A crise econômica atingiu a maioria dos festivas de artes cênicas do Estado, que conseguiram, mesmo assim, apresentar destaques em suas programações – a criatividade na penúria deu o tom das curadorias. Houve apreensão com o fechamento do Condomínio Cênico do Hospital Psiquiátrico São Pedro e incerteza sobre o projeto Usina das Artes, mas testemunhou-se a inauguração do Teatro do Instituto. Se este foi o ano da morte de Ronald Radde, também foi da celebração de 80 anos de Ivo Bender. Entre perdas e ganhos, relembre o 2016 das artes cênicas.

RETROSPECTIVA

2016

ARTES CÊNICAS

CONDOMÍNIO FECHADO

Aconteceu em novembro, dois dias antes da estreia de Mithos, espetáculo que marcaria os 25 anos do grupo Falos & Stercus no conjunto de pavilhões do Hospital Psiquiátrico São Pedro ocupado por artistas de teatro: o Corpo de Bombeiros realizou uma visita ao local e o interditou por falta de segurança. Após a medida, a Secretaria de Saúde do Estado anunciou que utilizará para suas atividades os seis pavilhões históricos que até estão estavam cedidos para a Cultura. Assim, os grupos do chamado Condomínio Cênico tiveram de deixar o espaço que ocupavam há 16 anos para a preparação de suas produções, dando início a um momento de incerteza para os artistas. As companhias estão entre as mais atuantes na cena gaúcha: além do Falos & Stercus, trabalhavam no local Neelic, Oigalê, Povo da Rua e Caixa-Preta. O secretário de Estado da Cultura, Victor Hugo, anunciou que buscará novos espaços para as atividades.

TEATRO NOVO NA CAPITAL

Se o ano foi lembrado pelo fechamento do Condomínio Cênico do Hospital Psiquiátrico São Pedro e pela incerteza sobre o projeto Usina das Artes, no Gasômetro, houve ao menos um motivo para comemorar em matéria de espaço para a cultura: a inauguração do Teatro do Instituto, no local que era antes conhecido como o auditório do Instituto Histórico e Geográfico do RS, no centro de Porto Alegre. O novo espaço para as artes cênicas, que fica na Rua Riachuelo, 1.317, está estrategicamente próximo de outras duas salas: o Theatro São Pedro e o Teatro de Arena. A reforma foi realizada sem verba pública, nem leis de incentivo. Tudo à base de parcerias e colaborações. As modificações no antigo auditório incluíram aumento na profundidade do palco, recuperação das poltronas e a inclusão de sistemas de iluminação e som. O primeiro espetáculo a estrear foi Ulisses no país das maravilhas, escrito e dirigido por Julio Zanotta, que coordenou a reforma.

SHAKESPEARE REVISITADO

O ano ficou marcado pela lembrança dos 400 anos de morte do maior dramaturgo de todos os tempos. E William Shakespeare segue surpreendendo. Em outubro, foi anunciado que o New Oxford Shakespeare, nova edição das obras completas do poeta inglês, conta com uma novidade: seu “rival” Christopher Marlowe passa a aparecer como coautor das três partes de Henrique VI. A nova edição traz 44 peças, das quais 17 são assinadas em parceria com outros nomes. A questão da autoria é constantemente revista pelos pesquisadores, que se valem da tecnologia para estudar os textos. No Brasil, o aniversário foi celebrado com uma nova edição do teatro completo traduzida por Barbara Heliodora e por novas versões de suas peças publicadas no país, o que reflete a forte presença de tradutores de Shakespeare no Rio Grande do Sul: Lawrence Flores Pereira, José Francisco Botelho (ambos pela Companhia das Letras), Elvio Funck (pela Movimento) e Beatriz Viégas-Faria (pela L&PM).

DESCEM AS CORTINAS

Em dois meses, o teatro perdeu dois de seus maiores dramaturgos: o americano Edward Albee, em setembro, aos 88 anos, e o italiano Dario Fo, em outubro, aos 90 anos. Albee ficou conhecido sobretudo pela peça Quem tem medo de Virginia Woolf?, adaptada para o cinema em 1966 por Mike Nichols, com Elizabeth Taylor e Richard Burton. Nobel de Literatura de 1997, Fo era conhecido por comédias que abordavam, por trás do humor, temas de relevância social. No Rio Grande do Sul, foram bem-sucedidas pelo menos duas montagens de suas peças: Pois é, vizinha... (de Dario Fo e Franca Rame), com Deborah Finocchiaro, e Il primo miracolo, com Roberto Birindelli. Em setembro, o Porto Alegre Em Cena recebeu Morte acidental de um anarquista, comédia de Fo estrelada por Dan Stulbach. O Brasil também perdeu um importante dramaturgo e diretor: autor de peças como A aurora da minha vida, Naum Alves de Souza deixou a cena em abril, aos 73 anos.

