Paraolímpicos:

eles já são vencedores

Publicado em 03 de setembro de 2016

Na Paraolimpíada do Rio, que começa em 7 de setembro, o Brasil será representado por 285 atletas. Dez nasceram no Rio Grande do Sul ou treinam em clubes do Estado. Você dirá que é lugar-comum, mas é inevitável acentuar: todos são vencedores. Todos encarnam histórias de superação, de dificuldades, de preconceitos, de traumas.

Fabio

esgrimista

Jovane esgrimista

Mônica

esgrimista

Vanderson esgrimista

Ricardinho futebol

Gelson basquete

Alex

maratona

Alex

goalball

Roberto

natação

Geraldo

tiro

texto

Cristiel Gasparetto

cristiel.gasparetto@diariogaucho.com.br

Edição

Ticiano Osório

design

Diogo Perin

Um encontro fortuito foi o ponto de partida para três dos quatro esgrimistas do Rio Grande do Sul nos Jogos Paraolímpicos do Rio, que começam na próxima quarta-feira. Há 10 anos, Rosa Bonato, incentivadora de um grupo de pessoas com necessidades especiais, abordou Fabio Luiz Damasceno em uma rua de Esteio. Envergonhado por ter virado dependente da cadeira de rodas, Fabio quase não saía de casa. Nesse dia, saiu e foi convidado por aquela desconhecida a participar de reuniões com outros cadeirantes.

Em um desses encontros, viu uma apresentação do esporte da espada, sabre e florete. Aos poucos, passou a frequentar aulas, aprimorar-se e a competir. Neste ano, disputará a sua primeira Paraolimpíada. Foi Fabio, em 2008, quem convidou Jovane Guissone a conhecer o mundo da esgrima. Campeão paraolímpico em 2012, Jovane buscará o segundo ouro no Rio. Uma terceira representante gaúcha na modalidade é Mônica Santos. Como começou no esporte? Por indicação de Jovane, que viu nela energia e potencial para se destacar nas pistas.

FOTO: Mateus Bruxel

Fabio Damasceno,

esgrimista

Fabio, 33 anos, é natural de Governador Valadares (MG). Passou a infância em São Paulo, mas, quando ainda era adolescente, a irmã se casou com um gaúcho, e a família resolveu se mudar para o Rio Grande do Sul. Tinha 19 anos e morava em Esteio no dia da fatalidade que mudou sua vida.

– Estava fazendo besteira, era cabeça fraca – lembra Fabio, que não gosta de falar das circunstâncias do tiro que o colocou na cadeira de rodas.

Depois de uma pausa, revela que foi durante uma briga, em São Leopoldo. O projétil se alojou na medula. Imediatamente, perdeu o movimento das pernas.

– Foi como se o meu corpo tivesse se dividido
ao meio. As pernas ficaram paradas e não mexeram mais. No hospital, o médico foi direto:
“A possibilidade de voltar a andar é remota”.

E Fabio não andou mais. Na época, trabalhava como pedreiro em Canoas, já tinha mulher e uma filha de 10 meses. Abalado com a situação, ficou quase dois anos recluso em casa.

Ao conhecer a esgrima, gostou, mas como as aulas eram em Porto Alegre, a distância se tornou um complicador – além da questão da acessibilidade, muito pior na década passada, principalmente no que se refere ao transporte público.

– Antes, na linha que eu utilizo, era só um ônibus adaptado. Se perdesse, demoraria horas para vir de novo. Agora, a espera é bem menor – comenta.

Aos poucos, começou a frequentar os treinos, que ainda eram na sede da Associação de Servidores da Área de Segurança Portadores de Deficiência (Asasepode) – hoje, são no Grêmio Náutico União (GNU).

Em 2007, disputou o primeiro campeonato e já conseguiu medalha. Em 2009, foi campeão da Copa do Brasil e do Brasileiro. A partir daí, passou a treinar mais. Os resultados expressivos vieram a partir de 2014, quando chegou ao topo do ranking nacional. Ano passado, ingressou na seleção e conquistou o Regional das Américas, no Canadá, nas armas florete e espada. Isso na categoria A, para cadeirantes com mais mobilidade. Este ano, venceu a mesma competição, garantindo a vaga olímpica.

– Foi uma loucura. Me classifiquei na espada, que não era a minha principal arma, e agora é. Foi emocionante. Na hora, vêm várias coisas na cabeça, você pensa na família, nas dificuldades que teve. Todo atleta sonha com Olimpíada.

Dificuldades, Fabio sempre teve. Mora no bairro Primavera, região pobre de Esteio, e nunca conseguiu patrocínio. Para treinar, pega dois ônibus e o trem, com deslocamento que supera duas horas só para chegar ao GNU. Entre ida e volta para casa, são quase cinco horas. O valor que recebe do programa Bolsa-Atleta, R$ 925 por mês, não chega a cobrir os gastos da preparação, que inclui a compra de material – uma espada, por exemplo, custa cerca de R$ 900.

Também recebe um salário mínimo de aposentadoria por invalidez. Pouco para sustentar os três filhos: Kerolin, 15 anos, Kevin, 12, e Murilo, seis. Sorte que a mulher, Cenira, também trabalha e ajuda na renda familiar. Ela está com Fabio desde antes de ele ser baleado.

– Família é tudo. A gente que é do meio sabe, muitas mulheres não aguentam essa bronca – diz
o esgrimista.

Sobre a Paraolimpíada, garante estar tranquilo, mesmo sabendo que as chances de medalha são pequenas:

– Pretendo colocar em prática o que tenho treinado. Quero fazer o meu melhor.

Desde que mergulhou no mundo da esgrima, Fabio esteve duas vezes no Canadá e em vários países da Europa.

