A TRAVESSIA

A TRAVESSIA

No quarto ano da guerra, com a saída para o mar em Rio Grande bloqueada pelos imperialistas, os farroupilhas deflagraram uma ousada estratégia militar: transportariam barcos tracionados por bois por quase cem quilômetros de terra. Com o aval de Bento Gonçalves, o italiano Giuseppe Garibaldi e seus homens lançaram-se no inverno de 1839, a bordo do Seival e do Farroupilha, pela Lagoa dos Patos rumo a Laguna. Nesta expedição, ZH refaz o percurso dos farrapos para recolher histórias, rememorar tradições e revelar contradições de uma das fases mais extraordinárias do conflito que cindiu Rio Grande do Sul e Santa Catarina do resto do Brasil.

Texto e roteiro

Rodrigo Lopes

rodrigo.lopes@zerohora.com.br

Imagens e roteiro

Jefferson Botega

jefferson.botega@zerohora.com.br

Editor de vídeos

Luan Ott

luan.ott@zerohora.com.br

Programação

Hermes Wiederkehr

hermes.wiederkehr@zerohora.com.br

RIO CAMAQUÃ CAPIVARIDO SUL RIO TRAMANDAÍ JAGUARUNA LAGUNA
A partida no rio Camaquã

Às 10h do dia 2 de novembro de 2011, feriado de Finados, Daurélio Braga da Cunha, então com 53 anos, e dois filhos, Ataídes, 28, e Leonardo, 14, entraram em um barco em Itapuã, Viamão, e seguiram em direção a Palmares do Sul. Era uma viagem habitual para o pescador, que, desde a infância, conhece os traiçoeiros bancos de areia da Lagoa dos Patos. Perto das 15h, entre os pontais da Deserta e do Anastácio, a embarcação bateu em um obstáculo na água. O casco de madeira se rompeu, e o barco começou a afundar. Era o início de 15 horas de angústia para pai e filhos, que ficaram à deriva. Só foram resgatados na manhã seguinte porque, antes de o celular submergir nas águas barrentas, Ataídes fez um rápido telefonema para a mulher, passando as coordenadas do GPS do local do naufrágio.

— Estávamos juntos. Um passava confiança para o outro — lembra Daurélio, que mora na margem do Riacho Palmares. A traição da lagoa faz o pescador admirar ainda mais a história que todo estudante do município do Litoral Norte decora desde os primeiros anos na escola. Próximo do local onde Daurélio e os filhos lutaram por sobrevivência, o corsário italiano Giuseppe Garibaldi começara, em 1839, a despistar a frota imperial no seu encalço desde a saída dos barcos Seival e Farroupilha de Camaquã. — Foi uma proeza. Hoje, temos GPS, mas, na época, tinha de subir no mastro do barco para ver onde era possível passar. Foi muito corajoso — elogia Daurélio.

Era o quarto ano de guerra, e a República Rio-grandense encontrava-se em um inverno de indefinições. O governo imperial controlava dois enclaves estratégicos: Porto Alegre e Rio Grande, impedindo o acesso dos farroupilhas ao Atlântico. Em busca de um porto para escoar a produção, o general Bento Gonçalves e seu alto comando decidiram estender a revolução para Santa Catarina. Já haviam ocupado Lages duas vezes e, em Laguna, havia simpatizantes do movimento republicano. Mas como chegar até o mar, se as principais saídas estavam bloqueadas?

"Propus a construção de duas carretas — grandes o suficiente e resistentes o bastante para que se colocasse um lanchão sobre cada uma delas — e a atrelagem de bois e de cavalos na quantidade necessária para puxá-las".

Descrita pelo próprio Garibaldi em suas memórias ditadas ao escritor Alexandre Dumas, a ideia de transportar barcos sobre terra soava mirabolante.

— Esse gringo é louco, pensara David Canabarro — cogita a pesquisadora Maria Cardoso Faistauer, coautora do livro A Saga de Garibaldi no Capivari.

