Vida artificial em meio ao caos

Terça-feira, 10 de maio. Passo a conviver com a rotina desconfortável de acordar, afastar a cortina do quarto 714, no 7º andar do Hotel Babylon, na margem oriental do Tigre, e dar de cara com um veículo blindado iraquiano com a metralhadora apontada para a minha janela. Menos famoso do que os hotéis Al-Rashid e Palestine, onde ficavam hospedados correspondentes que cobriram as guerras do Golfo e do Iraque, o Babylon é um dos melhores de Bagdá. Zico ficou hospedado aqui enquanto treinou a seleção iraquiana de futebol, entre 2011 e 2012. De frente para o Tigre e a embaixada americana, o prédio é uma fortaleza de luxo que abriga jornalistas e encontros de políticos. Por isso, também entrou no mapa do terror do Estado Islâmico. Em maio do ano passado, um carro-bomba explodiu no estacionamento do hotel, matando seis pessoas e destruindo parte da fachada. Quinze minutos depois, outro veículo atacou o Hotel Ishtar. O Estado Islâmico reivindicou a autoria do duplo ataque.

O Babylon reforçou a segurança. Para acessá-lo, deve-se transpor dois checkpoints que levam pelo menos 15 minutos. O motorista deixa capô, porta-malas e portas abertas para que um cão K-9 fareje explosivos. Depois, com um espelho, inspeciona-se a parte inferior. Ao descer do carro, o hóspede passa por raio-X. Na recepção, antes do check-in, o chefe da segurança dá seu cartão de visitas:

– Acione-me se precisar.

Subo para o quarto e estudo um pouco mais sobre meu próximo destino: Cidade Sadr.

Quando as tropas americanas desembarcaram em Bagdá, em março de 2003, ocuparam rua a rua a capital do império que Saddam Hussein sonhava erigir. Menos Cidade Sadr, aglomerado urbano horizontal que se assemelha às favelas brasileiras. O exército ou a polícia iraquiana não mandam nos seus 2,5 milhões de habitantes. A lei e a ordem são mantidas pela poderosa milícia xiita de Moqtada Al-Sadr, líder religioso que comanda o Exército Mehdi. Tão logo os americanos derrubaram o governo do ditador, os combatentes rebatizaram o local antes chamado de Cidade Saddam. Sadr é uma homenagem ao falecido pai de Moqtada, um reverenciado imã (líder religioso) assassinado por ordens do ex-presidente. O partido Baath, de orientação sunita, perseguia os xiitas – hoje, parte da guerra civil iraquiana se deve a um sentimento de vingança xiita, maioria no Iraque. Há cartazes de Sadr pai e Sadr filho por toda a favela. Há barricadas com pedras, blocos de concreto ou lixo. Para entrar, é preciso de autorização da milícia. Ou conhecer alguém que mora em Cidade Sadr, como Ali Kahdem, meu motorista em Bagdá.

Natural de Deyala, a 60 quilômetros da capital iraquiana, Ali morou nove anos no Brasil, onde trabalhou no comércio da Rua 25 de Março, centro de compras popular em São Paulo. No dia em que voltou para Bagdá para passar 20 dias de férias, foi apresentado pelos pais à futura mulher, Ashjan, 22 anos, com quem deveria se casar.

– Cheguei pela manhã e estava praticamente acertado o compromisso à tarde – conta.

Ali havia comprado passagem de ida e volta, mas não encontrava o passaporte. Entrou com processo para fazer um novo documento, e acabou enredado na burocracia iraquiana. Foi punido por um ano sem poder sair do Iraque. A questão é levada a sério pelas autoridades porque, uma vez que o passaporte caia nas mãos de terroristas, pode ser utilizado para despistar investigações em atentados. É comum, por exemplo, antes de armarem explosivos em um veículo, extremistas deixarem um passaporte roubado no carro a fim de ser encontrado após a explosão.

Ali é filho de um ex-militar, Mahdi Kahdem, que serviu ao exército de Saddam e que experimentou, por três décadas, a truculência do regime que não poupava nem os seus. Certo dia, enquanto fazia guarda com um colega em um depósito de munição, houve um roubo. O outro fugiu. Mahdi foi preso, torturado para que confessasse o crime. “Posso morrer, mas não vou admitir. Não fui eu”, dizia.

Ficou seis meses na cadeia. Ali tinha 12 anos e lembra das visitas ao pai. A mãe, Samera, começou a trabalhar para sustentar a família. Fazia doces em casa para vender. O filho ajudava no orçamento com o comércio de frutas.

