A amedrontadora sinfonia dos Blackhawk em Bagdá

No meu retorno a Bagdá, aproveito a folga do motorista Ali no sábado, 14 de maio, para caminhar sozinho pelos arredores do hotel Babylon. Sinto uma certa liberdade, depois de uma semana. Caminho com naturalidade por algumas avenidas. Mas minha tranquilidade dura pouco. A ditadura caiu, mas o país tem resquícios autoritários impregnados na cultura estatal, militar, policial e entre a população. Um exemplo: quando passa pelos checkpoints de Bagdá, Ali baixa o vidro do carro.

– É um sinal de respeito ao militar que está ali fora, passando calor, e a gente aqui, com ar-condicionado ligado – explica.

Apesar de o sábado ser um dia útil normal no Iraque, há menos gente na rua. Com isso, o infernal barulho das buzinas diminui. Um que outro motorista insiste em fazer ruído, mesmo que não haja ninguém pela frente. Avisto um prédio com as janelas destruídas por um atentado. Aponto a câmera, permito-me demorar um pouco para buscar o melhor ângulo. Passam-se dois minutos, e um homem grita do outro lado da rua:

– Hey, man!

Afasto-me em direção ao hotel, mas ele atravessa a Avenida Karada na minha direção. Baixo a câmera, e resolvo esperar para entender o motivo da reclamação.

– Brazili sahafi (jornalista brasileiro) – digo, no pouco árabe que aprendi nesses dias.

Ele quer saber por que estou fotografando. Sem ter como explicar sem a ajuda de Ali, mostro a carteirinha de jornalista. Ele olha desconfiado, segue falando e me “libera”. Decido voltar ao hotel e esperar por Ali. Ao contar o que acontecera, meu motorista é generoso com os conterrâneos:

– As pessoas estão com medo...

Para mim, parecia qualquer coisa. Menos medo. Outro dia, no poeirento centro de Bagdá, já havia experimentado a desconfiança dos iraquianos. A rua Rashid tinha tudo para ser um local turístico. É um dos grandes marcos modernos da metrópole, indo de Bab Al-Muadham (Portão do Sultão), no norte da cidade, até a Bab Al Sharki (Portão Leste), no Sul. Fica na margem oriental do Tigre, a 350 metros do rio em seu ponto mais ocidental. A antes graciosa rua colunada foi concebida, em 1916, para oferecer sombra no inflamado calor do verão iraquiano, hoje é sombria: fachadas velhas, emaranhado de fios de energia elétrica,  marquises podres pouco lembram a era de ouro de Bagdá, de cafés e intelectuais a suas mesas. A história sangrenta da cidade está escrita ali, no centro da avenida. Um portão do antigo prédio do Ministério da Defesa lembra o local onde, em 1945, foi enforcado o coronel Salahadin Al-Sabbagh, líder do fracassado golpe de 1941 contra a monarquia.

A vingança não demorou. Durante a quartelada de 14 de julho de 1958, que fez ruir o governo iraquiano e acabou com a monarquia, o cadáver do príncipe herdeiro Abdullah – que sancionara pessoalmente a execução do coronel e agora havia sido morto junto a seu sobrinho de 23 anos, o rei Faiçal II, e o resto da família real – foi arrastado pela via, cortado em pedaços e pendurado no portão em frente.

Impregnado por essa história, saco o celular do bolso e começo a gravar. Imediatamente, um policial aproxima-se de nós em uma motocicleta.

– Apague o vídeo – ordena.

Por um instante, havia esquecido que o Iraque não é lugar para turismo. Infelizmente.

Minha última madrugada em Bagdá, 15 de maio, domingo, tem como trilha sonora o barulho do rotor dos helicópteros Blackhawk americanos sobre o hotel Babylon. Sem luzes, para evitar serem alvejados da terra, eles sobrevoam, sorrateiros, a noite de lua clara. Ao olhar para o céu, vejo-os como imensos pássaros negros circundando a capital em uma série de decola-aterrissa do outro lado do rio, na embaixada dos EUA. Por mais que a vida resista em Bagdá, o matraquear das máquinas americanas nos lembra que aqui ainda é – e continuará sendo por algum tempo – uma cidade de guerra.