A estratégia poderia ser ousada, mas não era inédita. Em menor escala, havia sido deflagrada na Antiguidade pelo general romano Marco Antônio, e por Mohamed II, o Sultão. Com o aval de Bento, Garibaldi, então com 26 anos, construiu os dois barcos na Estância da Barra, propriedade de uma irmã do presidente rio-grandense às margens do Rio Camaquã. Naquele inverno de 1839, cruzaram a Lagoa dos Patos, ingressaram na Lagoa do Casamento, próximo a Palmares do Sul, e esgueiraram-se pelas curvas do Rio Capivari. Ali, onde os barcos imperiais não conseguiam entrar porque eram grandes demais, foram construídos rodados e carretas. Cerca de 200 bois foram arrebanhados. A epopeia seguiu por seis dias entre campos, areais e banhados até a Lagoa Tomás José, em Tramandaí. De lá, os barcos voltaram para a água em direção ao mar. Depois de perder um dos lanchões, o Farroupilha, na altura de onde hoje fica Jaguaruna, no litoral catarinense, Garibaldi surpreende os imperiais com o Seival pela foz do Rio Tubarão em Laguna. Os legalistas esperavam o ataque por mar, através da barra. Por terra, as tropas de David Canabarro ocuparam a cidade. O comandante imperial, coronel Vicente Paulo de Oliveira Vilas Boas, bateu em retirada, após batalha que deixou 18 mortos e 77 prisioneiros. No dia 29 de julho, Canabarro proclamou a independência da República Catarinense.

Durante três semanas de agosto de 2017, ZH refez o percurso de Garibaldi e seus lanchões, por terra e água. No trajeto, reconstruímos, a partir de relíquias históricas, relatos de moradores e pesquisadores além de documentos, a epopeia de Garibaldi até hoje admirada por estrategistas militares. No caminho da expedição, descobrimos que o episódio do naufrágio do barco Farroupilha (também chamado de Rio Pardo) pode ter sido provocado por um acidente geográfico conhecido dos surfirstas e pescadores de Jaguaruna. Também pudemos perceber, in loco, o que houve quando Garibaldi chegou a Laguna, destino alcançado pela expedição e local onde o italiano viveu uma paixão tórrida por Ana Maria de Jesus Ribeiro, a Anita.

Até hoje a imagem de dois barcos em cima de carretas puxadas por cem juntas de bois singrando banhados entre Capivari do Sul e Tramandaí povoa o imaginário dos gaúchos. Velozes, o Seival e o Farroupilha aproveitavam os ventos na Lagoa dos Patos para driblar os navios imperiais. Também eram pequenos e de baixo calado, capazes desviar dos bancos de areia, como o que pode ter causado, 172 anos depois, o naufrágio do pescador Daurélio e seus filhos, de Palmares do Sul.

O mais ousado plano farroupilha foi tramado entre figueiras centenárias, em um naco de terra na imensidão de 90 mil hectares de propriedades da família do general Bento Gonçalves. Investido como tenente-capitão da República Rio-grandense, Garibaldi chegou à Estância da Barra, residência de dona Antônia, irmã de Bento, em uma curva do Rio Camaquã, no inverno de 1839. Estava acompanhado de 30 marujos europeus. Foi em uma festa de família que o italiano se enamorou de Manoela Ferreira, sobrinha do presidente rio-grandense e paixão platônica que nunca fora permitida pelo general.

"As mulheres do Rio Grande são geralmente lindíssimas e, num sentido galante, os nossos homens fizeram-se os seus vassalos, ainda que nenhum deles, posso afirmar, rendesse à sua musa um culto tão divinizante quanto o meu por Manoela".

Em foto registrada pelo fotógrafo Jonh King, o estaleiro onde o Seival e o Farroupilha foram construídos, em Camaquã.

Foi na estância de dona Antônia que os farrapos, até então restritos à luta em terra, ergueram um estaleiro para construção de barcos. Ao pilhar embarcações mercantes pela Lagoa dos Patos, a incipiente marinha rio-grandense preocupou o império a ponto de o estaleiro ser atacado pelo coronel Francisco Pedro de Abreu, o célebre Moringue, em abril de 1839. Garibaldi relata em suas memórias que teve o pala perfurado por um golpe de lança, mas alcançou os fuzis e passou a repelir a ofensiva. O plano da travessia até Laguna foi acelerado.

— Essa área é perto da Lagoa dos Patos e tinha mata abundante. Eles (os farrapos) usaram essa madeira para os barcos — conta o proprietário do local e tetraneto de Bento, o empresário Raul Justino Ribeiro Moreira, 54 anos.

Os lanchões, com entre 15 e 18 toneladas, foram construídos de forma improvisada. Garibaldi narrou que dois ou três carpinteiros talhavam a madeira, enquanto um serviçal da estância forjava o ferro, desde os pregos até as argolas dos mastros. A data da partida não é precisa, mas acredita-se que era início de julho de 1839. Garibaldi comandava o barco Farroupilha, a nau capitânia da expedição. Um mercenário americano, John Griggs, liderava o Seival. No total, eram 70 homens.