– Nas viagens, não temos acompanhante, temos que nos virar para tomar banho, nos vestir. Só não faço faxina (risos).

Atualmente, treina de segunda sexta, das 10h30min às 15h.

– O esporte, para mim, é tudo. É a única coisa que faço, dedico todo o meu tempo a ele.

FOTO: Diego Vara

Jovane Guissone,

da espada

Quando Fabio encontrou Jovane Silva Guissone em Esteio e o convidou para conhecer a esgrima, não imaginava que em pouco tempo surgiria um campeão.

– Com insistência, ele veio e virou um fenômeno, foi medalha de ouro em um ciclo olímpico de treinos. É apaixonado – comenta Fabio, ao falar do amigo.

Natural de Barros Cassal, região noroeste do Estado, Jovane se criou na zona rural, ajudando os pais no cultivo de fumo. Com 18 anos, foi servir ao Exército em Santa Maria. O sonho era seguir a carreira militar, mas todos os recrutas da sua turma acabaram dispensados. A saída foi voltar para a terra natal.

– Mas a vida na agricultura é difícil, não tem salário todo mês. Queria ter um serviço de carteira assinada – recorda o paratleta.

Com 21 anos, mudou-se para a Região Metropolitana. Em Canoas, trabalhou como açougueiro e também como segurança. A mudança brusca na vida aconteceu em novembro de 2004. Transitava com um amigo pela BR-116 quando o carro onde estavam foi abordado por dois bandidos em uma moto. Um deles anunciou o assalto.

– Estava na carona, lembro do farol da moto, escutei o barulho do tiro, caí para a frente e não consegui voltar. Na hora, vi que perdi o movimento das pernas – conta Jovane.

Foram 20 dias em coma e dois meses internado na UTI. A bala perfurou pulmão, baço, duas costelas e se alojou na coluna. Mais tarde, Jovane soube que os bandidos foram presos, mas não quis se inteirar se foram responsabilizados:

– Espero que Deus dê mais uma chance para eles, como deu para mim.

Como o projétil se alojou na espinha, havia o risco de ficar tetraplégico. A cirurgia era delicada:

– Tinha 22 anos. Só pedia a Deus que ficasse vivo.

Depois da alta, voltou para Esteio e começou a fazer fisioterapia. Na recuperação, contou com os pais, que vinham de Barros Cassal para ajudá-lo. Jovane não queria retornar para o Interior, achava que teria mais assistência médica morando perto de Porto Alegre. Os primeiros meses sem mexer as pernas são de lembranças dolorosas:

– Foram dois anos na fisioterapia, tive que aprender a fazer tudo. No início, tinha vergonha de sair de casa porque estava em uma cadeira de rodas.

Em 2007, por indicação de amigos, resolveu treinar basquete. No ano seguinte, Fabio o apresentou à esgrima. Não demorou para conquistar duas medalhas de prata em uma competição em Curitiba, na espada. Em seguida, partiu para um torneio na Argentina, de onde voltou com uma prata e um bronze. Em 2009, já estava na seleção brasileira e afirmado como paratleta.

– Fiquei um mês treinando na França, comecei a competir fora. Quando assumi a posição na seleção, a ficha caiu que ia ser atleta. Sou uma pessoa muito dedicada, não gosto de perder. Em esportes coletivos, não dei muito certo. Já a esgrima é totalmente individual, um esporte que estou gostando para caramba.

Em 2011, conquistou o bronze em uma etapa da Copa do Mundo. Foi o primeiro medalhista brasileiro na esgrima em cadeira de rodas. Nos Jogos Olímpicos de Londres, o auge – a medalha de ouro:

– Não foi à toa que ganhei, treino muito. Acredito no meu trabalho e na equipe.

A conquista mudou a vida, a casa e a preparação para competições. Antes, Jovane treinava na sede da Asasepode e precisava pegar três ônibus e o trem para chegar ao local, que fica na Avenida Aparício Borges – mais de três horas de deslocamento. A remuneração, via programa Bolsa-Atleta, era de R$ 925.

Depois do ouro, ganhou um bônus da Caixa Econômica Federal e passou a ser patrocinado pela Nissan, que lhe ofereceu um carro. A casa também é outra. De uma residência na periferia, em rua de chão batido e sem acessibilidade, mudou-se para uma moradia mais confortável, no centro de Esteio. Agora, recebe a Bolsa-Pódio, concedida a competidores de ponta e com um valor bem superior à Bolsa-Atleta – entre R$ 5 mil e R$ 15 mil.

Por liderar o ranking mundial, o esgrimista acredita que a cobrança será maior do que em 2012. Afirma que está preparado e ansioso para subir na pista.

– No esporte, vivi de novo. O esporte me trouxe felicidade, amor e família – diz o marido de Queli e pai de Jovane Júnior, cinco anos, e Amanda, 15 anos, enteada que considera uma filha.

FOTO: Mateus Bruxel

Mônica Santos,

do florete

Dois anos após ser apresentado à esgrima, Jovane levou para a modalidade uma nova integrante. Depois de praticar kart, tênis de mesa, tiro, basquete e vela, Mônica da Silva Santos se encontrou mesmo com o florete na mão.

Nascida e criada na zona rural de Santo Antônio da Patrulha, Mônica teve a vida mudada drasticamente em 2002. Costureira em uma fábrica de calçados, certo dia sentiu fraqueza. Os médicos acharam que era anemia, mas ela descobriu que estava grávida. Dias depois, acordou sem conseguir mexer as pernas.

