Rótulos e preconceitos

Nos últimos anos, a figura típica do gaúcho foi parar no divã. Orgulhosos de sua terra, homens e mulheres do Rio Grande do Sul receberam a alcunha de bairristas e separatistas.

Pela exortação da masculinidade, intrínseca ao mito do "centauro dos Pampas", tornaram-se alvo de críticas pelo machismo implícito em atitudes, versos e músicas. Por entoarem com convicção o trecho do Hino Riograndense segundo o qual "povo que não tem virtude acaba por ser escravo", atraíram a antipatia do movimento negro e acusações de racismo.

 

Para críticos do gauchismo exacerbado, esse arquétipo de homem branco dominante, de laço e esporas, é o espelho dos preconceitos do povo que ele representa. Segundo especialistas e dados revelados pela pesquisa Persona, a questão é mais complicada do que parece.

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O antropólogo Ruben Oliven aponta a falta de dados concretos para sustentar teses como a de que o machismo é mais forte no Estado do que em outras regiões do país.

 

— A sociedade brasileira é complexa. A união estável foi equiparada ao casamento, e a lei dá tratamento igual a filhos de casais homossexuais. Também temos manifestações conservadoras, feminicídio, só que nada disso é privilégio do Rio Grande do Sul. Como se mede o machismo? Não é um dado científico. Somos conservadores em algumas coisas, em outras não — pondera o professor da UFRGS.

Quando alguém garante que o gaúcho é racista e machista, isso diz mais sobre essa pessoa do que sobre o gaúcho de fato.

Maria Eunice de Souza Maciel, professora de Antropologia da UFRGS

shana,

em porto alegre

Andréa Graiz

Isso não significa que exemplos de sexismo sejam raros no universo tradicionalista. Em abril deste ano, a cantora Shana Müller despertou controvérsia ao publicar um texto na internet denunciando o menosprezo à mulher na cultura regional. A jornalista e apresentadora do programa Galpão Crioulo, da RBS TV, condenou versos de clássicos como "churrasco, bom chimarrão, fandango, trago e mulher / É disso que o velho gosta, é isso que o velho quer" ou "ajoelha e chora, quanto mais eu passo o laço, muito mais ela me adora". O desabafo recebeu mais de 1,5 mil comentários nas redes sociais e ultrapassou 10 mil compartilhamentos no Facebook, comprovando ter atingido um nervo sensível do imaginário local.

 

— Quando escrevi aquele artigo, muita gente achou que eu estava cuspindo no prato em que comi, mas não foi nada disso. Eu não apontei o dedo para o tradicionalista, apenas trouxe o tema para a discussão — explica a artista, identificada com o universo regional.

Na avaliação de Shana, a imagem estereotipada do gaúcho, que o Rio Grande do Sul durante muito tempo exportou para o Brasil, precisa se renovar.

 

— A gente ri da figura do gaúcho grosso, acha a piada do bairrismo interessante, mas é tempo de rever isso. Tem certas coisas que não cabem mais — opina a apresentadora.

COMO PENSAM E VIVEM OS GAÚCHOS

Direitos iguais para homens e mulheres

A igualdade de direitos é defendida em níveis próximos por todos os perfis de gaúchos analisados pela pesquisa.

Legalização do aborto

O apoio ao aborto é menor entre os Fiéis, com apenas 16% de aprovação, e maior entre os Desapegados, com 42%.

Descriminalização da maconha

O apoio à descriminalização é menor entre os Gaúchos Raiz (22%) e maior entre os Desapegados, com 46%.

DAS MANIFESTAÇÕES À PRÁTICA

Parte da sociedade, segundo o levantamento, também já se deu conta disso. Pelo menos no discurso, os gaúchos se mostram dispostos a rever preconceitos, desigualdades de gênero e a desprezar arroubos separatistas.

 

Entre os 1,8 mil entrevistados, 92% disseram apoiar direitos iguais para homens e mulheres e 91% afirmaram ser favoráveis a salários equivalentes para ambos os sexos.

 

Também se revelaram maioria (63%) os que defendem a punição criminal por comentários ou piadas racistas. Em relação a propostas envolvendo a separação do Rio Grande do Sul do país, 73% garantiram preferir que o Estado prospere junto com o Brasil — e não apartado dele.