Nada sobrou do estaleiro que serviu de ninho para as duas naves de Garibaldi. Moreira mandou confeccionar uma placa de metal para marcar o local exato do prédio, mas temendo vandalismo, prefere guardá-la em casa, em Porto Alegre. Também pensou em reconstruir a oficina e o arsenal. Anos atrás, contatou arquitetos ligados ao patrimônio histórico e elaborou uma planta do estaleiro. Usou como inspiração o registro do fotógrafo inglês John King, em 1896. Comprou tijolos para a obra, mas até hoje não tirou o projeto do papel. Tem dúvidas sobre a viabilidade turística, já que a fazenda, a 50 quilômetros da entrada do município de Camaquã, é de difícil acesso.

— Infelizmente, nosso Estado não dá valor à cultura. A gente investe, mas poderia se tornar mais uma coisa para cair — lamenta.

Rio Camaquã, trecho de onde Garibaldi e seus homens saíram da Estância da Barra. Ao fundo, a Lagoa dos Patos

Estância da Barra, local de onde os barcos Seival e Farroupilha saíram para a ocupação de Laguna

Rio Camaquã, primeiro trecho de navegação dos barcos de Garibaldi para a epopeia

Rio Camaquã, próximo à Estância da Barra, onde o Seival e o Farroupilha foram construídos

Raul Justino Ribeiro Moreira, 54 anos, tetraneto de Bento Gonçalves e proprietário da área onde ficava o estaleiro

Ave na região no encontro do Rio Camaquã com a Lagoa dos Patos

Estância da Barra, local de onde os farrapos saíram com os barcos para a viagem até Laguna

Raul Justino Ribeiro Moreira, 54 anos, tetraneto de Bento Gonçalves, caminha pela foz do Rio Camaquã

Raul Justino Ribeiro Moreira, 54 anos, tetraneto de Bento Gonçalves, caminha pela foz do Rio Camaquã

Aves na região no encontro do Rio Camaquã com a Lagoa dos Patos

No Capivari, barcos em terra

"Numa das extremidades do lago (no limite oposto ao do povoado de Rio Grande, ou seja a nordeste) existe, no fim de um córrego, um pequeno arroio (…)"

O fio de água a que Garibaldi se refere em suas memórias é o Rio Capivari, onde estamos praticamente encalhados na manhã de 22 de agosto de 2017. Vilmar Pacheco da Silva, 70 anos, o capitão da lancha Pássaro Livre, força o motor de 135 HP para vencer a vegetação da superfície, que se enrola nas hélices. Os bancos de areia dificultam a passagem da embarcação de 28 pés. O vento nordeste, conhecido dos veranistas, castiga. A Lagoa do Casamento, por onde o Seival e o Farroupilha passaram em 1839, está em boa parte assoreada.

— No tempo do Garibaldi, por incrível que pareça, era mais fácil. As águas eram mais profundas — compara Vilmar, o Canecão, enquanto imprime maior velocidade ao motor, que faz levantar a água barrenta do rio.

Foi justamente aproveitando-se da pouca largura e dos baixios do Capivari que Garibaldi ludibriou a frota imperial naquele julho de 1839. Ao avistar o Farroupilha e o Seival embrenhando-se pelas curvas do sinuoso rio, de profundidade máxima de quatro metros e meio, os imperiais imaginaram que a marinha farrapa estava encurralada: "Os engarrafados do Capivari ficavam para depois", teriam pensado os legalistas, nas palavras de Lindolfo Collor, autor do livro Garibaldi e a Guerra dos Farrapos. A prioridade era destruir o estaleiro de Camaquã.

À época da travessia, quando os barcos de Garibaldi encalhavam, ele ordenava aos marujos: "Vamos, meus patos, à água!". E os tripulantes, conforme suas memórias, jogavam-se na lagoa, erguiam os lanchões e o carregavam até o outro lado do banco de areia. Vilmar, experiente navegador do Capivari, imagina dar a mesma ordem a nós, seus tripulantes, mas nos poupa. Sugere que desembarquemos em uma ilha a fim de reduzir o peso da lancha. Combinamos de nos encontrar na outra margem. A caminhada no mato fechado dá uma ideia de como Garibaldi e seus homens ocultaram, por debaixo das árvores das margens, as naves. Mais leve, a embarcação de Vilmar supera os bancos de areia.