Para ser diagnosticada, a jovem deveria fazer uma bateria de exames, que não puderam ser realizados devido ao pouco tempo de gestação. Ficou três meses hospitalizada em Porto Alegre sem saber o que tinha. Até que os procedimentos foram feitos. Descobriu, então, um angioma medular, uma má formação que se manifestaria quando houvesse a interrupção da menstruação, na gravidez ou na menopausa.

Foi aí que tomou a decisão mais importante da sua vida. Mônica tinha a opção de realizar uma cirurgia, que daria a chance de voltar a andar, mas teria de interromper a gravidez. Não quis. Teve de assinar termo se responsabilizando pelas consequências.

– Com certeza, faria tudo de novo, mesmo correndo todos os riscos. A única coisa que pensei foi nos meus pais, deixar uma sementinha minha para eles – diz Mônica.

Com oito meses de gravidez, mais um drama: a morte do pai, em acidente de trabalho com um trator. Na missa de sétimo dia, passou mal, e a filha Paolla, hoje com 13 anos, acabou nascendo antes da hora.

Poucas semanas depois, Mônica seria submetida a uma cirurgia que poderia causar a sua morte ou até deixá-la tetraplégica. Despediu-se da filha, sabendo que talvez nunca mais a pegasse no colo e a deixou aos cuidados da mãe. Após a operação, mais um momento difícil. Ficou 11 dias sem se mexer, até que sentiu a mão “formigar” e, aos poucos, começou a movimentar os braços e a falar.

Ao retornar para casa, o reencontro com a filha foi o estímulo para não se abater:

– Ela foi meu grande anjo, me deu forças para ser independente. Em três meses, tirei minha carteira (de habilitação). Nunca tive depressão, sempre fui muito para cima, pelo apoio da família, do marido, dos irmãos. Nunca deixei de ir a um local por falta de acessibilidade. Sempre tive uma estrutura boa de família.

Quando Paolla passou a frequentar a creche, Mônica percebeu que era a hora de buscar emprego ou novas atividades. Depois de experimentar diversas modalidades e jogar basquete por três anos na Ulbra, surgiu o convite de Jovane Guissone e a entrada no mundo da esgrima. Com 20 dias de treinamento, participou de um campeonato em Curitiba e já conquistou uma medalha de terceiro lugar.

– O pessoal falou: se tu continuar treinando, pode ter chances de seleção – recorda.

Desde 2012, é campeã brasileira em florete e titular da seleção. Atualmente, é a única mulher do Brasil a conquistar medalha de ouro na esgrima, no Regional das Américas.

– Nem imaginava isso, entrei no esporte para ter uma válvula de escape – comenta.

Em 2013, enfrentou mais um drama: a morte da mãe, após acidente de trânsito. Neste mesmo ano, resolveu que começaria a focar na vaga paraolímpica. Aumentou o tempo de treinamento, que era três vezes por semana, para cinco dias por semana, em dois turnos. A prioridade de vida passou a ser a esgrima. Um estágio de 30 dias na França, treinos em Curitiba e em São Paulo fizeram parte da preparação.

– Mesmo com todas as perdas e ausências, resolvi que nada ia me tirar do objetivo de disputar a Paraolimpíada. Acho que estou na minha melhor fase. Desde a metade de 2014, estou 100% – explica.

Mônica se mantém com dinheiro do Bolsa-Atleta, programa do governo federal, e com patrocínio da Concepa/Triunfo. Como mora em Santo Antônio da Patrulha, para treinar no Grêmio Náutico União ela faz 120 quilômetros por dia na freeway.

– Tenho um apoio bem grande, uma estrutura forte. Eles falaram que iriam me patrocinar pela minha história de vida, pelo meu esforço – destaca.

Na categoria A, na qual está em 13ª do mundo, é a única cadeirante. Assim, enfrentará rivais com deficiências menores – sua categoria seria a B, em que todos os competidores têm lesões medulares, mas quando ela começou o ciclo olímpico não havia para mulheres no Brasil. A expectativa para os Jogos do Rio é buscar experiência e, quem sabe, beliscar um pódio.

– Estou pensando em dar o meu melhor, dar trabalho para elas. Medalhar é difícil, mas não impossível. Essa Paraolimpíada será para sentir o clima, ver como funciona e focar o pódio em 2020 – argumenta.

Em Santo Antônio da Patrulha, a esgrimista casada com Angelo Claudeci da Silva, o Cebolinha, virou exemplo. Todos a conhecem. Os conterrâneos a param para fazer fotos e perguntam se viu neve no país que visitou. Competitiva, brigona na pista, recebeu dos colegas de equipe o apelido de Monstrinha.

– Entro para ganhar. Se faço um ponto, grito, entro no psicológico das minhas adversárias.

 

FOTO: Félix Zucco

Vanderson,
o caçula da esgrima

No último dia 24, enquanto toda a delegação brasileira paraolímpica já fazia a aclimatação em São Paulo, Vanderson Luis da Silva Chaves, 22 anos, deslocava-se para mais um treino no Grêmio Náutico União. O telefone tocou, e ele recebeu uma informação inesperada: foi chamado para ocupar uma das vagas que seriam da Rússia na competição de esgrima – o país do Leste Europeu foi excluído dos Jogos do Rio em razão do escândalo do doping.

– Custei a acreditar. Na família, a choradeira foi total – conta Vanderson, porto-alegrense nascido e criado no bairro Bom Jesus.

O quarto representante da esgrima gaúcha na Paraolimpíada tinha 12 anos quando foi atingido por um tiro. Ainda lembra de tudo em detalhes. Chegava em casa após voltar de um curso. Ao entrar no quarto, o tio, que dividia o cômodo com ele, mexia em uma arma, que acidentalmente disparou. A bala acertou o pescoço e atingiu a medula:

– Senti o impacto, caí e já não consegui mais mexer as pernas.

