Em meio aos blockbusters de super-heróis e o número recorde de filmes brasileiros a estrearem no circuito, 2016 ficará marcado como um ano de grandes personagens – femininas, sobretudo. Sonia Braga e Isabelle Huppert foram reconhecidas por suas performances em “Aquarius” e “Elle”, enquanto o Oscar mais polêmico dos últimos anos consagrou “Spotlight”. Houve muitas perdas (Scola, Kiarostami, Babenco) e também algumas boas notícias. Relembre a seguir.

RETROSPECTIVA

2016

CINEMA

O ANO DE AQUARIUS

Filme mais comentado no Brasil nos últimos anos, Aquarius extrapolou o campo cinematográfico para se tornar um fato político desde sua ruidosa sessão de apresentação, em maio, no Festival de Cannes (foto). No tapete vermelho, o diretor Kleber Mendonça Filho e o elenco do filme estrelado por Sonia Braga exibiram cartazes contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Aquarius saiu de Cannes consagrado e ainda cumpre exitosa carreira internacional – está presente em prestigiadas listas de melhores filmes do ano em diferentes países.

No Brasil, já somou 357 mil espectadores, número expressivo para um longa com seu perfil. Efetivado o governo de Michel Temer, um novo round da polêmica se deu com a não escolha do longa para representar o Brasil na disputa por uma indicação ao Oscar. A inusitada opção da comissão formada pelo novo governo foi o então inédito Pequeno segredo, o que reforçou a impressão de ter havido retaliação a Aquarius em razão da grande repercussão do protesto.

AQUARIUS, de Kleber Mendonça Filho

 

AS MONTANHAS SE SEPARAM, de Jia Zhang-ke

 

CEMITÉRIO DO ESPLENDOR, de Apichatpong Weerasethakul

 

CINEMA NOVO, de Eryk Rocha

 

PAULINA, de Santiago Mitre

 

O CAVALO DE TURIM, de Béla Tarr

 

O ABRAÇO DA SERPENTE, de Ciro Guerra

 

O FILHO DE SAUL, de László Nemes

 

O BOTÃO DE PÉROLA, de Patricio Guzmán

 

OS OITO ODIADOS, de Quentin Tarantino

MESTRES DÃO ADEUS

Entre as baixas artísticas de 2016, a temporada foi particularmente implacável com os cineastas: alguns dos maiores diretores do cinema contemporâneo morreram neste ano. O primeiro a despedir-se foi o francês Jacques Rivette, nome de destaque da Nouvelle Vague, realizador de clássicos como A religiosa (1966) e A bela intrigante (1991). Dois outros gigantes partiram em seguida: Ettore Scola e Abbas Kiarostami (os dois nas fotos abaixo). O italiano Scola será sempre lembrado por clássicos como Nós que nos amávamos tanto (1974), Feios, sujos e malvados (1976) e Um dia muito especial (1977), enquanto o iraniano Kiarostami colocou seu país no mapa do cinema com filmes memoráveis como Onde fica a casa do meu amigo? (1987), Através das oliveiras (1994) e Gosto de cereja (1997). Outras perdas sentidas foram a do argentino-brasileiro Hector Babenco, diretor de Pixote: a lei do mais fraco (1981), do polonês Andrzej Wajda, responsável por títulos impactantes do quilate de Cinzas e diamantes (1965), e de Andrea Tonacci, do novo clássico nacional Serras da desordem (2006).

MUITOS FILMES, POUCOS ESPECTADORES

O número de filmes brasileiros a estrearem nos cinemas só aumenta: conforme estimativas da empresa Filme B, o ano deve fechar com cerca de 130 longas nacionais lançados, número recorde desde a chamada retomada da produção, nos anos 1990. Desses, raros foram aqueles que conseguiram arrastar grandes plateias às cerca de 3 mil salas do país, até porque estrearam, em sua maioria, de maneira tímida – a grande exceção, em 2016, foi Os dez mandamentos, que vendeu mais de 11 milhões de ingressos. Entre esses 130, no entanto, há diversos títulos consagrados pela crítica que merecem a atenção do espectador, como Para minha amada morta, de Aly Muritiba; Mãe só há uma, de Anna Muylaert; Big Jato, de Cláudio Assis; Campo grande, de Sandra Kogut; Ela volta na quinta, de André Novais de Oliveira; O futebol, de Sérgio Oksman; e principalmente Boi neon (foto), de Gabriel Mascaro, filme premiado nos festivais do Rio, de Toronto e de Veneza, entre outros.