O Capivari é hábitat de capivaras, que fogem diante do ronco do motor. Peixes saltam sobre a superfície. O local exato de onde Garibaldi teria iniciado a viagem por terra fica atualmente no interior de uma propriedade rural que pertenceu ao músico Teixeirinha, o Rancho do Capivari, hoje propriedade da prefeitura de Capivari do Sul. Um marco a 300 metros da ponte da RS-040 lembra o suposto local onde, no dia 5 de julho de 1839, os barcos de madeira saíram das águas. Conta a história que um carpinteiro local, Joaquim de Abreu, coordenou a construção das rodas. Não há registro no cemitério de Capivari do Sul dos restos mortais do homem que teria auxiliado Garibaldi. Pesquisadores locais também desconhecem familiares do ilustre morador que ganhou citação de Garibaldi nas memorias ditadas a Dumas.

Falecido em 2009, o suíço naturalizado brasileiro Wolfgang Ludwig Rau deixou uma pesquisa profícua sobre a saga de Garibaldi no livro Anita Garibaldi, o Perfil de uma Heroína Brasileira, de 1975, no qual descreve detalhes da estratégia incomum: cada carreta tinha quatro rodas, de dimensões muito maiores que as comuns na época, de dois metros de diâmetro. Garibaldi não dispunha de ferro, nem de uma indústria avançada pois as cidades onde poderia encontrar esses elementos estavam em mãos imperiais. Os eixos provavelmente eram madeira lubrificada com graxa animal.

A pesquisadora Maria Cardoso Faistauer, coautora do livro A Saga de Garibaldi no Capivari, emociona-se ao imaginar homens cavando com mãos enrijecidas pela água gelada até o grito "Eira boi", que fez pescoços dos animais se esticarem, os cascos do Farroupilha e do Seival se moverem lentamente e as águas do Capivari borbulharem.

— Imagino que as lágrimas da alegria daquele povo, que se misturavam com a água que caía do casco do navio. O restante o próprio Garibaldi narrou:

"Os moradores do lugar deleitaram-se com um espetáculo invulgar e bizarro: duas naves atravessando em carretas puxadas por duzentos bois um espaço de cinquenta e quatro milhas ou dezoito léguas — e tudo isso sem a menor dificuldade, sem um mínimo acidente".

Normalmente narrada em coxilhas manchadas de sangue, a história Revolução Farroupilha passava a ser escrita também no litoral norte do Rio Grande do Sul. O episódio de Garibaldi em Capivari do Sul é lembrado a cada dois anos em encenação organizada pela prefeitura. Duas réplicas em tamanho original dos lanchões foram construídas para o espetáculo. Estão guardadas em um galpão. Uma delas, a menor, apresenta buracos no casco.

— Não temos incentivos para a cultura. Na primeira saga, as roupas dos farroupilhas foram feitas com forro de cortinas doadas pelas famílias. Depois, fomos nos organizando, e, agora, já temos as roupas dos republicanos, dos lanceiros, dos farroupilhas. Com muito sacrifício, fizemos espadas e lanças — relata a secretária de Educação de Capivari do Sul, Nora Helena Nunes.

Lagoa de Tramandaí, ao fundo. Ponte Giuseppe Garibaldi, que divide os municípios de Tramandaí (E) e Imbé

Rio Capivari, próximo ao local, em Capivari do Sul, onde Garibaldi tirou os barcos da água e iniciou viagem por terra até Tramandaí

Marco na margem do Rio Capivari lembra a façanha de Garibaldi. Estância pertenceu ao músico Teixeirinha

Rio Palmares, em Palmares do Sul

Lagoa de Tramandaí

Lagoa Tramandaí

Ave na regiao de Tramandaí

Estância do Capivari, em Capivari do Sul, local onde os lanchões de Garibaldi deixaram o rio

Após passarem pela foz do Rio Tramandaí, os lanchões ganharam o mar

Réplicas dos rodados construídos em Capivari do Sul para os barcos de Garibaldi são usadas em apresentação no município a cada dois anos

Rio Capivari, em Capicari do Sul

Adelandre de Barcellos Linhares, 50 anos, navega desde os 15 pelas lagoas do Litoral Norte

Fauna do Litoral Norte gaúcho

Ponte Giuseppe Garibaldi, entre Imbé e Tramandaí

Lagoa de Tramandaí

Em Tramandaí, a saída para o mar

Um marco com uma placa de letras esmaecidas é ignorado pela maioria dos veranistas que, nos meses de verão, cruzam de um lado para o outro a ponte entre Tramandaí e Imbé. Não é incomum crianças pisarem em cima do marco de cimento que aponta o local por onde o Seival e o Farroupilha adentraram no mar. A ponte, construída nos anos 1950 e hoje bastante malconservada, foi batizada de Giuseppe Garibaldi.

