Dedo na garganta e viagem cancelada

Madrugada de 11 de maio, quarta-feira. A confirmação da ida a Ramadi rouba o sono. Diante do alerta sobre os snipers, tento me tranquilizar: eles não colocariam um repórter estrangeiro em risco. O custo seria alto. Ou, na verdade, podem não estar nem aí se mais um jornalista morrer no front. Foram 174 profissionais de imprensa mortos no Iraque desde 1992, segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas. Reconforta-me saber que um general iraquiano irá comigo. Não arriscariam a cabeça – literalmente – de um oficial de alta patente.

Acordo às 6h. Tomo banho. Questiono-me várias vezes se estou tomando a decisão correta de ir ao front. Visto pela primeira vez o colete à prova de balas que trouxe na mala. Avalio se os pontos vitais do meu corpo podem ter ficado de fora da proteção. Parto rumo à principal base aérea iraquiana, localizada ao lado do aeroporto de Bagdá. Estamos em um jipe do exército iraquiano – um alvo potencial para terroristas. No rádio, Rihanna canta Diamonds.

Chegamos às 8h40min na sede da base, e sou levado a uma sala VIP, dos oficiais. Voltamos 30 anos no tempo – as cadeiras de madeira com dourado, a bandeira do Iraque e a águia, símbolo do exército iraquiano (e também um dos símbolos dos EUA).

– Bonita sala – elogio, tentando ser simpático.

Um militar quer que eu tire uma foto sentado ao lado da bandeira do Iraque. O general avisa:

– Partimos em 15 minutos.

Isso seria às 9h. São 9h30min e ninguém dá explicação para o atraso. O general fala poucas palavras em inglês. Seu telefone toca toda hora. São 10h. Impaciente, pergunto:

– Algum problema?

– Não, só a meteorologia. Em 30 minutos, devemos decolar – responde o general.

Às 11h20min, eles resolvem oferecer ovo frito com pão. O general e outros oficiais conversam muito à mesa. Após a refeição, adormeço na cadeira. Às 14h, o general anuncia que o helicóptero está vindo. Em 15 minutos. A essa altura, já havia despido o colete balístico – decido que voltaria a vesti-lo apenas quando o aparelho pousar. Era verdade: o helicóptero chegou. A temperatura beira os 42°C. Embarcamos correndo no Bell UH-1 Huey.

– Presente dos americanos – anuncia um oficial.

O helicóptero, do mesmo modelo utilizado no Vietnã pelos EUA, deve ficar pouco tempo pousado. Na periferia de Bagdá, está mais vulnerável a ataques. Um soldado afivela meu cinto rapidamente. O trambolho voador, lento para quem olha de fora, extremamente barulhento para quem  sacoleja dentro, decola rumo a Ramadi. Voa baixo. Os artilheiros, munidos de metralhadoras, buscam possíveis alvos no solo. Do alto, Bagdá está silenciosa, quase nenhum carro. A qualquer momento, imagino, pode sair um terrorista com um RPG no ombro e mirar no helicóptero.

Com 20 minutos de voo, o piloto vira-se para o general e passa o dedo indicador de forma transversal na garganta, como se tivesse sido degolado. Percebo o sinal como “abortamos a missão”. O general confirma com a cabeça. E faz sinal com os dedos de que está difícil enxergar à frente. Para mim, o céu azul está incrivelmente claro. Descemos, e sou informado de que houve um atentado em Cidade Sadr, onde estive no dia anterior. Só consigo acesso à internet uma hora depois. No WhatsApp, 53 mensagens a minha espera. A maioria de amigos e familiares:

– Tá vivo?

– Cara, tu tá bem?

– Tudo bem aí???? Vi que teve atentado em Bagdá.

Três mensagens que poderiam resumir onde me meti.

Três horas depois de tranquilizar minha família, via WhatsApp, encontro um grupo de jovens de classe média.

– Aqui, tens que morar com os pais até casar. Ou ir para outro país.