Ficou mais de 40 dias internado. Quando voltou ao convívio escolar, de cadeira de rodas, alguns meninos que considerava amigos não quiseram conversa. Mas Vanderson não se abalou. Selecionou as amizades e se adaptou.

– Talvez pela idade, até que foi tranquilo. As barreiras, eu sempre tive por ser um guri da vila. Como a minha família enfrentava dificuldades financeiras, não tive a oportunidade de ser tratado na Rede-Sara (referência em habilitação), como muitos. Aprendi mesmo no dia a dia.

Em sua primeira entrevista de emprego, aos 17 anos, foi incentivado a conhecer a esgrima. O selecionador era Mauricio Stempniak, um veterano no esporte e também cadeirante.

– Na hora, ele me convidou. Falou que eu ia conhecer o mundo. Eu meio que ignorei, só queria o emprego – conta o jovem de riso fácil.

Semanas depois, mais por insistência da mãe, Vanderson foi conferir como era a “tal da esgrima”.

– Na primeira vez que subi na cadeira, senti a adrenalina e me apaixonei – relata.

A estreia foi em 2012. No ano seguinte, já foi convocado para a seleção. Em 2014, acabou em terceiro lugar no Mundial Sub-23, na Polônia. No Regional das Américas deste ano, sagrou-se vice-campeão no florete e terceiro na espada. Esses resultados se tornaram fundamentais para sua convocação.

Vanderson treina de segunda a sexta, das 9h30min às 16h. Três dias por semana, frequenta uma academia para fortalecer a musculatura.

– Quando entrei para a seleção, a expectativa deles (dirigentes) era me preparar para Tóquio 2020 – diz Vanderson. – No Rio, se eu ficar concentrado e der o máximo, tenho chance de trazer medalha.

O deslocamento para os treinos no Grêmio Náutico União é de ônibus. São duas conduções e cerca de uma hora no transporte coletivo. O sustento vem dos R$ 925 do Bolsa-Atleta e de um salário mínimo pago pelo governo federal. O caçula da turma até pode não trazer medalha, mas sabe bem o que o esporte representa para ele:

– A esgrima, para mim, é tudo: diversão, trabalho, é onde fujo dos meus problemas. A minha vida, praticamente, se resume à esgrima.

FOTO: Mateus Bruxel

Ricardinho,

camisa 10 do futebol

Épossível que os torcedores de Grêmio e Inter não saibam, mas no Rio Grande do Sul, mais precisamente em Canoas, joga um craque, eleito duas vezes o melhor do mundo: Ricardo Steinmetz Alves, 27 anos, o Ricardinho. O gaúcho nascido em Osório veste a camisa 10 da seleção de futebol de cinco, que na Paraolimpíada do Rio buscará a quarta medalha de ouro para o país.

Até os seis anos, Ricardinho enxergava normalmente. A partir daí, começou a apresentar problemas. A primeira a perceber foi uma professora. O caso passou a ser investigado, dando início a dois anos de exames e cirurgias:

– Era chato o pós-operatório, ficar em repouso. Sempre fui muito ativo, lembro que ficava agoniado. Quando eu tinha oito anos, os médicos descobriram que se tratava de um descolamento de retina nos dois olhos, provocado não por um trauma, que seria a situação mais comum, mas algo que ocorreu aos poucos, um caso raro – conta o paratleta.

Por ser uma criança “destemida e cheia de energia”, diz que assimilou bem a nova realidade. Mesmo sem visão, até andar de bicicleta conseguiu:

– Caía, levantava. Não tinha medo. Isso me ajudou muito. Às vezes, ficava um pouco chateado, mas insistia. Tudo era mais difícil, muitas vezes me machucava, mais ia de novo. Preferia correr o risco a ficar parado.

Ao saber que o filho não enxergaria mais, o pai, Célio Luiz, resolveu levar a família para Porto Alegre, onde o menino poderia ter um ensino adequado no Instituto Santa Luzia, referência para deficientes visuais. Por um ano, morou no bairro Cavalhada. Depois, a família foi para a Restinga, onde Ricardinho passou o restante da infância e a adolescência.

– O preconceito existe e sempre vai existir. Muitas vezes, não é maldade, mas falta de informação. A sociedade acha que todo deficiente é incapaz, tem a imagem daquele que pede esmola. Hoje, há vagas no mercado de trabalho que as empresas não conseguem preencher. Muitos não querem trabalhar, preferem pedir esmolas ou se escorar no governo. Esses mancham a imagem dos outros. Não dá para culpar só a sociedade – argumenta.

Em certo dia da infância, um amigo chegou com uma bola dentro de uma sacola. O garoto a colocou no chão e chutou. O barulho soou como um alerta, abrindo a mente de Ricardinho. Pelo som, conseguiria jogar futebol.

– A partir daí, fui me redescobrindo, tendo noção de espaço. Tinha a dificuldade dobrada, mas isso me ajudou: fiquei mais rápido.

Às vezes, a gurizada não queria jogar com a bola na sacola. Mas aí um amigo intervinha e mantinha a “tradição”. Ricardinho também evoluiu ao jogar sozinho por horas a fio. Enquanto os outros brincavam com o videogame, ele ficava chutando a bola na parede e treinando dribles.

Tudo começou a mudar na vida do menino quando ele conheceu o professor Dodô, no Instituto Santa Luzia. Com a experiência de trabalhar com cegos há mais de 40 anos, Dodô convidou o garoto para treinar futebol, explicou a ele que existiam clubes e seleções de deficientes visuais. Naquele momento, o sonho de brilhar nas quadras renasceu.

– Jogava bola a tarde inteira. Botei na cabeça que eu queria. E tu vai acreditando, as pessoas vão dando força, incentivando.