A vantagem dos pequenos e rápidos lanchões nas lagoas seria colocada à prova em mar aberto. Até hoje, a barra do Rio Tramandaí é o ponto mais perigosos do Litoral Norte para banho, segundo a Brigada Militar. O rio enche e traz areia para o mar, formando bancadas. O oceano busca um espaço para voltar, e esse lugar forma a corrente de retorno, que estoura os bancos de areia e cava buracos fundos, com repuxo. Conhecedor do sistema de lagoas do Litoral Norte, o empresário Adelandre de Barcellos Linhares, 50 anos, navega desde os 15 pelo local. Ele imagina a dificuldade de ultrapassar esse ponto no século 18:

— A gente tem de imaginar que a barra do Rio Tramandaí não estava fixa ainda. Tinha um rio com mais de um braço saindo para o mar. Havia partes mais fundas e outras mais rasas. Provavelmente, alguns cavaleiros iam na frente medindo o caminho. E, quando entram no mar, enfrentam muita dificuldade, sem motor, só na vela. Provavelmente, tiveram de esperar ventos favoráveis, com homens tendo que entrar no mar para medir o local.

Para os farrapos, chegar até aqui aqui já era uma vitória. Afinal, a ideia de transportar barcos tracionados por bois dera certo. Foram seis dias de viagem por terra, ao longo de 54 milhas, entre Capivari do Sul e a Lagoa Tomás José, hoje Lagoa do Armazém, "sem um mínimo acidente". Há dúvidas sobre o local exato onde os barcos foram reposicionados na água, mas a maioria dos pesquisadores aponta a margem próxima ao Terminal Marítimo Almirante Soares Dutra (Tedut) da Petrobras, em Osório.

Enquanto nos guia em barco inflável pela Lagoa de Tramandaí, Lande surpreende-se com o assoreamento do manancial. — Essa região está bastante rasa. É uma hidrovia que o Garibaldi utilizou naquela época e que hoje, em função de não haver um desassoreamento, a gente não tem mais acesso — lamenta o navegador, que já desenvolveu vários projetos tentando resgatar o turismo por água entre Osório e Torres.

Estamos no meio da lago, e a profundidade não supera dois palmos. Conforme o professor Elírio Toldo Júnior, especialista em Geologia Costeira e Oceânica da UFRGS, todos os ambientes costeiros são naturalmente rasos e suscetíveis ao assoreamento, mas a ação do homem deve ter aprofundado o problema.

— A Lagoa de Tramandaí teve modificada a circulação e do nível das águas pela fixação das respectivas desembocaduras. Esse processo de fixação pode causar assoreamentos localizados — avalia.

Naufrágio em Jaguaruna

No contexto da façanha heroica, a história oficial costuma atribuir pouca importância ao naufrágio do barco Farroupilha, comandado por Garibaldi, ocorrido no dia seguinte à saída de Tramandaí, na costa de Santa Catarina. Até hoje, o episódio levanta questionamentos sobre como um exímio marinheiro foi traído pelos mares do sul. O próprio italiano aborda a perda da nau capitânia em suas memórias:

"Às três horas da tarde, naufragamos na embocadura do Urussanga, rio que nasce na Serra do Espinilho e encontra o mar na Província de Santa Catarina (…) Dos trinta homens da tripulação, dezesseis morreram afogados".

O rio Urussanga descrito por Garibaldi encontra o mar na barra do Torneiro, município catarinense de Jaguaruna. Entre os 19,2 mil habitantes atuais, é conhecida a história do navegador italiano, que encontrou nas areias de Campo Grande espaço para reagrupar os sobreviventes e reunir forças para seguir viagem. Por anos, um marco próximo à praia registrou o suposto local do naufrágio. Hoje, não há mais essa marcação. No alto do Morro da Cruz, um busto do italiano, feito em argila, e uma pedra com inscrições rememorando o episódio foram vandalizados.

O engenheiro Evaldo Ávila da Silva, 74 anos, chegou a conhecer o primeiro monumento quando criança. Apaixonado pela história da travessia, ele coleciona jornais antigos que rememoram o feito.