O ANO DAS EDIÇÕES DE RESISTÊNCIA

Embora dificuldades financeiras já viessem se insinuando há algum tempo nos orçamentos dos grandes eventos culturais, não há dúvida de que 2016 foi o ano das “edições de resistência” dos festivais de artes cênicas, quando os curadores tiveram de fazer muito com pouco. Em entrevista a Zero Hora em setembro, o coordenador-geral do Porto Alegre Em Cena, Luciano Alabarse, atestou que este foi “o ano mais difícil da história do festival”, que foi realizado com orçamento de R$ 2,13 milhões. Para efeito de comparação, nos três anos anteriores, o valor ficou entre R$ 2,6 milhões e R$ 3 milhões. Já o Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre teve de reduzir seu orçamento de R$ 824 mil, em 2015, para R$ 215 mil neste ano. Devido aos problemas financeiros, o evento tradicionalmente realizado em abril ocorreu em junho desta vez. Também o Festival de Bonecos de Canela teve que enxugar seu orçamento, que ficou em R$ 270 mil. A exceção positiva foi o Festival Palco Giratório Sesc/POA, que manteve o orçamento de 2015 e deverá seguir na mesma toada em 2017.

A DESPEDIDA DE RONALD RADDE

Nome relevante do teatro gaúcho, o diretor e dramaturgo Ronald Radde morreu em abril, aos 71 anos, depois de lutar contra a Síndrome de Guillain-Barré, doença causada por uma reação autoimune do corpo a uma infecção. Radde foi o fundador da companhia Teatro Novo, que alcançou surpreendente longevidade com seus 48 anos de história. Desde que ele começou a sofrer com o problema de saúde, o comando do grupo ficou a cargo da filha Karen Radde, encarregada de dar continuidade à história de sucesso. Em 2015, o crítico teatral Antônio Hohlfeldt publicou a biografia Ronald Radde – O perseguidor de sonhos (Edipucrs/Editora da Cidade), livro que chegou como referência. Embora a Cia. Teatro Novo tenha se notabilizado por espetáculos infantojuvenis, que se tornaram sua marca registrada, Radde teve uma marcante atuação, nos anos de chumbo, em espetáculos voltados ao público adulto na resistência à ditadura militar. Sua produção denunciava as arbitrariedades do regime e as injustiças socioeconômicas.

EM DEFESA DA USINA DAS ARTES

Há 11 anos, o projeto Usina das Artes oferece a oportunidade para 10 grupos de teatro ocuparem salas da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, onde podem apresentar espetáculos, ensaiar, realizar oficinas e ministrar aulas. Cada edital permite a residência durante um ano, período que pode ser renovado. Os grupos, no entanto, estão apreensivos com a possibilidade de o espaço cultural ser fechado para reforma – todos dependem das salas para desenvolver seus trabalhos. Com o fechamento do estacionamento principal do Gasômetro, a frequência de espectadores, especialmente em atividades noturnas, diminuiu. Em outubro, os grupos do Usina das Artes ofereceram 12 horas de programação gratuita no evento intitulado (R)Existe!, criado para valorizar o projeto de residência. A defesa do Usina das Artes marcou o ano de 2016.

TEATRO AFRO-BRASILEIRO ABRE PASSAGEM

Dois espetáculos que buscam matéria-prima poética na cultura afro-brasileira foram laureados no Prêmio Braskem Em Cena, entregue durante o Porto Alegre Em Cena: AfroMe, do jovem grupo Pretagô, foi eleito o melhor espetáculo pelo júri popular, e Dança do tempo, da Usina do Trabalho do Ator (UTA), ganhou a categoria destaque por seu processo de trabalho, no qual o público participa da criação. AfroMe também levou, em dezembro, o Açorianos de melhor produção. Os prêmios sinalizam a forte presença, na cena gaúcha, de grupos e espetáculos baseados na matriz africana e na situação dos negros no Brasil. Ao longevo Caixa-Preta juntaram-se, nos últimos anos, o Pretagô e o Montigente – além da UTA, que tem frequentado esses temas em alguns trabalhos. Em reportagem sobre a cena de artistas negros, publicada em ZH em novembro, o diretor Thiago Pirajira, do Pretagô, defendeu que os coletivos não sejam vistos exclusivamente sob a ótica reducionista do teatro político ou engajado: “Se alguém me perguntar o que queremos propor, respondo que é uma celebração da vida”.

