Perigo no prato

Publicado em 5 de dezembro de 2016

REPORTAGEM

Carlos Rollsing

carlos.rollsing@zerohora.com.br

 

Fábio Almeida

fabio.almeida@rbstv.com.br

 

Humberto Trezzi

humberto.trezzi@zerohora.com.br

 

Jeniffer Gularte

jeniffer.gularte@diariogaucho.com.br

 

José Luis Costa

joseluis.costa@zerohora.com.br

FOTOS

Mateus Bruxel

Edição

Carlos Ismael Moreira

Juliana Jaeger

design

Diogo Perin

EDIÇÃO DE VÍDEOS

Bruna Ayres

COORDENAÇÃO DO GDI

Carlos Etchichury

Mal invisível

Mal invisível

O acordo

Os riscos

Legislação

Contrabando

Respostas

Cada vez que você come salada com pepinos, cenouras, alfaces e pimentões ou saboreia morangos na sobremesa pode estar ingerindo doses homeopáticas de produtos tóxicos. Parcela das verduras e dos legumes vendidos na Centrais de Abastecimento do Rio Grande do Sul (Ceasa), maior entreposto de hortifrutigranjeiros do Estado, tem agrotóxicos acima do recomendável, inadequados para determinadas culturas ou proibidos no Brasil.

É um mal invisível na mesa dos gaúchos.

Para eliminar pragas nas lavouras, existem agroquímicos permitidos, até certo limite. Outros, muito perigosos, banidos em vários países do mundo, são proibidos no Brasil. É aí que o descaso com a saúde alimentar começa. Sem orientação técnica ou por má-fé, agricultores contrariam regras estabelecidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão que deve zelar pela segurança dos produtos que consumimos.

Repórteres do Grupo de Investigação (GDI), formado por jornalistas do Grupo RBS, descobriram que um acordo entre autoridades que pretendia melhorar a qualidade de hortifrútis ofertados na Ceasa tem sido tratado com desleixo.

Para conferir o grau de contaminação, a reportagem contratou o Laboratório de Análises de Resíduos de Pesticidas (Larp), do Departamento de Química da UFSM, um dos mais reconhecidos do Estado, para analisar produtos vendidos na Ceasa e que vão parar na sua mesa. Repórteres compraram frutas e verduras que os gaúchos comem no dia a dia – pimentão, moranguinho, pepino, cenoura e alface. Os testes do Larp mostraram problemas graves em quase metade da amostra: nove dos 20 produtos estavam contaminados por agente químico em nível acima do que a lei permite, continham pesticidas não autorizados para o tipo de alimento, apresentavam agente químico proibido no Brasil e até veneno sequer registrado no país.

Estamos consumindo agrotóxicos mais do que o permitido. Estamos todos em risco.

 

SOLANGE CRISTINA GARCIA

Coordenadora do Laboratório de Toxicologia

da Faculdade de Farmácia da UFRGS

Alimentos com agrotóxicos acima do limite ou proibidos podem provocar doenças graves como câncer e alterações hormonais, além de má-formação em bebês das mães que ingerem esses produtos.

– Consumimos agrotóxicos mais do que o permitido. Estamos todos em risco – afirma Solange Cristina Garcia, doutora em Farmácia pela Universidade de Düsseldorf, na Alemanha, e responsável pelo Laboratório de Toxicologia da Faculdade de Farmácia da UFRGS.

O perigo identificado pelo GDI é de conhecimento do Estado pelo menos desde 2012. Naquele ano, um acordo entre autoridades e o Ministério Público estabeleceu que seriam realizados testes periódicos em produtos comercializados na Ceasa. O objetivo era garantir a venda de frutas, verduras e legumes dentro dos padrões da Anvisa. O pacto, porém, nunca foi cumprido como deveria. Até agricultores condenados pela Justiça pelo uso irregular de agrotóxicos seguem vendendo as mesmas variedades contaminadas. E o descontrole e a impunidade tornaram-se generalizados:

– Podemos ter a ideia de que 40% das amostras são problemáticas no comércio. Não é só na Ceasa. De modo geral, é no Brasil – diz a promotora Caroline Vaz, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Consumidor do Ministério Público.

A facilidade na compra de agrotóxicos usados para acabar com pragas, dentro e fora do país, potencializa o descontrole. A reportagem foi ao Paraguai e ao Uruguai e comprovou que não há dificuldades em adquirir venenos nesses países – o que é proibido pela lei brasileira – e contrabandear a carga ilegal. Em Viamão, na Região Metropolitana, o GDI flagrou agropecuárias oferecendo produtos restritos e sem receituário – o processo deveria ser semelhante ao da compra de medicamentos controlados.