— A história é engraçada. Lembra a história do Lee (Robert E. Lee, comandante confederado na Guerra Civil Americana, cujos monumentos foram derrubados este ano nos EUA por representarem uma ideologia racista). Era um herói, e hoje estão derrubando suas estátuas — afirma. — O Garibaldi foi um aventureiro, na minha opinião. Com capacidade de liderança muito forte.

Surfistas, pescadores e historiadores locais têm explicação que vai além da tempestade para o acidente que quase comprometeu a ofensiva a Laguna. A 5,3 quilômetros da costa, ergue-se no mar o Parcel do Campo Bom, uma formação rochosa submarina que torna a navegação perigosa entre Laguna e Jaguaruna. É como um muro de cerca de cinco quilômetros de extensão, em alguns pontos com apenas meio metro de profundidade. A corrente em direção à praia, ao encontrar a estrutura natural, forma ondas gigantes, que têm atraído surfistas inclusive de outros países. — Há relatos de ondas de até 15 metros — garante João Baiuka, dono de uma pousada próximo ao Farol de Santa Marta.

Praticantes do esporte descobriram o acidente geográfico em 2003. Conhecido pelos surfistas como Laje da Jaguá (de Jaguaruna), o local tornou-se point para competições internacionais de Town-In, quando são usados jet-skis para alcançar as ondulações.

— É cabuloso, a laje está muito exposta fora da costa, tem uma bancada muito rasa, que fica a dois metros de profundidade, então, em dias de tempestade, ela acaba formando uma imensa onda ali. Quem não conhece a localização se assusta.

Com o passar do tempo a laje é uma grande riqueza para a pesca, porque forma uma espécie de corredor para cardumes, que fazem a alegria de pescadores da Praia do Cardoso, como Timoteo Peixoto, 73 anos.

— Já pegamos muitos temporais ali. Agora não mais, porque sabemos a previsão do tempo. Mas antes levava até quatro horas para se chegar na praia — lembra.

O pesquisador Elírio Toldo Júnior, da UFRGS, explica que os parcéis são rochas subterrâneas formadas por areia da praia cimentada (carbonato da dissolução das conchas) comuns ao longo da costa brasileira. — É como se fosse uma minicordilheira submarina — compara.

Não é possível confirmar se o parcel foi o causador do naufrágio do herói farroupilha, mas para os jaguarunenses, não há dúvidas. — Essa questão dos naufrágios é bem conhecida. Jaguaruna é tida como cemitério de navios, justamente por esse acidente geográfico. O farol de Santa Marta foi construindo por causa desse parcel — explica o secretário de Educação do município, Rafael Floreano Pereira, que também é historiador.

No Museu de Jaguaruna, há registros de pelo menos 21 naufrágios, entre 1740 e 1972, na região. No acidente de Garibaldi, 16 tripulantes morreram. Foi um dos mais dramáticos trechos narrados pelo italiano em suas memórias:

"Os cadáveres dos dezesseis afogados que contamos naquele desastre, até então leais companheiros das minhas aventuras, hauridos pelo mar, foram carregados pelas ondas, arrastados pelas correntes a mais de trinta milhas ao norte. Procurei, então, entre os quatorze renascentes — e todos naquela hora já haviam alcançado a praia —, um rosto amigo, uma fisionomia italiana. Nenhuma sequer! Os seis italianos que ladeavam-me estavam mortos: Carniglia, Matru, Staderini, Navone, Giovanni e… Não me recordo o nome do sexto camarada. (…) Peço perdão à pátria por tê-lo olvidado".

Pereira acredita que o naufrágio não é tão destacado pela historiografia por macular a trajetória gloriosa de Garibaldi: — Ele era conhecido como o fera da navegação. Como deixou acontecer? Não há resquícios visíveis do Farroupilha. Após o afundamento, acredita-se que Garibaldi e os outros sobreviventes andaram, pela beira da praia, cerca de 30 quilômetros até a Barra do Camacho. Lá, os náufragos foram recolhidos pelo Seival, comandado por Griggs, que vencera a tempestade — e o parcel.