– O que Saddam fez com meu pai também fez em muitas outras casas iraquianas – lamenta Ali.

Tempos depois, a polícia encontrou o colega de Mahdi, que confessou ter falhado na proteção do depósito. Foi condenado à morte na forca. Mahdi ganhou liberdade. Em 20 de março de 2003, quando a operação Choque e Pavor de George W. Bush se abateu sobre Bagdá, o pai de Ali voltou a desaparecer.

– Só havia corpos nas ruas. Minha mãe chorava todos os dias – relata o motorista.

Um primo chegou a ir ao quartel onde o militar fazia guarda, mas encontrou apenas escombros. Procuraram em hospitais, necrotérios. Só três meses depois Mahdi reapareceu. Como a maioria dos soldados de Saddam, quando as primeiras bombas caíram sobre a cidade, ele vestira roupas civis. Desertara.

– Meu pai ficou escondido todo o tempo por medo de que Saddam voltasse – diz Ali.

Ele me recebe em sua casa em Cidade Sadr, ao lado de Ashjan. A filha, Aya, um ano e sete meses, dorme de vestido branco e rosa sobre um colchão no chão da sala. Como é tradição nas casas árabes, tira-se os sapatos à entrada. A família preparou um banquete de frutas no início da manhã. Faz 38ºC, e para manter o ar-condicionado funcionando, Ali liga o gerador. A energia elétrica em Cidade Sadr é instável.

Ashjan é professora em escola pública. Leciona para crianças pobres, dos sete aos 12 anos. Ela diz:

– A gente encara dificuldades, porque essas crianças vivem com famílias cuja cultura é muito baixa. Não sabem ler, há brigas, não se respeitam.

Indago se o Iraque está melhor ou pior do que na época de Saddam.

– Antes, era mais seguro. Não se via gente morrendo na rua. Agora, há carros-bomba, tiros, balas perdidas. Passamos na rua e vemos mortos. Explode um carro-bomba, você vê uma perna aqui, outro braço ali. Saímos para a rua e não sabemos se vamos voltar para casa – responde a professora.

Aya acorda, e Ashjan fala sobre as perspectivas para a filha:

– É difícil falar de futuro. Só pensamos no hoje.

Não sabemos se estaremos vivos amanhã.

Ali, ao contrário, planeja:

– Vou fazer o possível para que ela chegue ao lugar onde quiser. Vou colocá-la na melhor escola, vou educar bem.

A CAPITAL DO IRAQUE

 

Com 7,5 milhões de habitantes, Bagdá fica às margens do rio Tigre. Foi bombardeada intensamente nas guerra de 1991 e durante a invasão americana 2003. Apesar de nunca ter sito tomada pelo EI, vive o pesadelo diário dos carros-bomba.

Arte

Fernando Gonda

Leandro Maciel

 

Fotos

Bruno Alencastro

Júlio Cordeiro

Embaixada dos EUA

É o maior prédio diplomático americano no mundo, onde trabalham mil funcionários.

 

Hotel Babylon

Sede de ZH durante uma semana.

 

Aeroporto

Internacional de Bagdá

Antigo Aeroporto Internacional Saddam Hussein, o atual complexo é pequeno e antigo.  Para chegar ao aeroporto por terra, é necessário passar por seis postos militares e de checagem de malas em raio-X. Há voos internacionais para as principais capitais da região.

Cidade Sadr

Maior favela iraquiana, onde vivem 2,5 milhões de pessoas, a maioria muçulmanos de origem xiita. É uma regiao considerada rebelde, onde vigora a lei e a ordem pelas mãos do líder religioso Moqtada al-Sadr, que comanda a milícia Exército Mehdi.

 

Zona Verde

Superfortificada área criada em 2003 pelos EUA para ser a sede das administrações militar e civil. Era o coração do poder de Saddam Hussein _ onde ficavam seus principais palácios e ministérios. Tem 10 quilômetros quadrados de área. Ainda hoje

 

Praça Firdus

Rotatória próxima aos hoteis Palestine e Al-Rashed. Aqui ficava a famosa estátua de Saddam Hussein, derrubada pelos americanos e iraquianos no momento da invasão, em 2003.

Durante todos os dias em que ZH permaneceu em Bagdá, havia um veículo Humvee do exército iraquiano em frente ao hotel fazendo a segurança. O Babylon foi atingido por atentados em 2014

Em Cidade Sadr, há várias imagens de Moqtada Al-Sadr, líder da milícia xiita Exército Mehdi, e de seu pai. São comuns os mercados populares, um dos locais preferidos pelo EI para atacar