Repórteres mergulharam nesse assunto complexo nos últimos três meses, leram dezenas de normas técnicas, entrevistaram pesquisadores e buscaram explicações das autoridades para a cadeia de negligência e impunidade. Também foram atrás de exemplos de iniciativas de controle que deram certo em outras partes do país e de alternativas para reduzir o perigo dos agrotóxicos nas lavouras.

Os resultados de uma das mais profundas reportagens sobre os caminhos dos agrotóxicos até o prato dos gaúchos serão contados nesta série, que se inicia hoje. O conjunto de informações que será apresentado ao longo da semana ainda será tema de um Painel RBS, com o objetivo de promover debate entre especialistas, autoridades e sociedade sobre o perigo que ronda a mesa dos gaúchos.

A CEASA EM NÚMEROS
2,5 mil produtores fornecem para a Ceasa 300 permissionários atuam em bancas e boxes 120 tipos de frutas e verduras são vendidos no local 590 mil toneladas são comercializadas por ano A companhia fornece 45% dos hortifrútis que abastecem o Rio Grande do Sul

Alimentos impróprios para consumo

Maior mercado de frutas, verduras e legumes do Estado, a Centrais de Abastecimento do Rio Grande do Sul (Ceasa), em Porto Alegre, não cumpre o acordo firmado com o Ministério Público para garantir que produtos vendidos no local estejam próprios para o consumo.

Sem fiscalização adequada, hortifrutigranjeiros infestados de produtos químicos usados para combater pragas na lavoura ou com resíduos de agrotóxicos proibidos no Brasil são comercializados todos os dias para cerca de metade da população do Estado.

Para aferir a qualidade de produtos negociados na Ceasa, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) comprou vegetais e os submeteu a análises no Laboratório de Análises de Resíduos de Pesticidas (Larp) da Universidade Federal de Santa Maria. Foram escolhidos os cinco tipos de produtos que costumam estar mais afetados por agroquímicos, segundo levantamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de 2012, o último disponível antes da realização da coleta pela reportagem: alface, cenoura, morango, pepino e pimentão.

Os testes revelaram que 45% das frutas e verduras avaliadas estavam contaminadas por substâncias proibidas, não autorizadas para o tipo de produto ou acima do limite tolerado pela lei (veja o detalhamento dos exames no quadro abaixo). Em 2012, análises em nível nacional feitas pelo Programa de Acompanhamento de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), da Anvisa, que abrange maior variedade de itens, identificou contaminação em 25% das amostras. Divulgado no mês passado, relatório referente ao período entre 2013 e 2015 apontou irregularidade em 19,7% dos produtos avaliados.

O custo dos exames encomendados pelo GDI foi pago pelo Grupo RBS. Dois técnicos do laboratório acompanharam os repórteres durante a compra de 20 unidades de vegetais (pelo menos um quilo de cada alimento), na tarde de 15 de setembro, em diferentes bancas da Ceasa.

Os testes identificaram 10 tipos de agrotóxicos em situação irregular em nove das frutas e verduras. Para o professor Renato Zanella, coordenador do Larp, os resultados preocupam.

– Acredito que há riscos à saúde. Vários compostos não são permitidos pela legislação atual, bem como alguns apareceram em concentrações acima do limite máximo permitido. Indicam deficiência em termos de normas de aplicação de agrotóxicos – afirma Zanella, doutor em Química Analítica pela Universidade de Dortmund, na Alemanha.

OS TESTES

Hortifrutigranjeiros comprados por ZH na Ceasa, em Porto Alegre, foram analisados pelo Laboratório de Análises de Resíduos de Pesticidas (Larp), do Departamento de Química da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

No morango e no pimentão, tóxicos em 75% das amostras

Os maiores problemas apareceram no pimentão e no morango – três em cada quatro estavam contaminados. Havia seis agrotóxicos inadequados no pimentão e cinco no morango. De acordo com Zanella, o maior perigo revelado pelas análises é a presença de resíduos de Acefato e Metamidofós, encontrados em quatro dos cinco alimentos: cenoura, pepino, pimentão e alface. Os dois produtos não são autorizados para nenhuma dessas culturas.

– É o caso mais crítico – alerta Zanella.

O Metamidofós, “parente” do Acefato, foi proibido no Brasil para todos os tipos de lavouras há mais de quatro anos, depois de 74 estudos científicos no país e no Exterior apontarem riscos ao sistema nervoso, aos hormônios e ao aparelho reprodutor.