Praia do Campo Bom, Jaguaruna, local onde Garibaldi naufragou com o barco Farroupilha no litoral catarinense

Praia do Campo Bom, Jaguaruna, local onde Garibaldi naufragou com o barco Farroupilha no litoral catarinense

Praia do Campo Bom, Jaguaruna, local onde Garibaldi naufragou com o barco Farroupilha no litoral catarinense

Museu Cidade de Jaguaruna, no centro do município catarinense

Museu Cidade de Jaguaruna, no centro do município catarinense

Barra do Camacho, onde Garibaldi e os sobreviventes do naufrágio encontraram o Seival e seguiram viagem

Pescador do Camacho, Pedro Geraldo, 60 anos, o Pelé, põe o barco na lagoa para retirar rede no final da tarde

Barra do Camacho, Jaguaruna, Santa Catarina

Barra do Camacho, Jaguaruna, Santa Catarina

Vegetação próxima à praia do Campo Bom, Jaguaruna, local onde Garibaldi naufragou com o barco Farroupilha no litoral catarinense

Barra do Camacho, Jaguaruna, Santa Catarina

Barra do Camacho, Jaguaruna, Santa Catarina

Barra do Camacho, Jaguaruna, Santa Catarina

Barra do Camacho, Jaguaruna, Santa Catarina

Praia do Cardoso, Santa Catarina

Barra do Camacho, Jaguaruna, Santa Catarina

Museu Cidade de Laguna

Camacho

O estreito canal que liga o mar à Lagoa do Camacho é conhecido ponto de veraneio próximo ao Farol de Santa Marta. O vento nordeste dos últimos dias de agosto de 2017 tem obrigado pescadores a deixar seus barcos na areia. Pedro Geraldo, 60 anos, o Pelé, é um dos poucos a colocarem o barco na água. Na tarde do dia 29 de agosto, saía para recolher a rede, a quatro quilômetros da margem. Ele lamenta o baixo nível da barra, onde antes era possível pescar anchova:

— Assoreou totalmente, já faz dois anos. Não temos condição de entrar. Na lagoa, Geraldo pesca corvina para vender no estabelecimento familiar. Com as más condições da lagoa, quando recolhe a rede do fundo da água, sobra mais lixo do que peixes. — Estamos praticamente parados — reclama.

Geraldo está acostumado a passar por trechos da lagoa na qual Garibaldi e seus homens prepararam, de forma sorrateira, o ataque a Laguna. Aponta no horizonte de pôr do sol emoldurado pela prancha de um praticante de kitesurfe o local onde as águas Rio Tubarão e a lagoa, último trecho da empreitada, se misturam. Os imperialistas guardavam a frota farroupilha na barra da Laguna, pelo mar, mas Garibaldi, em nova manobra para despistar os inimigos, adentra pelo complexo fluvial. Surpreendeu o povoado pelos fundos.

A tomada de Laguna

Únicos resquícios concretos do valente Seival, um lampião de proa e o mastro central, de nove metros e três centímetros, repousam no segundo andar do Museu Anita Garibaldi, no centro de Laguna. A lanterna, protegida por uma caixa de vidro, apresenta fissuras. As duas relíquias da epopeia de Garibaldi estão guardadas a um lance de escada da sala onde David Canabarro proclamou a República Catarinense, também chamada de Republica Juliana. Em 29 de julho, sete dias dias após a chegada das tropas farroupilhas, a Câmara de Laguna declara "a Independência do estado catarinense, livre e independente, adoptando o systema Republicano Rio Grandense", conforme a ata da sessão extraordinária.

Do ponto de vista militar, a estratégia que Garibaldi traçara deu certo. Ele prometera a Bento Gonçalves chegar a Laguna pela água e assim o fez. Do alto do Morro da Glória, ao avistar a foz do Tubarão, é possível imaginar o Seival solitário ingressando na Lagoa do Imaruí, surpreendendo os navios imperiais.

"Confesso que não tivemos enorme dificuldade para nos apossar da pequena cidade que domina a laguna — laguna que dá origem ao seu nome. Sua guarnição bateu desabafadamente em retirada, e três pequenos navios de guerra renderam-se após um ligeiro combate".

O relato de Garibaldi ao atingir seu objetivo militar é cheio de otimismo, embebido pelo ânimo da província com o desembarque das forças republicanas. Mas a relação de Laguna com os farrapos é até hoje controversa. Menos receptiva do que narra a historiografia, segundo o pesquisador Antônio Marega, Laguna foi vítima do destino inglório reservado a vilas ocupadas por exércitos de qualquer tempo: o saque. — (A tomada pelos farroupilhas) Foi a pior coisa que aconteceu porque deixou Laguna pobre. O lagunense era simpático ao movimento, só que o grupo revolucionário não era administrado. Era um bando de peões grosseiros que o comando não tinha dinheiro para pagar. O pagamento era a liberdade do saque. Entraram na Laguna, saquearam, roubaram, estupraram, fizeram de tudo — critica Marega.