A frase de Rafaela Al-Hamawi ilustra um pouco do modo de vida da juventude iraquiana. É quarta-feira, 11 de maio, e estamos no Mansour Mall, um shopping de três andares no bairro Mansour, margem ocidental do Tigre. Para entrar no prédio, é preciso passar por revista. Homens e mulheres separados. Dentro, é como um shopping ocidental. Há lojas de grifes de roupas, gadgets que ainda não chegaram ao Brasil. Há uma bela cafeteria, inspirada na rede americana Starbucks, com um café delicioso.

Marco um encontro com um grupo de jovens de Mansour. Rafaela chega acompanhada de Mohamed e Ali Barakat. No carro, toca sucessos do rapper britânico Tinie Tempah e do americano DJ Mustard.

– Eu gostava de pop, mas ele (Mohamed) me fez curtir rap. Agora, não consigo ouvir outra coisa – diz Rafaela.

Barakat prefere os britânicos do Mumford & Sons e os irlandeses do Snow Patrol. Rafa adora dançar nas festas, todas em casas de amigos:

– Fico louca.

Com mechas vermelhas, a garota destoa das jovens iraquianas. A começar por não cobrir o cabelo com o hijab. Usou o lenço por 10 anos – dos 15 aos 25 – por respeito à família.

– No ano passado, pintei o cabelo de cinco cores diferentes – sorri.

É filha de um engenheiro elétrico que estudou na Europa e de mãe funcionária pública, ex-supervisora dos palácios de Saddam. A mãe viu o presidente apenas uma vez, “só de longe”.

Rafaela trabalha em uma empresa que presta serviços de manager de corpos diplomáticos. Planeja fazer mestrado no Reino Unido. Quando houve a invasão, em 2003, ela fugiu com a família para Damasco, na Síria. Lá, graduou-se em Literatura Inglesa. Retornou em 2013. A guerra com os EUA havia passado. Tinha início o atoleiro interno. Todos à mesa conhecem alguém que morreu em guerras.

Jovens iraquianos vão a shoppings, frequentam cafés. Quase todos fumam narguilé. Poucos restaurantes vendem álcool. Mas eles compram e consomem em casa, em festas particulares. Rafaela diz que prefere não beber, mas não é por religião.

– Não quero me expor.

Rafaela teve um único namorado “oficial”, com o qual ficou durante seis meses. Já Ali Barakat, 22 anos, disse que teve três namoradas.

– Agora você está sozinho? – pergunto.

– Sozinho não. Livre – responde Barakat, que não pensa em casar.

Ele quer, dentro de um ano, fazer intercâmbio na Austrália. Estuda engenharia elétrica e trabalha em uma empresa de telecomunicações. Faz festas aos sábados à noite, churrascos com amigos, bebe em casa vodca e cerveja Budweiser ou Corona. Diz que o pai é contra, por ser religioso. Rafaela comenta:

– Acredito em Deus. Em fazer o bem. Mas aqui a religião serve para controlar a sociedade.

Carinho entre homens e mulheres, beijo na boca em público e outras demonstrações de afeto ainda são práticas ocidentais.

— Você vai para a cadeia – diz Barakat.

Rafaela minimiza:

– Você vai receber uma advertência. Um policial vai dizer: “Você não pode fazer isso aqui”.

Um dos integrantes da mesa admite que fuma maconha. Se for pego, são 15 anos de prisão. A confissão vem no momento em que Rafaela recebe ao celular a mensagem do amigo: “Há três atentados em Bagdá hoje”. Ao sair do restaurante, escancara-se uma contradição. Enquanto a cidade lá fora arde, em um dia que contabilizaria 96 mortos, no parquinho de diversões do shopping crianças brincam em um pula-pula, sonham ser astronautas no comando de naves espaciais e descem em um escorregador inflável, às gargalhadas, até caírem em uma piscina de bolinhas.

Abordo de um helicóptero Bell UH-1 Huey com dois militares armados nas portas, tomamos o rumo de Ramadi, cidade que ficou oito meses sob domínio do Estado Islâmico. Aparelho voa baixo para evitar se tornar um alvo fácil dos terroristas. Artilheiros buscam extremistas lá embaixo

Shopping Mansour vende eletrônicos e roupas de grife, entre outros artigos. Na entrada, é preciso passar por revista

Contrariando a imagem geral de um mercado iraquiano, o Mansour tem dependências bem ocidentais

A nova geração pós-guerra