 

Recorrente na história riograndense, o tema do separatismo voltou à tona a partir de um plebiscito informal organizado no começo de outubro. Embora 96% tenham defendido o rompimento de laços com a federação, as 364 mil pessoas que se dispuseram a participar da consulta representam apenas 1,7% da população nos três Estados sulistas onde as urnas foram distribuídas — outro indicativo de que a disposição da maioria é progredir sem perder a nacionalidade brasileira.

 

Ruben Oliven faz a ressalva de que nem sempre declarações coincidem com a prática – especialmente quando se trata de assuntos controversos. Algumas situações refletem a complexidade de uma sociedade multifacetada e em constante transformação. O especialista lembra que, apesar do discurso de valorização da diversidade, por exemplo, a cultura negra é historicamente relegada a segundo plano no Estado.

O negro sofre um processo chamado de invisibilidade social. Como não queriam o Carnaval em áreas mais centrais de Porto Alegre, próximo do (Parque) Harmonia ou do (bairro) Menino Deus, ele foi mandado para o Porto Seco

Ruben Oliven, antropólogo

Em sentido oposto, Maria Eunice aponta episódios nos quais barreiras que já pareceram intransponíveis foram superadas:

 

— Elegemos um governador negro, uma miss negra, uma governadora mulher. O próprio movimento tradicionalista é conservador, mas tem nuances. Concursos que elegiam as prendas mais bonitas hoje já destacam outras qualidades, como o conhecimento sobre o Estado, e já temos mulher patroa de CTG.

catherine,

em santa maria

Esses avanços não são suficientes para convencer a estudante universitária e moradora de Santa Maria Catherine Oliveira, 27 anos, de que a figura do gaúcho machista e homofóbico deixou de ser uma referência para se limitar a um estereótipo ultrapassado. Nascida em Alegrete, um dos berços do mito pampiano, Catherine conta que não se identifica com as tradições e percebe o preconceito com triste frequência.

 

— Morei um tempo em Santa Catarina. Eu costumava dizer que era gaúcha, mas não igual aos outros. Vejo uma cultura muito machista, até já deixei de frequentar aulas porque um professor não parava de contar piadas ofensivas às mulheres. O racismo também é algo que ainda me incomoda — afirma Catherine.

 

A crítica não é unânime. Integrante de um CTG em Passo Fundo, Cledson Basso, 54 anos, afirma que o movimento tradicionalista evoluiu:

 

— A visão dos CTGs já mudou muito. Há 30, 40 anos, gays não entravam. Hoje, não há restrições à opção sexual.

 

A tolerância, porém, tem limites.

 

— Sem dúvida, avançamos em muitos aspectos, mas algumas coisas não vão mudar. Por exemplo: as prendinhas vão continuar dançando de vestido, e os guris, de bombacha — resume a instrutora de invernadas do CTG Coronel Thomaz Luiz Osório, em Pelotas, Renata Antunes, 27 anos.

Drogas, aborto e casamento gay despertam maior controvérsia

Se a rejeição a manifestações de machismo ou racismo é mais consensual entre os entrevistados, outras questões como legalização das drogas, do aborto e o casamento gay ainda são motivo de entrevero no Rio Grande do Sul. A união entre pessoas do mesmo sexo é aprovada por menos da metade da população (49%) e essa cifra é ainda menor quando se contabiliza apenas a opinião dos mais tradicionalistas.

 

O levantamento identificou cinco perfis identitários predominantes no Estado. O chamado Gaúcho Fiel caracteriza-se pela intimidade com os costumes regionais e a religiosidade. O Gaúcho Raiz também abraça o nativismo, mas não atribui à religião a mesma relevância. O terceiro tipo, o Não Praticante, valoriza as tradições sem adotá-las no cotidiano, e o quarto, Exportação, se orgulha de ser gaúcho por razões alheias ao tradicionalismo. Já o Desapegado não vê mérito no local de nascimento ou no culto aos hábitos campeiros. Os pesquisadores descobriram que a identificação do entrevistado com um ou outro desses grupos condiciona uma série de opiniões e atitudes.