Quando tinha 15 anos, passou a jogar no time da Associação de Cegos do Rio Grande do Sul (Acergs). Com 16, já era titular e artilheiro da equipe que conquistou o Regional. Depois, foi campeão brasileiro. Logo, veio o chamado da seleção.

– Me ligaram dizendo que fui convocado. Achei que era para a sub-17 ou ou sub-20, quando falaram que era para a principal, quase caí da cadeira (risos).

Com apenas 17 anos, em 2006, foi eleito o melhor jogador do mundo. Em 2007, assumiu a camisa 10 da seleção, que usa até hoje. Nos Jogos Paraolímpicos de Pequim, mais um passo da ascensão meteórica: conquistou a medalha de ouro.

Em Londres 2012, veio o bicampeonato paraolímpico. O time brasileiro é considerado uma máquina. Desde 2007, ganhou todos os campeonatos que disputou – são mais de 15 em sequência.

– O time é bom, os guris são dedicados, todos mantêm a humildade. Os colegas do Nordeste passaram fome. Quando tiveram a oportunidade, agarraram. Comigo foi assim também, tive a segunda chance de ser jogador de futebol e agarrei com as duas mãos. O esporte mudou minha vida. Hoje, as pessoas me veem como atleta de alto rendimento – comenta o gaúcho.

Ricardinho se sustenta por meio do Bolsa-Atleta, concedido pelo governo federal, e com um patrocínio da Caixa Econômica Federal repassado a atletas que jogam na seleção. A remuneração é suficiente, mas apertada, já que ele gasta boa parte para manter a condição física, seja com a compra de suplementos ou em mensalidade de academia.

O craque gaúcho atua como ala-esquerda na Associação Gaúcha de Futsal para Cegos (Agafuc), equipe de Canoas, atual campeã brasileira e um dos times mais estruturados do país. Neste ano, semanas antes da convocação definitiva para os Jogos do Rio, sofreu uma grave lesão: fraturou a fíbula e rompeu os ligamentos de um dos tornozelos. Desde então, fez tratamento intensivo. Acredita que estará 100% em busca do seu terceiro ouro. Argentina, China e Turquia são os principais adversários. Sobre a Paraolimpíada ser no Brasil, destaca que há os dois lados:

– O ruim é a pressão por jogar em casa e o bom será o apoio da torcida. Tem que deixar o ruim de lado e aproveitar o bom.

Pouco badalado em sua terra, Ricardinho já foi personagem de documentários e reportagens de emissoras de países como Japão e Itália. Morador do bairro Cavalhada, na zona sul da Capital, vive rotina tranquila.

– Saio sozinho por aí com minha bengalinha. Pego ônibus para treinar em Canoas. Desço no Centro, vou para o trem – relata.

Ele gostaria de só um pouco mais de reconhecimento:

– Acho que nós (atletas paraolímpicos) merecemos bem mais, deveríamos ser mais reconhecidos pelos nossos resultados. No futebol, por exemplo, o Brasil tem três ouros.

FOTO: Marcelo Lacerda, divulgação

Gelson, do basquete

em cadeira de rodas

ETudo mudou na vida de Gelson José da Silva Júnior em 2002, durante passeio sem compromisso em um shopping de Goiânia. O porto-alegrense que fazia faculdade na cidade do Centro-Oeste foi abordado por uma desconhecida. Era Ana Cardoso, técnica de basquete em cadeira de rodas. Pelo porte físico e pela estatura, ele era um atleta em potencial.

Então com 22 anos, Gelson fez um teste no time, foi aprovado e nunca mais parou de jogar. O gaúcho se descobriu como paratleta.

– Mesmo estudando em colégio particular toda a minha vida, nunca ninguém me falou do esporte paraolímpico – lamenta.

Gelson teve paralisia infantil aos seis meses. Um caso incomum, que chegou a ser notícia na época (1980), já que a doença estava praticamente erradicada. A enfermidade afetou a perna direita, que perdeu a mobilidade. Gelson até consegue caminhar, mas com a ajuda de órteses — aparelho ortopédico que deixava a perna imobilizada, como se estivesse enfaixada. A infância, ele passou em Viamão. Relata que não sofreu bullying nem se sentiu vítima de preconceito.

– Graças a Deus, sempre foi tranquilo. Morei em um condomínio em que todos me tratavam de igual para igual.

Mesmo com limitação de mobilidade, foi uma criança e um adolescente ativo, que gostava de esportes e de estar na rua, “agitando”.

– Quebrei muitas órteses querendo correr e jogar bola (risos) – recorda.

Na escola, jogava basquete e chegou a disputar campeonatos colegiais, mas tinha dificuldades de acompanhar os meninos com mobilidade normal.

No basquete de cadeira de rodas, precisou de apenas duas temporadas para se destacar e ser convocado para a seleção. Teve o nome cotado para a Paraolimpíada de Atenas 2004, mas acabou indo mesmo para os Jogos de Pequim 2008. Há cinco anos, mora em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista. Antes, residiu na capital São Paulo, sempre tendo o basquete como profissão.

– Quando vim para São Paulo, já vim contratado pela ADD, uma das principais equipes do país. Me deram moradia, faculdade e ajuda de custo – diz o ala-pivô.

Atualmente, o gaúcho pode ser considerado um atleta top no basquete em cadeira de rodas. Tem uma rede de patrocinadores e ainda recebe recursos do programa Bolsa-Atleta.

– Cheguei em um patamar raro no esporte paraolímpico – admite.

A rotina na quadra é de seis a oito horas por dia de treinamentos, além das viagens para jogos e competições. Disputar a segunda Paraolimpíada, agora no Brasil, é a realização de um sonho, enfatiza ele.