UM PASSADO PELA FRENTE

Passados 44 anos, o clássico Último tango em Paris voltou a ser assunto neste mês, em razão de uma entrevista que seu diretor, Bernardo Bertolucci, concedeu em 2013 e foi ressuscitada no YouTube. No depoimento, o cineasta faz um mea culpa sobre a famosa  “cena da manteiga”, na qual o personagem de Marlon Brando sodomiza a jovem vivida por Maria Schneider. Reapareceu também uma entrevista da atriz de 2007 a um jornal sensacionalista britânico, na qual dizia ter se sentido estuprada por Brando e Bertolucci. Daí a interpretação de ter ocorrido um estupro real foi um passo curto, com as redes sociais fervendo no julgamento do diretor.

Poucos se interessaram em analisar os elementos da polêmica à luz das relações de submissão impostas no set por inúmeros diretores desde os primórdios do cinema.

GAÚCHOS SE MANTÊM

Mesmo diante da carência de apoio via editais públicos locais, a produção

de cinema no Rio Grande do Sul manteve sua regular linha de produção.

Um destaque da temporada foi Ponto zero, filme sobre o amadurecimento de um adolescente que marcou a tardia estreia de José Pedro Goulart no longa-metragem. Dois nomes da geração seguinte à de Goulart também lançaram longas. Fabiano de Souza alcançou uma prolongada passagem pelo circuito alternativo com Nós duas descendo a escada, sobre o relacionamento de duas mulheres, e Gustavo Spolidoro apresentou seu inventivo documentário experimental Errante – Um filme de encontros. O ano teve como nota triste a morte da produtora Monica Schmied, aos 54 anos, em março, pouco antes do lançamento de seu último trabalho, Prova de coragem, adaptação do livro Mãos de cavalo, de Daniel Galera, que o diretor Roberto Gervitz rodou no Estado.

CINEMA NOVO DE NOVO

Em um ano de retração econômica e fechamento (ainda que temporário) da Sala P.F. Gastal, Porto Alegre teve menos ciclos de filmes e mostras de cinema, na comparação com temporadas anteriores.

O grande destaque ficou por conta de Um filme, cem histórias: Abbas Kiarostami, apresentado em três salas da Capital um mês antes da morte do cineasta. Os festivais Diálogo de Cinema e Fantaspoa tiveram boas edições nos cinemas do centro da cidade. Outras sessões marcantes foram as do Cine Esquema Novo, que apresentou em première, em uma Cinemateca Capitólio lotada, os aguardados Cinema Novo, de Eryk Rocha (que estrearia poucos dias depois no CineBancários), e Rifle, de Davi Pretto (que deve estrear no ano que vem).

OSCAR POLÊMICO E SURPREENDENTE

A hashtag #OscarsSoWhite viralizou nas redes sociais assim que foram anunciados os finalistas do Oscar 2016: pelo segundo ano consecutivo, não havia nenhum negro entre os indicados nas categorias de interpretação. O fato não passou batido nos comentários do mestre de cerimônias, o mordaz comediante negro Chris Rock. A polêmica, aliás, foi uma das marcas da 88ª edição do prêmio mais cobiçado da indústria: reconstituição do trabalho de investigação dos repórteres do jornal Boston Globe sobre o abuso sexual de crianças e jovens por padres católicos, Spotlight: Segredos revelados (2015) foi o surpreendente vencedor da premiação.

