Sergio sabia que ia infartar

Despertou-se na madrugada de 2 de maio de 2014 sabendo exatamente do que se tratavam os sintomas. Com a respiração calma, Sergio Carlini, então com 50 anos, deixou a cama, deslocando-se sem pressa até a cozinha. Foi breve quando telefonou para o celular da ex-mulher, que dormia em outro quarto, no andar de cima:

– Desce que chegou a hora.

Trocou o pijama por uma roupa leve que a mãe de suas três filhas trouxera. Tomou um copo de refrigerante, achou que pudesse se sentir melhor. Sentou-se no sofá da sala. E, acostumado a estar sempre no comando, discou ele mesmo o 192. Após a triagem da telefonista, respondeu a perguntas do médico regulador, que manteve o paciente na linha até que o socorro chegasse.

– Sinto muita dor no peito e dormência no braço esquerdo – foi o que disse o consultor de empresas.

Bastou para identificar a gravidade do problema. Em minutos, uma ambulância básica do Samu já percorria as ruelas do bairro Campo Novo, na zona sul de Porto Alegre. A unidade avançada do serviço de urgência também estava a caminho. A orientação de Sergio aos socorristas é que tentassem não fazer muito barulho e que não subissem o lance de escada até a sua casa. Não queria que acordassem sua caçula, de 12 anos. Não queria que ela tivesse as mesmas recordações que ele tem do pai.

Quando viu as luzes vermelhas se refletirem nas paredes de casa, levantou-se do sofá. Abriu a porta principal e percorreu cada um dos degraus até chegar à rua. Com ajuda dos socorristas, entrou na ambulância. Deitou na maca. Sentiu uma fisgada aguda no coração – que lhe deu tanta dor, mas tanta dor, que chegou a nem senti-la. O infarto que estava tendo o havia levado até a fuça da morte. Seu coração parou.

Havia acontecido o que antecipara. Na infância, presenciou vários ataques cardíacos do pai – que veio a morrer por conta do 11º deles, aos 34 anos, sozinho, em um quarto de hotel. Então, sabia bem do que se tratava o mal-estar que vinha sentindo nas últimas semanas, mas preferiu não procurar ajuda médica – tem pavor de hospital e de tudo que possa lembrá-lo. Em vez disso, viajou a

São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais para visitar amigos e familiares. Desafiou o destino e esperou acontecer. Só não imaginava que, duas semanas depois, o infarto quase o matasse na porta de casa.

Na Capital, Sergio Carlini só sobreviveu porque antecipou o pedido de socorro. Tinha a experiência do pai, morto no 11º infarto

Provavelmente só tenha sobrevivido porque ali já estava o socorro. A equipe teve ainda o cuidado de afastar a filha mais velha de perto do pai – a mãe havia avisado a primogênita, que chegou ao local a tempo de presenciar tudo. Ou quase tudo. A ambulância já tinha as portas fechadas quando Sergio recebeu massagens cardíacas e o choque desfibrilatório, uma descarga elétrica que reanimou seu coração.

Com a ajuda, foi ressuscitado. Em casos de infarto, a chance de o paciente ser salvo diminui a cada minuto, da mesma maneira que cresce o risco de lesões neurológicas irreversíveis. Se o coração está parado, o cérebro está sem receber sangue. Sem sangue, não há oxigênio.

Sergio estava de volta. Acordou na emergência do Instituto de Cardiologia, onde lhe colocaram um stent no peito. Passou sete dias no hospital. Voltou para casa – e que isso não sirva de exemplo a ninguém, como ele mesmo diz –, continuou com alguns dos antigos hábitos. Entre eles, fumar – “deveria tomar vergonha na cara, mas é difícil” – , comer carne gorda e trabalhar demais.

Sergio tem um jeito próprio de ver a morte, sem espaço para o medo. Sente-se realizado com a vida que leva. Adora ter a casa cheia, acompanhar as conquistas das filhas, preparar uma comilança para a família nas datas festivas, viajar de moto com amigos. Mas também não se sente mal ao dizer que, se não sobrevivesse naquela madrugada, morreria feliz.

– A morte é a única verdade que se tem na vida. Por isso, não a vejo de maneira tão dramática – justifica.

Pois sobreviveu. E vê a própria ressurreição como uma segunda vida. Continua não sendo eterno – agora tem comprimidos de emergência espalhados pelo carro e pelos cômodos da casa. Mas ganhou a expectativa de poder conhecer os netos que, espera, virão. Ser avô talvez seja uma das missões que ainda tem a cumprir, avalia. Cultiva também o plano de se mudar para uma cidade menor e abrir uma fábrica de brinquedos feitos de madeira.

São vários os projetos. Ele sabe. E sabe ainda mais: só sonha com o futuro porque teve a chance de permanecer acordado.

Salvo do infarto, Sergio vê a sobrevida como uma chance de conhecer ser avô um dia.