– Jogar no nosso país, com a torcida ao lado, vai ser fantástico. É quando o atleta sente que chegou ao auge.

Chances de pódio existem. Os norte-americanos, adversários na estreia, obviamente, são os favoritos ao ouro. Austrália, Canadá e Grã-Bretanha também são candidatos. A medalha é objetivo, mas viver o espírito paraolímpico já é satisfação:

– De tudo, o que mais surpreende é a superação. Lembro da cena que vi em Pequim, de dois atletas sem braço, um alimentando o outro com os pés. Do anão ao cego e aos amputados, não há tempo ruim, só superação e solidariedade. Todo mundo se ajuda.

FOTO: Mateus Bruxel

Alex Pires,

maratonista

Alex Douglas Pires da Silva sempre gostou de correr. E nunca foi pouco. Desde os 16 anos, compete em provas de atletismo, disputa rústicas e até os 42,1 quilômetros das maratonas. Aos 26 anos, o gaúcho nascido em Sapiranga, no Vale do Sinos, vai para a sua primeira Paraolimpíada como uma das esperanças de medalha do Brasil na maratona.

Foi com oito anos que ele descobriu sua deficiência. Ao tentar tirar uma camiseta mais justa, não conseguiu. Os médicos não sabem ao certo quando e como aconteceu o problema. O fato é que Alex teve uma fratura na região onde cresce o braço esquerdo, no ombro.

Isso acabou girando a rotação do membro.
O normal é o braço se desenvolver para a frente –
o dele ficou para trás. Assim, o esquerdo não cresceu do ombro ao cotovelo.

– Quando o médico tentou corrigir, disse que se tratava de um caso raro. Se quebrei em algum momento, acabei não sentindo dor. Tenho quase um palmo de diferença de um braço para o outro – comenta.

Uma cirurgia poderia ter sido realizada, mas existia o risco de perder o movimento. Ele e a família optaram por não fazer. No colégio, sofreu bullying. Alguns colegas, poucos, ele deixa claro, chamavam-no de Bracinho.

– Mas eu também não dava muita importância.

O gosto pelo esporte surgiu cedo. Desde criança, jogava futebol em equipes de Sapiranga. Despertou para a corrida quando disputou uma rústica na cidade e venceu em sua categoria.

– A partir daí, comecei a correr. Primeiro, sozinho. Depois, procurei um grupo em Porto Alegre. Passei a me destacar e resolvi buscar um clube filiado. Foi então que entrei em contato com a Sogipa – rememora.

No começo, Alex disputava corridas de rua e achava que não precisava ser um paratleta. Porém, os amigos o convenceram do contrário, já que a musculatura do braço atrofiado gera um desequilíbrio e queda de performance – ele não consegue fazer o mesmo movimento com os dois braços. Em 2011, entrou para o circuito paraolímpico. Os resultados não demoraram a aparecer. Competindo na classe T-46, para deficiente de membro superior, quase conseguiu vaga para Londres 2012.

No ano seguinte, despontou. Foi convocado para três provas do Mundial. Ganhou a prata nos 1,5 mil e nos 5 mil metros e bronze nos 800m. Terminou 2014 na liderança do ranking mundial dos 1,5 mil metros. No ano passado, foi vice-campeão no Mundial de Maratona e nos 1,5 mil metros. Nos Jogos do Rio, disputará a maratona.

– Estou bem feliz, principalmente por ser a minha primeira Paraolimpíada. Foram quatro anos treinando muito, com altos e baixos. Às vezes, sofrendo com lesões e abrindo mão de muita coisa. E por ser em casa, será uma oportunidade de minha família me ver competindo – comenta Alex.

A chance de medalha, afirma, é grande. Desde que começou o atual ciclo paraolímpico, acredita que evoluiu bastante, não só na questão física, mas também no lado psicológico.

– Vivo só do esporte, treino dois períodos por dia. Estou trabalhando muito para brigar pelo ouro – acrescenta.

Mas nem sempre foi assim. Até 2012, a esperança brasileira de medalha conciliava esporte e trabalho. Vindo de uma família de classe média baixa, Alex Pires foi auxiliar administrativo e de escritório. Com a Bolsa-Pódio, concedida pelo governo, e um patrocínio da Caixa Loterias, conseguiu ter a remuneração que o mantém. Ainda recebe a ajuda de apoiadores, que o auxiliam com a parte médica, e conta com a estrutura da Sogipa, que oferece ajuda de custo.

– Para ficar em alto nível, sai caro. Tem massagem, fisioterapia, suplementação e plano de saúde – enumera.

A melhor marca de Alex é 2h27min36s. Se corresse a Maratona de Porto Alegre, ficaria entre os cinco primeiros entre todos os competidores. A última etapa de preparação para os Jogos do Rio foi na altitude da Colômbia. Ele quer o ouro, mas o mais importante é fazer o que ama: correr.

– Para mim, o esporte é a realização de um sonho. Sempre pensei em trabalhar em algo que me deixasse feliz, e trabalho com o que me deixa feliz.

 

FOTO: Mateus Bruxel

Alex Celente,

do goalball

Medalha de prata em Londres 2012, Alexsander Almeida Maciel Celente, 35 anos, está obstinado. O capitão da seleção brasileira de goalball, esporte praticado por deficientes visuais, só pensa no lugar mais alto do pódio nos Jogos do Rio.

– Somos os primeiros no ranking mundial. Agora, quero ser campeão paraolímpico – diz o porto-alegrense.