Entre quatro cenouras analisadas, a única contaminada tinha Acefato e Quinoxifeno, veneno para matar fungos nas plantações. Sobre esse último não há registro no Brasil, o que indica que o produto veio parar aqui por contrabando.

Para a promotora Caroline Vaz, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Consumidor, o uso descontrolado de agrotóxicos nas lavouras é resultado da falta de orientação aos agricultores, somada à má-fé dos que querem lucro a qualquer custo e daqueles que recomendam a utilização abusiva ou ilegal de agentes

químicos.

– O veneno está na mesa – alerta a promotora.

PASSO A PASSO DA ANÁLISE
1 - Homogeneização O alimento é cortado em pedaços e passa por um liquidificador, resultando em uma pasta homogênea.
2 - Separação de componentes Após a homogeneização, uma amostra do alimento é colocada em um tubo de ensaio e são adicionados a ele solvente e sais para separação de substâncias. O alimento se concentra no fundo do tubo, e os demais compostos ficam na parte superior.
3 - Identificação de agrotóxicos A amostra é levada para um cromatógrafo. A máquina guarda um banco de dados com limites de concentrações de agrotóxicos e compara as informações com o verificado nas amostras, identificando a presença de cada substância. Os índices são transferidos para um computador, que faz a leitura dos resultados.
PERGUNTAS E RESPOSTAS

Vender fruta e verdura contaminada por agrotóxico é crime?

Sim, conforme a Lei 8.137, de 1990, que regula, entre outras coisas, a relação com o consumidor. O artigo 7º diz que é crime: "Vender, ter em depósito para vender ou por à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria em condições impróprias ao consumo". A pena é de prisão por dois a cinco anos ou multa.

Usar agrotóxico de forma abusiva ou inapropriada é crime?

Sim, conforme a Lei 7.802, de 1989, que regula toda a cadeia de fabricação, circulação e aplicação de agrotóxicos no Brasil. O artigo 15º diz: "Aquele que produzir, comercializar, transportar, aplicar, prestar serviço, der destinação a resíduos e embalagens vazias de agrotóxicos, seus componentes e afins, em descumprimento às exigências estabelecidas na legislação pertinente, estará sujeito à pena de reclusão, de dois a quatro anos, além de multa".

Pode o comerciante alegar que não tem responsabilidade sobre vegetais contaminados por agrotóxicos com o argumento de que a culpa é do produtor rural?

Não. O artigo 18º do Código de Defesa do Consumidor estabelece a responsabilidade solidária "pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo". Com isso, toda a cadeia, desde o produtor até o comerciante, poderá responder pela contaminação de hortifrutigranjeiros.

AAssociação dos Usuários da Ceasa (Assucergs), integrada por 300 atacadistas, e a Associação dos Produtores, formada por cerca de 2 mil plantadores que vendem sua própria colheita na Ceasa, alegam que uma das principais razões para o descontrole no uso de agrotóxicos é falta de conscientização. Principalmente por parte dos produtores.

– O governo, via Emater, deveria divulgar mais quais os agrotóxicos proibidos e também propiciar agrônomos para os pequenos agricultores, que muitas vezes nem conseguem arcar com o custo desse especialista – sugere Sérgio Di Salvo, presidente da Assucergs.

Di Salvo acredita que a maioria dos vendedores de hortifrútis no atacado compra produtos sem saber qual agrotóxico foi usado. Ele mesmo respondeu a termo de ajustamento de conduta (TAC), a partir da apuração feita na Ceasa desde 2012. Encontraram cenoura com clorpirifós (produto não autorizado nessa cultura) e pimentão com carbendazim e clorpirifós (ambos vetados na cultura).

– Comprei sem saber o que tinha sido usado. Era assim. Acertei com o MP não comprar mais desse produtor. Agora, nós, atacadistas, adotamos outra prática: colocamos rótulo digital em tudo e, assim, conseguimos determinar quais produtores seguem as regras. Podemos provar que não compactuamos com uso ilegal de agrotóxico – diz Di Salvo.

Evandro Finkler, da Associação dos Produtores, acredita que muitos usavam venenos proibidos na lavoura por falta de opção. Ele ressalta que, até 2014, não existiam agrotóxicos registrados no Brasil para plantas como batata-doce, agrião, mostarda, acelga, salsa, rúcula, rabanete, couve chinesa e coentro. Resultado: os agricultores usavam produtos vetados no país ou aceitos somente para outras culturas.

– Conseguimos que o governo baixasse normativa que levou ao registro de agrotóxicos para essas culturas. E melhorou muito de lá para cá – diz Finkler.

