcia era profícua produtora de escritores, o Líbano, um efervescente mercado editorial, e os iraquianos, leitores vorazes. Há muito, os bagdalis fazem os três. Mesmo nos obscuros anos de Saddam, autores banidos escreviam do exílio. A metrópole manteve vivo seu amor pelos livros na década de 1990, quando as sanções da ONU impunham o isolamento. Lançamentos mundiais eram xerocados e vendidos com desconto.

Com quase 200 metros de lojas e bancas, é o paraíso dos leitores. É manhã de sexta-feira, dia sagrado de orações, como o domingo nos países ocidentais. No final da manhã, em geral, os bagdalis estão nas mesquitas. Deixam os templos por volta das 14h, em multidões. É também dia tradicional de protestos. Incitadas por imãs, milhares de pessoas costumam se reunir na Praça Tahrir. Por ter mais gente nas ruas, é também dia habitual de atentados.

A feira da Mutanabbi contradiz esse contexto de morte. É impossível passar em linha reta pela rua, bloqueada por homens que amigavelmente se empurram para escolher livros novos e usados espalhados por bancas ou sobre tapetes no chão. Em uma cidade tão desfigurada pela violência, a Mutanabbi é um grito coletivo de resistência.

Saad Abdulkareem Abbas é um dos resistentes. Ele passa a manhã bebericando os infinitos istikans, pequenos copos de chá iraquianos, com amigos no pátio interno de um prédio, cuja área está coberta por uma imensa bandeira do Iraque.

– O ser humano aqui tem de acreditar. Porque ele não sabe se vai voltar pra casa. Quando sai, entrega nas mãos de Deus e vai trabalhar. Não podemos ficar presos em casa. Temos de sair para nos divertir, para trabalhar – afirma.

Otimista, Saad acha que a vida está melhor do que há quatro anos. Naqueles tempos, qualquer um poderia ser abordado na rua e interpelado: xiita ou sunita? Com base na resposta, grupos armados executavam pessoas a céu aberto.

Otimista, Saad acha que a vida está melhor do que há quatro anos. Naqueles tempos, qualquer um poderia ser abordado na rua e interpelado: xiita ou sunita? Com base na resposta, grupos armados executavam pessoas a céu aberto.

– Hoje não se pergunta nada. Claro que tomamos cuidado para não irmos a Fallujah ou Ramadi. Mas aqui, se tivermos que tomar cuidado aqui, a vida acaba ficando muito chata – sorri.

O próprio espaço onde estamos é exemplo de um país que tenta se reerguer após uma das ditaduras mais cruéis do Oriente Médio. Enquanto conversamos, há outros jornalistas captando imagens da feira, como em qualquer “domingo” em uma grande capital europeia, americana ou brasileira.

– Agora, você está fazendo uma entrevista comigo. No passado, se você viesse falar comigo, desse jeito, eu fugiria. Não iria responder. A qualquer momento alguém poderia me pegar. E me matar – comenta.

Muito se falou que os americanos invadiram o Iraque em busca do petróleo que encharca o subsolo do país. Funcionário da refinaria de Daura bem antes da ocupação e das bravatas do governo Bush sobre as nunca encontradas armas de destruição em massa de Saddam, Saad afirma que os poços de petróleo iraquianos são antigos. Não foram melhorados, não foram construídos novos.

– Os poços servem apenas o suficiente para sobrevivermos. Se você vai a países vizinhos do Golfo, nos Emirados Árabes, no Kuwait, no Catar, foram construídas novas instalações. Fizeram grandes negociações para retirar mais petróleo do solo e para obter mais dinheiro. A gente, não. Nossos poços são antigos, muitos foram destruídos na guerra – avalia.

Bazar na Rua Mutanabbi, no centro de Bagdá

Do ponto de vista pessoal, melhorou. Na época de Saddam, na mesma refinaria, Saad recebia o equivalente a US$ 2 por mês. Hoje, ganha US$ 2 mil:

– A gente sabe que o Iraque tem muito dinheiro: petróleo, plantações, os dois rios (Tigre e Eufrates). Passando essa fase do Daesh, tenho certeza: vamos ser melhores do que outros países árabes. O Iraque não tem só petróleo: tem turismo religioso, com lugares sagrados dos imãs Ali e Hussein. Se o país ficar estável, virão mais visitantes. Aí, vão pagar pela obtenção de visto, vão entrar com dinheiro, comprar.

É meio-dia, e a maior parte dos compradores já se dirigiu para casa ou se acomodou com um café ou chá no Shahbandar, onde escritores, artistas e intelectuais há muito passam as tardes baforando narguilés, discutindo política e futebol, jogando gamão. Um desses assíduos frequentadores é Hakeen Shaker, técnico que levou a seleção iraquiana a um histórico quarto lugar em 2013 na Copa do Mundo sub-20. É idolatrado por torcedores – logo fecha-se uma roda de conversa em torno de uma mesa de chá. Pergunto se ganhar do Brasil, em 7 de agosto, na Olimpíada, é um sonho.

– O Brasil é o rei do mundo no futebol, mas nossa seleção disputou vários campeonatos para se classificar para o Rio. Faremos um jogo difícil – diz, para orgulho de quem o cerca.

Em 5 de março de 2007, perto do meio-dia, esse ambiente descontraído do Shahbandar foi manchado de sangue quando um carro-bomba despedaçou a rua Mutanabbi, matando pelo menos 30 pessoas e ferindo mais de 60. Entre os mortos, estavam os três filhos do proprietário do café, Mohammad Khish Ali, 75 anos. Com o tempo, ele restaurou a antiga glória do local. Fotografias históricas de Bagdá enfeitam as paredes: a coroação do rei Faiçal I, em 1921, que aconteceu a não mais de cem metros dali, fotos em sépia do Tigre. Não só o café, mas a rua foi reconstruída em 2008, um tributo à resiliência dos bagdalis.

Mesmo durante as guerras, a metrópole manteve vivo seu amor pelos livros, quando sanções da ONU impunham isolamento. Lançamentos mundiais eram xerocados e vendidos com desconto