Clique nos números e conheça os 5 tipos de gaúcho

Entre os gaúchos do segmento mais tradicional, por exemplo, apenas 34% toleram o casamento gay, contra 65% do perfil menos ligado às raízes. Essa divergência já resultou em episódios de conflito no Estado. Em 2014, o anúncio de que seria realizada uma união gay no CTG Sentinela do Planalto, em Livramento, deflagrou uma polêmica ruidosa. O palco onde seria realizada a cerimônia coletiva envolvendo 30 casais — entre os quais dois homoafetivos — chegou a ser incendiado alguns dias antes do evento, e o patrão que autorizou a cerimônia recebeu ameaças anônimas. O caso foi parar nos jornais e na TV e, até hoje, repercute no meio nativista sob diferentes interpretações.

 

— Acho que não cabe fazer esse tipo de coisa no CTG. Centro de Tradições Gaúchas não é para isso — opina o domador de cavalos Gilnei Pinto da Silva, 53 anos.

 

A cantora Shana Müller lembra que os CTGs impõem normas de comportamento que valem para todos, sem discriminar grupos específicos.

 

— Há muitos anos participo e acompanho o movimento tradicionalista. Vários gays fazem parte disso. Já ouvi depoimentos assim: "Ah, mas a gente não se beija no CTG." A questão é que, se tu fores ler a carta de princípios, eles não permitem nem o beijo hétero lá dentro — contemporiza a artista.

COMO PENSAM E VIVEM OS GAÚCHOS

Casamento de pessoas do mesmo sexo

O casamento gay é mais aceito entre os gaúchos Desapegados do que entre os Fiéis

Punição criminal por comentário ou piada racista

Acho que se o país todo fosse gaúcho, era muito melhor do que é

Gilnei Pinto da Silva, domador

Outros temas como a legalização do aborto e a descriminalização da maconha revelam uma postura mais conservadora dos entrevistados, principalmente entre os cultuadores ferrenhos das tradições. Em relação à interrupção da gravidez, 47% de todos os consultados condenam a prática, índice que salta para 61% entre os Gaúchos Fiéis — praticamente o dobro do que o registrado entre os Desapegados.

 

Quanto ao uso da maconha, 41% dos participantes da sondagem são contrários à liberação, 35% concordam com a medida e os demais não souberam responder ou definiram a questão como irrelevante. A análise dos dados por perfil indica que o apoio à flexibilização da lei é maior entre os Desapegados, com 46%. Nos demais, o percentual varia de 22% a 37%.

 

Os resultados da pesquisa também sugerem que a tolerância à mudança nos costumes diminui à medida que a idade avança. Quando as respostas são divididas por faixa etária, o grupo de 18 a 24 anos se mostra mais favorável à união gay (62% de apoio) e à descriminalização da maconha (37%) do que aqueles com 55 anos ou mais. Entre os mais velhos, os índices caem, respectivamente, para 26% e 21%. A exceção é a discussão sobre o aborto. Nesse caso, o percentual favorável à legalização é exatamente o mesmo entre os dois segmentos, com 30%.

 

Em relação ao bairrismo, não há sinais de que esse sentimento vá arrefecer tão cedo, pelo menos para uma parte da sociedade gaúcha. Segundo o levantamento, quase a metade dos entrevistados do perfil mais tradicional admite que comemora o 20 de Setembro com mais orgulho do que o Dia da Independência nacional.

gilnei,

em pelotas

EXPEDIENTE

Reportagem: Juliana Bublitz e Marcelo Gonzatto

Imagens: Fernando Gomes e Omar Freitas

Design e infografia: Thais Longaray e Thais Muller

Edição de vídeos: Luan Ott

Edição digital: Rodrigo Müzell

A identidade, os costumes e os anseios de quem vive no RS, hoje e no futuro, são traçados neste grande levantamento encomendado pelo Grupo RBS à empresa Consumoteca. Com 1,8 mil entrevistados em todas as regiões do Estado, a pesquisa mostrou que o apego ao universo do Pampa não significa que o gaúcho tenha opiniões padronizadas. O estudo, detalhado em reportagens publicadas ao longo de três semanas neste especial digital, mostra cinco tipos de gaúcho, derruba mitos e aponta tendências.