UMA BREVE HISTÓRIA

2003

• A invasão

Os EUA invadem o Iraque e derrubam Saddam Hussein sob o pretexto de haver armas de destruição em massa, suspeita jamais confirmada.

É instaurado um regime apoiado

por exilados xiitas. Revoltada,

a minoria sunita dá início a uma

guerra civil. O jordaniano

Abu Musab al-Zarqawi lidera

a insurgência iraquiana.

 

2006

• O embrião

Em janeiro, a rede Al-Qaeda no Iraque

passa a atuar com vários grupos insurgentes menores sob o comando de uma organização chamada Conselho Shura Mujahideen. Al-Zarqawi é morto em ataque aéreo dos EUA. Seu sucessor é o egípcio Abu Ayyub al-Masri. O grupo une-se a três organizações e seis tribos sunitas e institui o Estado Islâmico do Iraque.

 

2013

• A execução

O iraquiano Abubakr al-Baghdadi cria o Estado Islâmico no Iraque e na Síria (EI). O grupo, que se torna conhecido pela crueldade, recorre ao recrutamento de combatentes pela internet e ao sequestro de ocidentais. O repórter americano James Foley é executado em frente às câmeras.

2015

• O terror

Em 2015, a área de influência do Estado Islâmico atravessa fronteiras da Síria e do Iraque, e as ações internacionais se amplificam. Em 7 de janeiro, ocorre o atentado contra o jornal satírico francês Charlie Hebdo, com 12 mortos. Em 10 de outubro, dois suicidas atacam no centro de Ancara, na Turquia: 102 mortos e mais de 400 feridos. Um avião russo com 217 passageiros e sete tripulantes cai no norte do Sinai, no Egito. Em 13 de novembro, uma série de atentados terroristas mata pelo menos 137 pessoas em Paris e Saint-Denis, na França. Paralelamente às investidas no Ocidente, o EI perde terreno no Oriente. Em dezembro, sofre seu mais duro golpe em meses: após batalha, com apoio de bombardeios da coalizão liderada pelos EUA, os iraquianos retomam a cidade de Ramadi.

2004

• O rompimento

Em outubro, o grupo de Al-Zarqawi rompe oficialmente com a rede terrorista Al-Qaeda, de Osama bin Laden, criando a rede Al-Qaeda no Iraque.

 

2010

• A ascensão

Em abril, Abu Ayyub al-Masri e Abu Omar al-Baghdadi são mortos em um ataque conjunto EUA-Iraque perto de Tikrit. Em maio, o iraquiano Abu Bakr al-Baghdadi foi apontado como o novo líder do Estado Islâmico do Iraque.

 

2014

• O Califado

O Estado Islâmico proclama um califado (regime islâmico tradicional, oficialmente abolido desde o surgimento da República da Turquia, nos anos 1920) na área sob seu controle no Iraque e na Síria. O EI avança por áreas sunitas até 60 quilômetros de Bagdá.

2016

• O Califado

Em 12 de janeiro de 2016, na turística Praça Sultanahmet, centro de Istambul, na Turquia, um atentado suicida mata 11 pessoas. Em 22 de março, suicidas atacam no aeroporto e no metrô de Bruxelas, capital da Bélgica: 35 mortos, incluindo os três suicidas. Eles haviam sido treinados pelo EI. Nos EUA, o Pentágono afirma que o EI perdeu mais de um quarto de seu território no Iraque. Com a derrocada, os militantes intensificam ataques com carros-bomba a Bagdá.

O hotel Babylon, na margem oriental do rio Tigre, fica de frente para a embaixada dos EUA. A todo momento passam helicópteros americanos a nos lembrar que o país ainda vive em guerra

No alto do pedestal da Praça Firdus,ficava a estátua de Saddam Hussein derrubada pelos americanos com ajuda da população em março de 2003

Bagdá exibe marcas dos sucessivos conflitos e dos anos de autoritarismo. Fotografar a capital é difícil, seus moradores desconfiam de estrangeiros. Uma técnica habitual do Estado Islâmico é registrar imagens antes e depois de atentados