Terror não poupa

nem o futebol

O brasileiro Tonello é massagista do time de futebol Al-Shorta. Já testemunhou atentados com carros-bomba na frente de seu hotel em Bagdá, onde vive desde 2013

Quanto mais conheço Bagdá, mais vejo que o hotel Babylon reproduz uma vida artificial. Casamentos (é tradição nos países árabes casar em hotéis), músico ao piano, famílias fumando narguilé no jardim, pavões soltos no pátio interno, em volta da piscina. Pensei nisso ao conhecer Wilson Andrade, paulista de Marília, 44 anos, massagista de clubes de futebol, na segunda-feira, 9 de maio.

No início de 2015, Wilson estava no quarto do hotel Uruk quando ouviu uma explosão. Foi até a frente do prédio, viu pessoas sangrando, outras em estado de choque. Resolveu ajudar.

– Tinha gente infartando, precisei fazer massagem cardíaca. Havia gente despedaçada – conta o brasileiro, conhecido como Tonello entre os amigos.

O carro-bomba explodiu na esquina do hotel. Para turbinar a matança, terroristas colocaram bolinhas de rolimã entre os explosivos. Quando a bomba é detonada, essas bolinhas se transformam em projéteis mortais que, em alta temperatura e velocidade, penetram nas vítimas que sobreviveram ao primeiro efeito da explosão.

Também no ano passado, em outro hotel, Tonello estava sentado em uma maca de massagem conversando com outros dois brasileiros:

– Veio a explosão. Estourou bem forte. Pulei para o chão, cheguei a machucar o joelho batendo na maca.

Ele e outros brasileiros trocaram de hotel. Três meses depois, outro carro-bomba explodiu por perto, a 200 metros. Mudaram de hotel de novo.

Tonello lembra-se do ataque ao Babylon:

– Subimos até o terraço para ver a fumaça no Babylon. Enquanto olhávamos para o prédio, às nossas costas, um estouro em outro ponto da cidade.

Era o hotel Ishtar. Mesmo acostumado a essa rotina, certo dia Tonello entrou em uma loja para comprar um celular e assustou-se: viu um homem com um colete à prova de balas. Pensou que fosse um colete-bomba.

– Minhas pernas congelaram. Saímos dali correndo – conta, hoje até rindo da situação.

O que Tonello testemunhou só agora revela para a mulher, Patrícia, 46 anos, com quem se casou há 14 anos. Os dois se chamam, carinhosamente, de Filho e Filha. Ela mudou-se para Bagdá no fim de 2015, para ficar perto do marido, que chegara em 2013 e trabalha no clube de futebol da primeira divisão iraquiana Al-Shorta.

– Não queria preocupá-la – diz Tonello.

Com medo de sair sozinha à rua, Patrícia restringe seus dias à suíte do hotel, onde o casal reúne móveis de casa, macas e equipamentos de Tonello.

– Sinto falta de sair, da liberdade. Mulher é muito privada. Não se vê mulher na rua. Não tem liberdade de conversar – desabafa.

Ela tem dificuldades para se adaptar à cultura iraquiana e à comida. No início, levou café, feijão brasileiros. Dificilmente, o casal sai para jantar. Patricia prefere cozinhar no hotel.

– Em jogo de futebol, mulher não vai. Em restaurante, há a ala dos solteiros e a dos casados.

Se beber, você vai preso. Diversão aqui é fumar narguilé e tomar suco. Certo dia eu estava pronta para ir ao shopping, e o rapaz da limpeza do hotel disse para o Tone: “Sair hoje não! Perigo!”. Eles transferem esse medo. Ficamos apreensivos e cancelamos a saída – diz Patrícia.

O casal procura se manter na linha.

– Eles olham porque a gente anda de mãos dadas – conta Tonello.

– Às vezes, eu me engano e dou um beijo nele. Ficam todos olhando – sorri Patrícia.

Pela manhã, Tonello fica no hotel, à tarde vai ao treino da equipe e, à noite, volta para o Uruk, onde recebe jogadores para tratamento. Ele é responsável pela recuperação dos atletas de futebol, handebol, basquete, vôlei, boxe, atletismo e futsal do Al-Shorta, que significa Clube da Polícia (cada policial iraquiano sofre desconto no salário para ajudar o clube). Jogadores da seleção iraquiana, que irá disputar a Olimpíada no Rio em agosto, procuram-no. Alguns cruzam o país, de cidades do Sul, como Basra, e do Curdistão, no Norte.

"Tinha gente enfartando, precisei fazer massagem cardíaca. Havia gente despedaçada". Tonello (ao centro) conta que terroristas usaram bolinhas de rolimã entre os explosivos para turbinar a matança

Tonello mora perto da Praça Firdus, local onde ficava a estátua de Saddam Hussein derrubada em 2013. Nos braços, tem tatuado seu apelido, em árabe, e uma declaração de amor, em inglês, à mulher, Patrícia

Os iraquianos costumam dizer que, em cada casa, alguém já perdeu um familiar em atentados ou em guerras. Nem o futebol é poupado. No tempo de Saddam, Udai, filho mais velho do ditador, fez fama como presidente da Federação Iraquiana de Futebol e chefe do comitê olímpico. Uma de suas “estratégias motivacionais” incluía a prisão de jogadores caso faltassem aos treinos. Quem perdia um pênalti em uma partida, por exemplo, tinha os pés machucados com espinhos. Em 1998, depois que o time não se classificou para a Copa da França, alguns atletas denunciaram prisões e torturas – tiveram que treinar com bolas de cimento.

Hoje, não há mais tortura. O problema são os atentados. Em março, um jovem torcedor explodiu a si mesmo durante uma partida em um pequeno estádio de Iskanderiyah, ao sul de Bagdá: 17 mortes. Em 13 de maio, durante minha estada em Bagdá, integrantes do EI com fuzis AK-47 abriram fogo contra torcedores do Real Madrid no café Al-Furat, em Balad, ao norte da capital: 16 mortos (em 28 de maio, um ataque ao fã-clube do Real em Baqouba deixou 12 mortos). Pergunto a Ahmed Mohammed, 22 anos, lateral-direito do Al-Shorta e da seleção olímpica, se o futebol, visto como pecado pelo EI, pode contribuir para construir um ambiente de paz.

– Só quando o Daesh for embora – ele responde.

Dos 23 jogadores do Al-Shorta, três são estrangeiros – um sírio, um tunisiano e um ugandense. O craque do time é o iraquiano Mahdi Kamel, um dos cinco atletas do clube que deverão enfrentar o Brasil na primeira fase da Olimpíada. Cada jogador recebe em média o equivalente a US$ 300 mensais. Mas pode chegar a US$ 500. O maior astro da história é Nashat Akram, ex-seleção iraquiana, hoje comentarista na MBC Pro.

– Em geral, o jogador iraquiano não se cuida. Fuma muito – confidencia Tonello, que já trabalhou no Corinthians e no Jeju United (Coreia do Sul).

Tonello e Patrícia moram perto da Praça Firdus, que visitei na sexta-feira, 13 de maio. A água acumulada, o lixo e o capim alto obscurecem a rotatória que, em 9 de abril de 2003, apareceu nas telas de TV com cenas históricas da estátua de Saddam sendo derrubada. Na sequência, iraquianos em celebração passaram a dar chineladas e sapatadas na cabeça do ditador.

O toco de metal, que sustentava a estátua, resiste carcomido pela ferrugem, sobre a estrutura de concreto. Observo o abandono da praça quando recebo pelo WhatsApp a confirmação do exército: vamos tentar uma nova incursão a Ramadi.