SUPER HERÓIS VS. MOISÉS

Há muito se sabe a força que os blockbusters de super-heróis têm. Em 2016, eles ampliaram seu domínio no circuito. Dos 10 filmes mais vistos no país, seis são da turma dos quadrinhos, com predomínio dos personagens da Marvel. O número 1 da lista de arrecadação foi Capitão América – Guerra civil, com R$ 143 milhões, seguido pela grande aposta da DC Comics Batman vs Superman (R$ 132,4 milhões) e por Esquadrão suicida (R$ 118 milhões). Deadpool (R$ 81, 9 milhões), Doutor Estranho (R$ 75,6milhões) e X-Men – Apocalipse (R$ 67,3 milhões) também fizeram sucesso. Mas, se a conta for em número de espectadores, acima de todos, no topo da lista dos mais vistos, está a superprodução nacional derivada da novela Os dez mandamentos, com 11,2 milhões de espectadores (em arracadação, o longa figura em quatro lugar, com R$ 116,4 milhões).

AS MULHERES DO ANO

A temporada foi de personagens femininas poderosas. A começar pela demente pistoleira encarnada por Jennifer Jason Leigh em Os oito odiados, passando pela mãe mantida em cativeiro com o filho em O quarto de Jack (Brie Larson) e terminando com a linguista que desvenda o idioma dos ETs no sensível A chegada (Amy Adams). Já entre as latinas, a argentina Dolores Fonzi impressionou na pele da jovem que decide não acusar seus estupradores em Paulina, enquanto as espanholas Adriana Ugarte e Emma Suárez impressionaram interpretando a mesma mulher em Julieta, de Almodóvar. Duas atrizes maduras tiveram destaque especial: a brasileira Sonia Braga, de Aquarius, e a francesa Isabelle Huppert. Em cartaz na Capital com O que está por vir, Isabelle foi vista ainda neste ano em Mais forte que bombas e reafirmou-se como a mais importante atriz do cinema contemporâneo com Elle (foto), de Paul Verhoeven, sobre uma empresária sarcástica e determinada que mantém o sangue frio depois de violentada.

PERSPECTIVA 2017

O novo ano deve trazer uma ótima notícia para os cinéfilos logo em seus primeiros meses: a Cinemateca Capitólio apresentará seu projetor digital DCP em breve, adquirido com patrocínio da Petrobras, o que vai permitir à charmosa sala da esquina da Borges de Medeiros com a Demétrio Ribeiro manter uma programação atualizada de lançamentos nacionais e internacionais. Em 2017, ano que pode marcar novo fechamento da Sala P.F. Gastal para as reformas da Usina do Gasômetro, Porto Alegre deve receber dois longas rodados na Fronteira que estão entre os títulos gaúchos mais aguardados dos últimos anos: os premiados A mulher do pai, de Cristiane Oliveira, e Rifle,

de Davi Pretto. No âmbito internacional, destaque para as chegadas dos – por enquanto – favoritos ao Oscar (Moonlight e La la land) e das continuações de dois títulos cult dos anos 1980 e 90: Blade runner e Trainspotting.

RESISTÊNCIA NO GASÔMETRO

Estimado espaço cinéfilo da Capital, a Sala P.F. Gastal, na Usina do Gasômetro, é referência no país com sua programação voltada a filmes nacionais e estrangeiros que não encontram espaço no circuito convencional, a mostras temáticas e ao resgate de obras raras e cultuadas. A situação que a P.F. Gastal encarou em 2016 ilustra o descaso da administração pública para com a área cultural. A reabertura da sala após o recesso de final de ano ocorreu só em abril, devido à falta de pessoal. Para pressionar a administração municipal, responsável pela sala, foi criado o movimento Sala P. F. Gastal Resiste. Existe ainda a dificuldade de acesso do público, decorrente de obras intermináveis no entorno, iluminação deficiente e falta de segurança na região.

FILMES DO ANO

10

Atualizado em 28 de dezembro de 2016

textos

Daniel Feix

Marcelo Perrone

Roger Lerina

DESIGN

Thais Longaray