Atentado! A cidade

lhe dá boas-vindas

Cidade Sadr, com 2,5 milhões de habitantes, é a maior favela do Iraque. De maioria xiita, é dominada pela milícia Exército Mehdi, de Moqtada al-Sadr

Aeroporto de Istambul, segunda-feira, 9 de maio. Falta menos de uma hora para a decolagem do voo TK0302 da Turkish Airlines. Espero sozinho na sala de embarque. “Quem escolhe o Iraque como destino?”, reflito, lembrando a risadinha da atendente no balcão do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, quando respondi à pergunta habitual. São 22 passageiros no Airbus A-319 da Turkish com capacidade para 140. Todos adultos. Para chegar à capital iraquiana, as aeronaves singram espaços aéreos hostis: a rota segue pela Turquia e entra no Iraque pelo território do Curdistão, evitando o caminho mais rápido – e perigoso: o sobrevoo de parte da Síria dominada pelos terroristas, cruzando acima de Mossul, uma espécie de capital do EI no Iraque. Da janela do avião, vislumbro um cenário árido, uma imensa planície cortada por rios e lagos quase secos.

O avião está a 11 mil metros de altitude. Calculo se

o arsenal do EI contaria com um lança-foguetes terra-ar capaz de nos atingir.

O Aeroporto Internacional de Bagdá, que até 2003 chamava-se Saddam Hussein, é pequeno, com poltronas estofadas em cor de rosa desbotado e freeshop de prateleiras quase vazias. Nas raras lanchonetes, não há venda de bebidas alcoólicas – o consumo é proibido nas ruas por causa da religião islâmica, mas é possível comprar cerveja, uísque e vodca em lojas sem identificação no centro de Bagdá. Sou recebido na área de desembarque do aeroporto por dois seguranças da embaixada do Brasil. São ex-militares britânicos, veteranos dos conflitos no Afeganistão e no Iraque, que hoje prestam serviço a uma empresa privada.

– Em caso de emergência no caminho, siga nossas instruções – diz um dos homens, enquanto entramos no segundo de três carros do comboio.

Eu estava sendo apresentado às regras de sobrevivência de Bagdá. Um dos homens aponta no horizonte uma fumaça esparsa. Seria um

carro-bomba?

– Provavelmente. Bagdá lhe dá as boas-vindas –

ele responde.

Os dois seguranças estão armados com fuzis, pistolas e vestem colete à prova de balas. Inicia-se uma viagem de 25 minutos e pelo menos cinco checkpoints em que policiais e militares iraquianos observam o interior dos veículos em busca de suspeitos. As barreiras que tornam Bagdá uma cidade fatiada, descontínua, são insuficientes. Esses pontos de passagem, formados por um veículo blindado e três ou quatro policiais, são os preferidos do EI para atacar. Como os motoristas são obrigados a reduzir a velocidade, formam-se congestionamentos. Ao explodirem esses locais, os terroristas atingem maior número de carros. Fazem mais vítimas.

Eis, aliás, a segunda regra de sobrevivência em Bagdá: evite multidões. Os ataques costumam ocorrer com maior frequência às sextas-feiras, dia sagrado do Islã, depois das orações nas mesquitas. Pelo menos essa era a lógica até o ano passado. Evite aglomerações, evite sair às sextas e você ficará vivo, me diziam contatos iraquianos, antes de sair do Brasil. Mas as semanas recentes têm mostrado que o terror do EI em Bagdá não tem lógica: os carros-bomba explodem em qualquer lugar, a qualquer hora. Nos últimos meses, os ataques aumentaram. Os especialistas associam esse aumento aos avanços das tropas do governo na região central, em especial em Ramadi, cidade estratégica que foi arrancada das mãos do EI em dezembro. A situação é especialmente delicada porque o país atravessa uma grave crise devido ao rechaço dos blocos políticos à remodelação do governo. A maioria dos grupos, incluindo os curdos e sunitas, boicota reuniões do parlamento desde que, em 30 de abril passado, manifestantes, em grande parte seguidores do xiita Moqtada al-Sadr, invadiram o prédio. A paralisia oficial oferece uma oportunidade para o EI, que está tentando aumentar a instabilidade e aprofundar a guerra civil.

O medo de atentados faz motoristas como Ali fugirem de avenidas movimentadas em horários de pico. Na Karada, uma das principais de Bagdá, ele só trafega à noite ou cedo da manhã, quando o trânsito é menos intenso. Se há muitos carros, fica nervoso, prende a respiração, buzina para o motorista da frente andar.

– Nem minha família trago por aqui. Não vou levar você – diz Ali.

Para escapar de congestionamentos, ele toma a Avenida Abu Nawaz, que margeia o Tigre. A tensão é transferida ao passageiro. A cada tranqueira, suspiro, fico impaciente, torço, sinceramente, para que o veículo ao lado não seja um carro-bomba. Beira a neurose, eu sei. Mas Bagdá é uma cidade de neuroses.