Alex Celente, como é conhecido no mundo esportivo, passou a maior parte da infância entre as cidades de Camaquã e Guaíba. Devido a um problema congênito, nasceu sem a visão no olho direito. Com o esquerdo, enxergava normalmente até os quatro anos, quando sofreu um acidente. Um dos quatro irmãos dele, de apenas dois anos, o acertou com um pequeno dardo. Foi levado ao hospital, chegou a fazer cirurgias em São Paulo, mas de nada adiantou. Ficou cego.

– De algumas coisas, eu tenho lembrança. Tenho ideia das cores, por exemplo.

Ele agradece à família por não o “prender em casa”.

– Não deixei de ser uma criança ativa. Subia nas árvores, fazia as mesmas artes.

Com seis anos, ingressou no Instituto Santa Luzia, referência em educação para deficientes visuais. Logo, conheceu o goalball. Neste momento, deve-se abrir um parênteses para falar desse esporte, criado após a II Guerra Mundial para trabalhar a reabilitação de soldados que perderam a visão. A partida tem duas equipes com três jogadores (vendados) para cada lado. Todos podem arremessar a bola, que tem um guizo para emitir som, na goleira adversária. O objetivo é marcar o maior número de gols. O esporte foi apresentado na Paraolimpíada de Toronto, em 1976. Depois, começou a se difundir.

Apesar de ter tido contato com o goalball ainda criança, Celente só passou a treinar na adolescência, após ser convidado por Lia Hoffmann, sua professora de educação física no Ensino Médio.

– Ela tinha uma equipe. Treinei, joguei e não parei mais. Sempre me destaquei – enfatiza.

Desde então, foram 13 finais de Brasileiros e cinco títulos nacionais. A primeira equipe foi a Associação de Cegos do Rio Grande do Sul (Acergs). Até 2010, defendeu esse time. De 2011 a 2015, jogou por clubes do Rio, São Paulo e Paraná.

– Sempre morei aqui, mas ia jogar e fazer um período de treinamento fora – explica.

Até 2009, quando passou a receber o Bolsa-Atleta, nunca teve ganhos financeiros com o esporte –  depois de 2012, com a prata em Londres, também recebeu auxílio da Caixa Econômica Federal, repassado pelo Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB). Para se sustentar, trabalhou primeiro como telefonista, de 1997 a 2003. Foi quando passou em um concurso para assistente administrativo do Banco Regional de Desenvolvimento da Região Sul (BRDE), cargo que ocupa até hoje. Graças à Lei Pelé, quando é convocado para a seleção, consegue se ausentar sem que haja desconto no trabalho.

Celente veste a amarelinha há 14 anos. Desde o começo, mostrou liderança e assumiu a braçadeira de capitão. Atualmente, é o mais veterano do time. Na equipe, são seis atletas, três titulares e três reservas. Um central, um ala-direito e um ala-esquerdo. Celente joga nas três posições, mas costuma atuar mais nas alas.

– Todos têm de defender muito bem. E isso a gente faz, pois no Brasil estão os melhores atacantes, o que facilita para a defesa evoluir.

Em Pequim 2008, o gaúcho fez sua estreia em Paraolimpíadas.

– Ficamos em 11º, não tínhamos intercâmbio, não conhecíamos os europeus, por exemplo. Aprendemos muito. De lá para cá, crescemos.

Depois, o Brasil foi ouro no Parapan de Guadalajara, no México, em 2011, prata em Londres 2012, e ouro no Parapan do Rio, em 2015. A seleção ainda conquistou o Mundial de 2014.

Os principais adversários do goalball brasileiro na Paraolimpíada serão Finlândia, Turquia, Lituânia e Estados Unidos.

– Qualquer um pode ganhar – sentencia Celente.

Casado com Fabiana, pai de Benjamin, quatro anos, e também de Cauã, 14, e Iasmim, 10, do primeiro casamento, Celente classifica como uma vitória e um orgulho representar o Brasil nos Jogos do Rio. Fala que será “muito mais gostoso” por estar em casa, com a torcida ao lado e a família acompanhando. Uma possível pressão, pretende deixar de lado, pois o capitão não pensa em outra coisa:

– A gente quer o ouro.

FOTO: Daniel Zappe, MPIX, CPB

Roberto, nadador

Aos oito meses, Roberto Alcalde Rodriguez foi apresentado a uma piscina. A natação entrou na sua rotina. No começo, claro, só por diversão. De uns tempos para cá, é profissão. Nascido em Bagé, o gaúcho de 24 anos tem chances de pódio nos 100m peito nos Jogos Paraolímpicos do Rio.

Roberto nasceu com mielomeningocele, uma má formação congênita da coluna. Até os oito anos, conseguia caminhar. Depois, a pouca mobilidade na perna direita não foi suficiente para que ele se locomovesse sem o auxílio da cadeira de rodas. Durante boa parte da infância, deslocou-se da Fronteira a Porto Alegre para passar pelos mais variados procedimentos médicos.

– Não achava tão ruim hospital, estava acostumado, o problema é que sempre perdia as férias por causa das cirurgias – recorda.

Mesmo com limitações, Roberto, incentivado pela família, procurou ver o lado bom da vida:

– Percebia que era diferente, mas não encarava como uma coisa ruim, não ficava me vitimizando. E quando fui para a cadeira de rodas, passei a encarar como se fosse a única criança que tinha um carrinho. Tirava o melhor proveito que podia.

Ativo, “voava baixo” com a cadeira. Caía, batia nas coisas, mas não se intimidava. Também gostava de esporte. Aos 12 anos, ao ver na TV os Jogos de Atenas 2004, descobriu que existia a Paraolimpíada. Em busca de mais oportunidades para o filho, em 2006 a família se mudou para Florianópolis:

– Bagé é muito distante de tudo (risos).

Na capital catarinense, começou a nadar em uma academia da cidade. Primeiro, treinava com alunos de uma equipe master. O professor, outro gaúcho, chamado Fladimir, passou a orientá-lo.

