Velórios a céu aberto

"A cabeça de uma mulher foi parar do outro lado da rua." A frase foi entreouvida no local acima, palco do atentado que matou, no dia 11 de maio, 66 pessoas. Bagdá registrava outros dois ataques no seu dia mais sangrento em 2016 até então

—Acabeça de uma mulher foi parar do outro lado da rua.

A frase é entreouvida na manhã de quinta-feira, 12 de maio. Um homem faz um relato mórbido a um grupo de idosos enquanto passo pela frente do salão de beleza atingido pelo caminhão-bomba 24 horas antes.

Nas ruelas bloqueadas por blocos de concreto, móveis e areia de Cidade Sadr, famílias velam seus parentes debaixo de um toldo, no meio da rua.  Terroristas não poupam nem os mortos. Há risco de novos atentados, frequentes até em velórios.

– Todas as ruas estão fechadas, ou de um lado ou de outro – explica Ali, meu motorista.

No local da explosão de 11 de maio no mercado Areeba, a rotina de trabalhadores no vaivém com mercadorias e de mulheres vestindo abayas pretas com crianças à mão parece normal. É assim em uma cidade anestesiada pela violência. Menos de 24 horas depois de 66 pessoas morrerem aqui, a vida continua. A porta de lata de uma barbearia atingida pela explosão foi arrancada. Na fachada, há flores, uma bandeira do Iraque e um cartaz com os rostos dos mortos. Um homem lava o chão interno, arrastando água suja com sangue para a calçada. Há moscas.

Eram 10h quando a matança começou. Um caminhão transportando verduras tentou entrar no mercado. A polícia mandou o motorista recuar. O veículo ingressou por outra entrada. Então, o inofensivo caminhão de verduras virou uma máquina de morte. O Estado Islâmico reivindicou a autoria do ataque imediatamente e identificou o suicida como Abu Suleiman Al-Ansari.

Meu motorista teme pela segurança, tem pressa. Os iraquianos hoje estão mais desconfiados do que o habitual. Após explosões, é comum simpatizantes dos extremistas gravarem imagens da destruição e as enviarem a seus comandantes, como um presente mórbido, orgulho bestial do estrago produzido. Minha aparência ocidental, com uma câmera na mão, é indisfarçável. Uso o smartphone. Mas levanto mais suspeitas. É assim que os terroristas fazem para registrar o feito de seu banquete de morte. Na internet, as imagens viram propaganda do EI para arregimentar jovens mundo afora.

No local da explosão, em Cidade Sadr, ferros retorcidos, sangue misturado com água, homenagens aos mortos e curiosos.

Neste dia, Ali está mais atento do que de costume à movimentação. Há carros e motos na contramão. Motoristas não sinalizam: cruzam à frente do veículo, e os mais educados dão um grito de alerta. Crianças, homens e mulheres atravessam a rua em qualquer ponto. A sensação é de que os checkpoints, que fazem de Bagdá uma metrópole fatiada e entravam o trânsito, são ineficientes. Terroristas explodem quando e onde querem. Ali baixa o vidro do carro, diminui o volume do rádio quando passa pelas barreiras. Dia desses, os guardas conseguiram evitar um atentado. Suspeitaram de um motorista e conseguiram evitar que ele acionasse os explosivos. O terrorista foi arrancado do carro por homens que, em luta corporal, levaram-no a um local desconhecido. Na caminhonete, foram encontrados explosivos e fios. Ali sabe que foi exceção. Por isso, tem uma ideia:

– Tinham de colocar raio-X em todos os checkpoints, nas entradas da cidade.

Saímos dali para encontrar Sadeq no mercado Gueiara, a algumas quadras do local da explosão. Percebo que sou observado. Peço a Ali que faça as fotos com meu celular. Caminhamos rapidamente entre feirantes, mulheres de abaya preta, carros com mercadorias, carneiros que serão mortos dali a pouco, gaiolas com frangos vivos. Imagino que também esse mercado é um alvo em potencial. Multidão. Instintivamente, caminhamos rápido.

– O rapaz da mochila preta! – alguém grita.

Chamo atenção de Ali, que vai à frente. Ele não para. Um grupo de homens vem atrás de nós. Ali para, mostra sua identidade iraquiana, explica que sou jornalista. Eu sorrio, tento ser simpático. Dois homens pedem desculpas, dizem que estão atentos porque, no dia anterior, o mesmo dos ataques coordenados em Bagdá, um homem foi pego no local tentando deixar uma sacola com explosivos. Sadeq confirma a informação. E diz que amigos como os que nos pararam servem de “olhos” da comunidade. Pessoas estranhas, como Ali e eu, são logo paradas e identificadas. Nem sempre funciona.

Saddam Hussein me recebe no início da tarde de quinta-feira, 12 de maio. Tem 34 anos, barba meticulosamente aparada, cabelos com gel penteados para trás e sorriso amigável. Veste jaleco branco e ajuda a salvar vidas como laboratorista do departamento de queimados do City Medical, um dos maiores complexos hospitalares do Iraque. Seu pai, Hussein Mohammed, era militar da força aérea. Ao saber do nascimento do menino, seu comandante, um general que morava em Tikrit, cidade natal do ex-presidente iraquiano, orientou:

– Tens de colocar o nome de Saddam, para melhorar a vida dele. É para o bem dele, e para você também ficar mais forte, mais próximo de Saddam.

O filho comenta a enrascada em que seu pai entrou:

– Sabe quando chefe manda e você não tem como dizer não?

Hussein Mohammed obedeceu. Aos três anos, levou o filho a Tikrit.

– Todo mundo comemorou: “Saddam Hussein Júnior chegou!”. Pegavam-me no colo – conta o laboratorista.

No fundo, o pai queria outro nome: Sabbah. Por isso, Saddam adota Sabbah desde o colégio. Mas mantém o nome do ditador nos documentos – daria uma trabalheira alterá-los. Então, é Sabbah para os amigos e familiares. Mas Saddam na conta do banco, na correspondência e no crachá preso ao jaleco:

– Se puder, um dia ainda vou mudar em definitivo, como queria meu pai.

E o que ele pensa do homônimo famoso?

– Saddam era um homem forte, mas não era justo. Desejamos ter um homem forte como Saddam, porém que seja correto.

Hoje, segundo ele, há mais investimentos em saúde. O hospital recebeu novos equipamentos, como um aparelho de ressonância magnética, que está a caminho. Na manhã seguinte após o triplo atentado no Iraque, a maioria dos feridos foi levada a hospitais de emergências mais próximos de Cidade Sadr.

Não estão no City Medical:

– Ontem, morreram mais de 80 pessoas, e hoje estamos trabalhando normalmente, porque nos acostumamos com isso. Os iraquianos prestam atenção, lamentam, apenas na primeira hora. Depois, tudo fica normal.

Por influência do chefe, o pai do laboratorista deu ao filho Saddam o nome do ditador

SEMANA SANGRENTA

Em todos os dias que ZH esteve no Iraque, houve atentados

9/5

3 atentados – 17 mortos

 

10/5

2 atentados – 3 mortos

 

11/5

3 atentados – 96 mortos

 

12/5

2 atentados – 5 mortos

 

13/5

3 atentados – 22 mortos

 

14/5

3 atentados – 4 mortos

 

15/5

3 atentados – 16 mortos

Muito prazer, Saddam Hussein!