O LEGADO DE SÁBATO MAGALDI

Em 2015, as Edições Sesc lançaram um livro de espessura incomum, com nada menos do que 1.224 páginas. Era Amor ao teatro, reunião de 783 textos do crítico Sábato Magaldi. O volume dava a dimensão da relevância desse crítico e pesquisador que morreu em julho, aos 89 anos. Além de suas críticas publicadas na imprensa (muitas delas reunidas em Amor ao teatro), Magaldi escreveu livros que se tornaram referência na bibliografia especializada, como Panorama do teatro brasileiro, O texto no teatro e volumes sobre Nelson Rodrigues, autor no qual se especializou – organizou, por exemplo, sua obra completa. Em artigo publicado em Zero Hora, o crítico Kil Abreu definiu Magaldi como um “mestre do teatro”: “Mestre, no caso, pela sua condição de professor e acadêmico. Mas, antes mesmo desta condição ou junto a ela, pela longa trajetória como uma das referências centrais da cena brasileira”.

PERSPECTIVA 2017

O ano de 2017 deverá ser tão difícil quanto 2016 para os festivais de artes cênicas. Ou pior, na projeção de Alexandre Vargas, do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre, que trará atrações da Argentina (Projeto Filoctetes, de Emilio García Wehbi) e Espanha (Pedinte de voto, de Roger Bernat). O Palco Giratório terá mostras de repertório das companhias Amok e Tablado de Arruar. Entre os espetáculos que desembarcarão na Capital durante o ano, estarão A mulher que escreveu a Bíblia, adaptação do romance de Moacyr Scliar com a atriz Inez Viana, e O impecável, monólogo com Luiz Fernando Guimarães – ambos em março no Theatro São Pedro. Em junho, a coreógrafa Deborah Colker deverá voltar dividindo a direção com o cineasta Cláudio Assis no inédito O cão sem plumas, baseado em João Cabral de Melo Neto. Companhias gaúchas como Cia. Rústica e o Teatro Sarcáustico também acenam com novos trabalhos – este último leva ao palco o romance Meia-noite e vinte, de Daniel Galera.

IVO BENDER, 80 ANOS

Considerado o mais importante dramaturgo gaúcho em atividade, Ivo Bender não escreve mais peças de teatro. Desde 2010, tem publicado livros de contos, gênero que considera “mais fácil” que a dramaturgia, como relatou a ZH em maio. Naquele mês, o autor completou 80 anos. Homenagens não lhe faltam. A data foi celebrada com debates e leituras dramáticas na Escola de Espectadores de Porto Alegre. Bender tem um terceiro livro de contos pronto para publicação, ainda sem data prevista. O autor acredita que o texto teatral está, hoje, “desacreditado”, às vezes servindo como mero pretexto para um diretor “cometer suas loucuras”. O que falta é sua dramaturgia voltar a ser encenada nos palcos gaúchos, revelando a novas gerações suas peças assinaladas pelos elementos do fantástico e do sarcasmo.

MELHORES DO ANO

10

MARCIO ABREU, Diretor de pROJETO bRASIL, com a Cia. Brasileira de Teatro (PR), e Nós, com o Grupo Galpão (MG)

 

GRUPO PÂNDEGA (SP), Why the horse?, com Maria Alice Vergueiro

 

CIA. VÉRTICE (RJ), A floresta que anda e E se elas fossem para Moscou?

 

AQUELA CIA. (RJ), Caranguejo overdrive

 

GRUPO CORPO, Dança sinfônica e Parabelo

 

BALLET DE SANTIAGO, Zorba, o grego

 

CIA. MAGUY MARIN (França), BiT

 

GRUPO MAGILUTH (PE), O ano em que sonhamos perigosamente

 

ATO CIA. CÊNICA (RS), O casal Palavrakis

 

ÂNIMA CIA. DE DANÇA (RS), Acuados

Atualizado em 28 de dezembro de 2016

textos

Fábio Prikladnicki

Roger Lerina

DESIGN

Thais Longaray