– Aqui, matam por cabeça. Quanto mais cabeças, melhor para eles – afirma Ali.

Não são apenas os checkpoints que partilham Bagdá. Desde a invasão americana, foi criada em 2003 uma área de 10 quilômetros quadrados na margem ocidental do Tigre, uma região superfortificada e isolada. Na Zona Verde, ou Zona Internacional, está a maioria das sedes dos ministérios, alguns dos suntuosos palácios de Saddam, o prédio do governo e a maior embaixada dos EUA no mundo: um colosso de US$ 592 milhões, onde trabalham mil funcionários – chegaram a ser 16 mil, cinco anos atrás. No cinema, a Zona Verde virou filme homônimo do diretor Paul Greengrass, com Matt Damon no papel de um subtenente do exército americano que procura as supostas armas proibidas de Saddam. Em meio ao caos da guerra, descortinam-se os interesses políticos que levaram o governo George W. Bush a invadir o país.

A Zona Verde da vida real é cercada por estruturas chamadas de T-wall, imensos blocos verticais de concreto, de 3,6 metros, que vão se encaixando uns aos outros e formam uma barreira de proteção. Os pontos de entrada dão acesso restrito a uma determinada área, nunca a todas. A primeira camada, por exemplo, faz a contenção de manifestações. A segunda, de carros-bomba. Na terceira, você está no coração do poder iraquiano.

Ali Kahdem, motorista de ZH nesta viagem, morou nove anos em São Paulo. Na foto, está ao lado da mulher, Ashjan, e da filha Ay. A família mora em Cidade Sadr

Ministério da Defesa fica dentro da Zona Verde, uma superfortificada área em Bagdá, onde estão os principais símbolos iraquianos, como o Arco da Vitória e a águia

Ingressar aqui exige credencial especial. Cidadãos “normais” não entram. Como se estivéssemos em um gigantesco quartel, soldados fazem exercícios, correm ao lado de poucos carros. Ao contrário do resto de Bagdá, onde a lei da buzina vigora nos cruzamentos, há sinalização e respeito às leis de trânsito. Um dos cartões de visitas desse oásis de ruas limpas, asfalto impecável e canteiros com grama bem cuidada é o famoso monumento com duas espadas gigantes cruzadas sobre a avenida, o Arco da Vitória inaugurado em 1989 para comemorar a “derrota” do Irã para o Iraque. Os punhos foram confeccionados a partir de moldes de Saddam. Como uma praça da apoteose, o local servia de passarela para desfiles militares do ditador.

Sou levado no comboio diplomático a um encontro com dois generais no Ministério da Defesa, dentro da Zona Verde. O plano é pedir permissão para ir a Ramadi, cidade no centro do Iraque arrancada das mãos do Estado Islâmico após oito meses de ocupação. É o trunfo de um governo que, apesar de cambaleante devido à crise política, está vencendo a guerra contra o EI. O Pentágono afirma que entre 25% e 30% da área sob domínio do grupo extremista no país foi recuperada, após ataques aéreos da coalizão internacional e das forças iraquianas.

Ramadi é o troféu dessa vitória momentânea. A cidade é a capital de Anbar, a maior província do Iraque, dividindo fronteira com Síria, Jordânia e Arábia Saudita. Ao reconquistar a região, o governo recupera a imagem do exército iraquiano, criticado por perder amplas faixas de território para os jihadistas. Ao mesmo tempo, corta a logística do EI entre Fallujah e a Síria.

– O Daesh se sente caído, está desnorteado – diz o general Yehia Rasoul Al-Zulbedy.

O oficial usa a expressão Daesh, um acrônimo árabe de al-Dawla al-Islamiya fil Iraq wa’al Sham (Estado Islâmico do Iraque e do Levante, nome oficial do grupo). Daesh é também um trocadilho. Soa parecido com dahes, que significa “aquele que semeia a discórdia”. Ou seja, é uma maneira de os iraquianos negarem a qualidade de “Estado” ao grupo e insultarem os terroristas. Nos escritórios de governo, nas ruas de Bagdá, não se usa Estado Islâmico ou Isis (a sigla em inglês). Para conquistar a confiança de um iraquiano, é preciso utilizar o desprezível e pejorativo Daesh. Líderes ocidentais como o presidente francês, François Hollande, e o americano, Barack Obama, já adotaram o termo.

Não há promessas de ida a Ramadi. O governo iraquiano tem interesse em mostrar que controla a cidade, mas não há domínio total. E levar um jornalista a uma região onde há ainda confrontos é uma operação de risco.

Antes da despedida, os militares mostram com orgulho uma sala de operações com monitores sintonizados em canais internacionais de notícias, computadores e uma equipe de redes sociais.

– Esse é o nosso centro de mídia – antecipa-se o general Rasoul.

Ele quer saber o que acho da guerra da informação. Entende que o Daesh é bom de marketing e que vencer a batalha da propaganda terrorista é tão importante quanto ocupar terreno em solo.