O argumento, porém, não justifica os resultados dos testes realizados pela reportagem. Todas as frutas e verduras examinadas no laboratório da UFSM – e que continham agrotóxicos em situação irregular – já possuíam pesticidas habilitados para uso no Brasil.

AS OPÇÕES

Produtores reclamam da falta de opção de venenos permitidos. De acordo com a Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária e Irrigação, porém, há grande variedade de agrotóxicos  registrados para  hortifrutiganjeiros:

45 para alface 46 para cenoura 48 para morango 59 para pimentão 89 para pepino
OS AGROTÓXICOS

Os testes do Laboratório de Análises de Resíduos de Pesticidas (Larp), do Departamento de Química da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), identificaram 10 diferentes tipos de agrotóxicos nos hortifrutigranjeiros comprados na Ceasa, na Capital. Confira o que é cada um e para quais usos têm ou não permissão.

INSETICIDA Produto utilizado para eliminar insetos FUNGICIDA Empregado para destruir ou inibir a ação de fungos ACARICIDA Aplicado no extermínio dos ácaros

Pela Lei de Acesso à Informação, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) obteve todos os resultados das análises feitas pelo Laboratório Central do Estado (Lacen) em alimentos da Ceasa. Em 2013, detectou-se Metamidofós em morangos – princípio ativo vetado no Brasil em razão da alta toxicidade. O vendedor deveria ter sido proibido de trabalhar com a fruta por um ano na Ceasa, conforme prevê o acordo. Mas ele permaneceu vendendo seus produtos sem que ninguém o importunasse. O diretor técnico-operacional da Ceasa, Ailton Machado, confirma que, até hoje, o máximo exigido de agricultores infratores foi a participação em cursos.

A CEASA EM NÚMEROS 2,5 mil produtores fornecem para a Ceasa 300 permissionários atuam em bancas e boxes 120 tipos de frutas e verduras são vendidos no local 590 mil toneladas são comercializadas por ano A companhia fornece 45% dos hortifrútis que abastecem o Rio Grande do Sul
OS TESTES
SUBSTÂNCIA SEM REGISTRO NO PAÍS Quinoxifeno SUBSTÂNCIA NÃO-AUTORIZADA PARA CULTURA Acefato TOTAL DE SUBSTÂNCIAS INADEQUADAS Duas
SUBSTÂNCIA PROIBIDA NO PAÍS Metamidofós SUBSTÂNCIAS ACIMA DO LIMITE MÁXIMO PERMITIDO Carbendazim e Tiofanato Metílico TOTAL DE SUBSTÂNCIAS INADEQUADAS Seis SUBSTÂNCIA NÃO-AUTORIZADA PARA CULTURA Metomil, Acefato e Triflumurom
SUBSTÂNCIA PROIBIDA NO PAÍS Metamidofós SUBSTÂNCIA NÃO-AUTORIZADA PARA CULTURA Acefato TOTAL DE SUBSTÂNCIAS INADEQUADAS Duas
SUBSTÂNCIA PROIBIDA NO PAÍS Metamidofós (detectada a presença, mas não foi possível quantificar a concentração) SUBSTÂNCIA NÃO-AUTORIZADA PARA CULTURA Acefato TOTAL DE SUBSTÂNCIAS INADEQUADAS Duas
SUBSTÂNCIAS NÃO-AUTORIZADAS PARA CULTURA Imidacloprido e Dimetoato (detectada presença, mas não foi possível quantificar a concentração) SUBSTÂNCIAS ACIMA DO LIMITE MÁXIMO PERMITIDO Fenpiroximato, Carbendazim e Tiofanato metílico TOTAL DE SUBSTÂNCIAS INADEQUADAS Cinco
PASSO A PASSO DA ANÁLISE

1 - Homogeneização

O alimento é cortado em pedaços e passa por um liquidificador, resultando em uma pasta homogênea.

2 - Separação de componentes

Após a homogeneização, uma amostra do alimento é colocada em um tubo de ensaio e são adicionados a ele solvente e sais para separação de substâncias. O alimento se concentra no fundo do tubo, e os demais compostos ficam na parte superior.

3 - Identificação de agrotóxicos

A amostra é levada para um cromatógrafo. A máquina guarda um banco de dados com limites de concentrações de agrotóxicos e compara as informações com o verificado nas amostras, identificando a presença de cada substância. Os índices são transferidos para um computador, que faz a leitura dos resultados.

PERGUNTAS E RESPOSTAS
AS OPÇÕES
45 para alface 46 para cenoura 48 para morango 59 para pimentão 89 para pepino OS AGROTÓXICOS