A primeira competição, aos 15 anos, foi uma travessia em uma lagoa. Venceu entre os paraolímpicos e percebeu que estava no caminho certo. No ano seguinte, foi convocado para integrar a seleção brasileira de jovens que disputaria um torneio nos EUA.

– Fui me dedicando ainda mais. Em 2012, fiquei perto de ir para Londres. Consegui índice, mas fui desclassificado. Ao invés de chutar o balde, só pensei em como poderia melhorar.

No ano seguinte, Roberto foi campeão mundial nos 100m peito. Os bons resultados renderam contrato com o tradicional Vasco da Gama, do Rio, patrocínios e uma bolsa do governo. Atualmente, vive só do esporte e mora em São Paulo, para ficar perto do centro paraolímpico, onde treina a seleção de natação. Os pais ficaram em Florianópolis, e os parentes, em Bagé e Porto Alegre. O gaúcho competirá na categoria SB5, para nadadores sem mobilidade nas pernas.

– Participar da Paraolimpíada já é muito bom, mas a expectativa é por medalha. Tenho o quarto melhor tempo do mundo nos 100m peito, estou na briga – afirma.

FOTO: Mateus Bruxel

Geraldo, atirador

Com um pai que gostava de caça, Geraldo Von Rosenthal sempre foi um apaixonado por atirar. Ainda guri, na cidade de Campo Bom, no Vale do Sinos, fazia tiro ao alvo com armas de pressão. Com 16 anos, começou a treinar tiro prático com pistolas .45. O encantamento era tanto que, aos 18 anos, foi emancipado pelos pais e tirou porte de arma pela primeira vez. Agora, aos 41, será um dos representantes do Brasil nos Jogos Paraolímpicos.

–  Me realizo atirando – resume.

Geraldo nasceu com síndrome de Poland. Ele não tem musculatura peitoral no lado direito, o que prejudica a mão, que tem microdactilia (dedos menores que o normal) e sindoctilia (dedos unidos).

– Sempre foi normal para mim, porque não foi uma coisa que perdi (a funcionalidade). Foi natural.

Na infância, diz ter sido colocado um pouco de lado. Não pertencia a grandes turmas. Mesmo assim, fez de tudo, brincou, jogou futebol. Depois que começou a atirar, resolveu participar de competições, mas não conseguia bons resultados pela limitação na mão. No momento de colocar a munição rapidamente, deixava os carregadores caírem e não conseguia trocar.

Com 23 anos, resolveu deixar em segundo plano a paixão pelos alvos. O contato com as armas se resumia a visitas esporádicas a algum clube de tiro. Começou a cursar Engenharia Mecânica (não concluiu), teve revenda de carros, vendeu calçados no Ceará, administrou uma oficina mecânica e trabalhou com montagem de computadores. O último emprego foi em uma multinacional, onde atuava no setor de infraestrutura, fazendo tarefas como organizar o estoque.

Em 2007, com espingarda de chumbinho, voltou a atirar. Pesquisando armas na internet, encontrou a pistola de ar olímpica e fez o contato que mudou a sua vida. No outro lado do computador, estava Carlos Garletti, atirador que vai para a terceira Paraolimpíada.

– Ele pediu meu telefone e me ligou, disse que eu poderia ser paraolímpico. Eu não tinha a menor noção de que era diferente. Sabia que existia (a Paraolimpíada), mas nunca imaginei que me qualificasse para isso – conta.

No ano seguinte, Geraldo estabeleceu dois recordes brasileiros. Em 2009, uma edicondilite (degeneração dos tendões que se originam no cotovelo) o deixou um ano e meio longe da pistola. Em 2011, voltou, mostrou resultados e foi convocado para a primeira competição internacional, na Espanha. Dois anos depois, conquistou o ouro na Copa do Mundo, disputada na Tailândia, o primeiro título mundial de um brasileiro no tiro.

A vitória foi motivo de orgulho para a família. Em Campo Bom, a casa dos pais se encheu de vizinhos, que foram dar os parabéns pelo filho campeão. Desde 2014, mergulhou de cabeça no ciclo paraolímpico. A presença nos Jogos do Rio foi garantida no ano passado, em Sydney, na Austrália.

– Chorei muito quando consegui a vaga. Foi muito tempo dedicado, tempo que deixei de passar com meu pai (Celso, que morreu em 2014) para treinar.

Para fazer bonito no Rio, Geraldo treinou todos os dias pela manhã em um simulador. No mínimo quatro vezes por semana, cerca de quatro horas por dia, exercitava tiro real. Com um psicólogo, fez um trabalho que ele define como treinamento de cérebro, destinado a foco e concentração. Atualmente sem emprego, sustenta-se graças ao Bolsa-Pódio, concedida pelo governo federal, cujo valor prefere não revelar. Mas afirma que gasta mais de R$ 3 mil por mês com psicóloga e outras despesas de treino.

Na Paraolimpíada, está confirmado em três categorias: pistola 10m, pistola 25m e pistola 50m. A de 50m é a preferida, pois, segundo ele, machuca menos a mão, dolorida desde que sofreu um acidente de trabalho. No ranking mundial, está em 12º lugar. Sobre pódio, diz que há possibilidade.

– Há probabilidade? Só Deus sabe. Tem muita variável no tiro. Um tiro ruim pode te derrubar muitas posições. Estou com foco no treinamento, na prática. A única coisa que prometo é dedicação.

Participar do movimento paraolímpico, salienta Geraldo, é um exercício de humildade, um grande aprendizado.

– O que me revolta é que a sociedade segrega o deficiente, não se importa com o deficiente – desabafa.