IMPRENSA FOI CONVOCADA

POR BILHETES CIFRADOS

O sequestrado Jorge Born havia sido levado para uma elegante casa na localidade de Acassuso. O endereço ocultava uma estranha relação entre montoneros e policiais corruptos. Um dos donos do imóvel trabalhava como agente duplo e ganhava dinheiro com sequestros. A escolha da casa soou como irônica coincidência pelo nome da rua: Liberdade. Mas a data foi muito bem calculada. Naquele 20 de junho, completavam-se dois anos do retorno à Argentina do ídolo montonero, Juan Domingo Perón, após 18 anos de exílio.

Os montoneros anunciariam o fim do sequestro para a imprensa estrangeira. Os meios de comunicação locais não participariam. A censura do governo de Isabel Perón impedia o noticiário de atos de organizações armadas.

Convidados por meio de bilhetes cifrados deixados nas redações, 15 correspondentes internacionais foram guiados até o endereço do evento por recados deixados atrás de espelhos de banheiros de bares. Chegando à casa, os repórteres foram revistados por guerrilheiros armados e recepcionados com empadas e vinho El Montonero – produzido havia três décadas, bem antes da criação do grupo terrorista. Os jornalistas souberam o motivo do brinde ao perceber cadeiras enfileiradas para um pronunciamento de Mario Firmenich. Os repórteres fariam anotações, mas perguntas estavam limitadas e imagens, proibidas. Os montoneros forneceriam fotos e gravações em vídeo feitas por eles mesmos. Firmenich anunciou o fim do sequestro e do "julgamento" da Bunge & Born, condenada a pagar US$ 60 milhões sob acusação de monopólio, aniquilar pequenos concorrentes e obter vantagens comerciais por estreitas relações com o governo.

O guerrilheiro lamentou que a quantia era pequena diante da imensa tarefa de os montoneros liderarem uma frente de libertação nacional que assumisse o país. Mandou chamar Jorge para ser apresentado à imprensa. Até então, os jornalistas desconheciam a libertação de Juan, ocorrida três meses antes. Com a roupa sobrando no corpo, semblante abatido e óculos escuros, Jorge encontrou ânimo para descontração. Disse que se sentia bem. Leu muito nos nove meses, mas, por azar, só textos comunistas. E fez uma brincadeira:

 

– Se me deixassem mais tempo, quem sabe, me tornaria um montonero.

 

Mesmo sem permissão, perguntaram a Jorge quais eram seus desejos para o futuro. Ele respondeu: comemorar 41 anos – que completaria em dois dias – e viver em paz com a família na Argentina. A entrevista acabou ali. Firmenich estendeu a mão para a despedida, mas Jorge permaneceu imóvel, indignado pela extorsão dos US$ 60 milhões e pela morte do amigo Bosch.

Um montonero avisou que Jorge seria libertado na estação de trem Acassuso e convocou testemunhas. Dois repórteres se candidataram, Luis Guagnini e Andrew Graham-Yooll. Os três embarcaram no banco traseiro de um Ford Falcon cinza, estacionado no pátio da casa – mesma cor do veículo do qual fora sequestrado em 19 de setembro de 1974. À frente, dois guerrilheiros, armados com metralhadoras e usando perucas para não serem reconhecidos, mandaram os passageiros fechar os olhos.

Na chegada à estação, Jorge foi autorizado a descer e caminhar cem metros sem olhar para trás. Foi seguido pelos repórteres, mas não queria saber de conversa. Guagnini apenas comentou, admirado, que US$ 60 milhões eram "mucha plata".

Compadecido com o drama de Jorge, Graham-Yooll deixou passar a oportunidade de uma entrevista histórica. Só teve coragem de se oferecer para comprar alguma coisa para Jorge, sem um tostão no bolso. O empresário recusou. Temia que fossem montoneros disfarçados. Estava certo em relação a um deles. Simpático com a guerrilha, Guagnini trabalhou no jornal El Cronista Comercial e clandestinamente na revista Evita Montonera antes de desaparecer nos porões da ditadura, em 1977.

Graham-Yooll era repórter do Buenos Aires Herald, diário matutino editado em inglês que pertencia a um grupo dos EUA. De pai escocês e mãe inglesa, se exilou no Reino Unido em 1976. Anos depois escreveu um livro sobre o que viu no dia da libertação de Jorge e voltou para a Argentina, testemunhando contra Firmenich no processo do sequestro.

Dois carros da Bunge & Born esperavam por Jorge. Um veículo deu carona aos jornalistas. Jorge embarcou no outro. Em conversa com o motorista, o empresário descobriu que só poderia realizar um dos seus desejos: festejar os 41 anos. Viver na Argentina se tornara impossível. Acabava de sair do cativeiro e iria para a cadeia. A notícia da libertação dele corria o planeta, e as autoridades argentinas, revoltadas com US$ 60 milhões no caixa dos montoneros, queriam a sua prisão como financiador de atividades terroristas.

Jorge foi escondido em um apartamento. Na madrugada seguinte, enquanto capas de jornais mundo afora estampavam o fim do sequestro e fotos dele e de Juan, era levado em um avião particular até Punta del Este, no Uruguai, para reencontrar familiares. Na região de Córdoba, funcionários da Bunge & Born e montoneros com uniformes de operários pendurados em caminhões acordaram moradores, entregando sacos de arroz, latas de azeite e de conservas, frutas e cobertores. Um guerrilheiro anunciava com megafone:

 

– Companheiros, venham até aqui. Estão devolvendo o que o grande capital rouba do povo.

 

Em Punta del Este, Jorge reencontrou a mulher, os quatro filhos, o pai e a mãe. Juan se mudara para a Alemanha, e um irmão caçula, doente, se tratava na Espanha. Em alguns momentos, Jorge se sentiu um estranho entre os familiares. Estava traumatizado pela morte de Bosch e percebia que não era a mesma pessoa de antes. Em Buenos Aires, balançava o governo de Isabel Perón por conta do descontrole do país, economicamente no fundo do poço, sob conspiração de militares e fragilizado pelo terrorismo.

REPRODUÇÕES DA REVISTA
EVITA MONTENERA