Autor do livro Laguna, Terra Mater — Dos Sambaquis à República Catarinense, a história cronológica até a proclamação da república catarinense, o advogado lagunense Adilso Cadorin prefere a palavra "requisições" na forma como as tropas de Canabarro e os homens de Garibaldi manejaram a ocupação.

— Não houve saque, mas provavelmente houve exageros — explica. — Canabarro era soldado, tinha de alimentar a tropa. Ele requisitava à força. Quando o Império bloqueou o porto, o comércio foi a pique. A questão econômica foi determinante na recomposição da esperança que a república representava para a população de Laguna.

O próprio Garibaldi lamenta exageros, como o que seus homens protagonizaram em Imaruí, povoado próximo a Laguna. Como o local aderiu aos imperiais, ele recebeu ordens de Canabarro para imprimir "ferro e fogo".

"Não tive escolha: obedeci ao seu comando (…) Foi-me impossível evitar a desordem (…) Devo lembrar que os meus homens, na sua maioria, eram indivíduos que eu mal conhecia, recrutados havia pouco tempo, indisciplinados por consequência. Ninguém poderá imaginar o desgaste a que me submeti a fim de impedir a violência contra as pessoas e para a destruição — a pilhagem estando liberada — ficasse circunscrita às coisas inanimadas. Que Deus, do alto de Sua compaixão, possa perdoar-me!"

Em 15 de novembro, ironicamente no mesmo dia em que, meio século depois, o Brasil teria proclamada a República, as forças farroupilhas travaram sua derradeira batalha em Laguna. Chegaria ao fim o sonho de expandir a República Rio-grandense. Já na companhia de Anita, pela qual Garibaldi se apaixonara ao avistá-la pela luneta, o italiano perdeu o combate para as forças do Império.

— Os historiadores não exploram isso, mas provavelmente foi a maior batalha naval da história do Brasil em águas territoriais. Nem a batalha do Riachuelo, na Guerra do Paraguai, foi tão grande — arrisca Cadorin.

Perdido o confronto e com os tripulantes em fuga, o destino da embarcação que conduzira o sonho dos farrapos seria a vala comum dos barcos mercantes. Bem distante de seu passado glorioso, o Seival foi rebatizado pelos legalistas como Garrafão. Passou seus últimos anos em um estaleiro próximo ao local onde hoje fica o Colégio Stella Maris, em Laguna.

Imagem mostra o que sobrou do barco Seival, transformado em mercante após a retomada de Laguna pelos imperiais.

Marega guarda fotos do lanchão se deteriorando pela ação do tempo. Um italiano tentou comprar o que havia sobrado do barco de 25 toneladas que cortara os campos gaúchos. A ideia era levá-lo para a Itália como relíquia de guerra. Mas a população colocou fogo na embarcação. Em 1916, um viajante avistou uma muda de figueira germinando na quilha do barco. Levada para o jardim da cidade, foi transformada em símbolo — a árvore de Anita, de frente para o busto de Garibaldi, por anos foi marco da paixão dos dois. Hoje, seu tronco está seco. Alguns dizem que a árvore está morta.

Centro histórico de Laguna

Vista da foz do Rio Tubarão, por onde o tripulação comandada por Garibaldi entrou em Laguna a bordo do Seival

Museu Anita Garibaldi (D), no centro histórico de Laguna

Pescadores na Praia do Cardoso, em Santa Catarina

Vista do alto do morro no Farol de Santa Marta, Santa Catarina

Placa no Museu Anita Garibaldi marca o local onde foi proclamada a República Catarinense

Vista do centro histórico de Laguna

Tesoura que teria sido usada para confecção do vestido de casamento de Anita com Manuel Duarte de Aguiar, em Laguna

Casa onde Anita teria se vestido para o casamento com Manuel Duarte de Aguiar, em Laguna

Mastro do barco Seival, no Museu Anita Garibaldi, em Laguna

Estátua de Anita Garibaldi, no centro histórico de Laguna

Museu Anita Garibaldi, no centro histórico de Laguna

Mastro e lampião do Seival no Museu Anita Garibaldi, em Laguna

Lampião da proa do barco Seival, no Museu Anita Garibaldi, em Laguna

Busto de Giuseppe Garibaldi, em Laguna

Vista do centro histórico de Laguna