Publicado em 18 de março de 2016

Zero Hora retorna à rota do maior desastre ambiental do país, quatro meses após os rejeitos despejados pela barragem de Fundão, em Minas Gerais, completarem seu caminho até o mar, no Espírito Santo.

A lama ainda dá o tom às cidades e às águas — e prolonga o sofrimento de famílias que perderam parentes, as casas ou o antigo sustento. Na natureza, a vida exibe os primeiros sinais de recuperação.

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Marcelo Gonzatto

marcelo.gonzatto@zerohora.com.br

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Tadeu Vilani

tadeu.vilani@zerohora.com.br

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Rodrigo Muzell

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Diogo Perin

Da barragem ao mar: o desastre atinge dois Estados ao longo do Rio Doce

 

No meio da tarde, uma onda se ergueu a mais de 600 quilômetros do mar. Nas horas seguintes, a torrente barrenta estourou sobre localidades idílicas de Mariana, em Minas Gerais, matou 19 pessoas e deu início ao pior desastre ambiental do país.

Nesta segunda-feira, completam-se quatro meses do momento em que o fluxo de rejeito de minério e lama despejado da barragem do Fundão serpenteou pelo Rio Doce e chegou ao Oceano Atlântico. Desde então, a região ainda convive com toneladas de sujeira nos rios, famílias traumatizadas pela tragédia, saques a residências abandonadas e lugarejos à míngua pelo fim da pesca e do turismo. Apesar disso, os primeiros sinais de retorno da vida ao rastro do lodo trazem lampejos de esperança.

Depois de percorrer toda a extensão da lama liberada poucos dias após o rompimento da barragem da mineradora Samarco, em novembro do ano passado, Zero Hora refez o percurso para registrar os desdobramentos do dilúvio lamacento. A primeira coisa que se vê ao tentar chegar ao ponto de maior impacto, na localidade de Bento Rodrigues, é um portão recém-instalado na única estrada de acesso ao local, guarnecido por seguranças. Duas placas alertam os eventuais visitantes: “Perigo. Entrada proibida” e “Ao ouvir a sirene, evacue a área”.

O portão foi colocado há pouco mais de um mês, segundo a Defesa Civil de Mariana, para evitar os constantes furtos às casas que escaparam da destruição na localidade. No começo do ano, ladrões chegaram a estacionar caminhões nas ruas ainda sujas e enchê-los com telhas, janelas, portas e até uma piscina, bens que resistiram à devastação da vila. O que foi poupado pela onda suja não escapou à rapinagem.

Como persiste o risco de novos vazamentos nas barragens, o acesso à área só é liberado mediante o acompanhamento de representantes da Defesa Civil do município. Na manhã do dia 3 de março, é realizada a última visita ao local antes da interrupção das incursões por Bento Rodrigues por tempo indeterminado devido à falta de pessoal para monitorar as viagens à vila, distante cerca de 35 quilômetros do centro da cidade. Além de jornalistas e estudantes universitários, o grupo de visitantes inclui um casal de ex-moradores que decidiu percorrer os destroços uma última vez como um adeus definitivo à vida de outrora.

– Já viemos aqui umas sete vezes desde que tudo acabou. Mas essa é a última. Não gosto mais de vir aqui porque dá uma sensação ruim. Além disso, tenho medo do mosquito da dengue – explica Osvaldo de Almeida, 72 anos, acompanhado da mulher, Geralda de Almeida, 57.

O casal volta à antiga residência para tentar recuperar algum pertence que o olhar saudoso dos dois tenha ignorado nas visitas anteriores. Geralda percebe que um conjunto de louças desapareceu e cogita que tenha sido alvo dos saqueadores. Em compensação, dentro de uma Bíblia suja de barro, encontra uma velha foto sua ao lado do marido.

No papel fotográfico, ele aparece segurando um violão com que toca exclusivamente músicas evangélicas, instrumento que conseguiu resgatar intacto da avalanche de rejeitos 19 dias depois da barragem vazar.

Nos terrenos mais baixos, onde a destruição foi ainda maior, a localidade de Bento Rodrigues permanece congelada no tempo, imobilizada pela lama como uma espécie de pequena Pompeia tupiniquim escondida entre montes verdejantes. Onde funcionava um bar e hoje restam pedaços de paredes, no chão despontam pacotes de cigarro e uma garrafa de cerveja ainda fechada. Mais adiante, roupas, louças, um computador quebrado, uma geladeira amassada.

Tudo preso ao lodo nos mesmos lugares onde estava em 5 de novembro, quando o caudal de sujeira rugiu morro abaixo.

O único movimento constante é o de funcionários a serviço da Samarco. Montam uma barreira de contenção na área para prevenir que mais lama siga em direção à foz do Rio Doce. Por razões de segurança, ninguém jamais voltará a morar no antigo distrito de Bento Rodrigues. As cerca de 200 famílias atingidas pelo desastre vivem hoje em casas e apartamentos alugados pela mineradora, e aguardam a confirmação de compra de uma nova área para onde serão deslocadas em definitivo. Terrenos já foram pré-selecionados, mas ainda não há certeza sobre quando a transferência ocorrerá.

Enquanto isso, dos inquéritos abertos para apurar as responsabilidades pela tragédia, a Polícia Civil de Minas Gerais já indiciou e pediu a prisão preventiva de seis pessoas ligadas à Samarco e de um engenheiro de uma consultoria por homicídio com dolo eventual (em que assume o risco de matar), inundação e corrupção ou poluição de água potável. Um segundo procedimento da polícia ainda investiga os crimes ambientais e o processo de licenciamento da barragem do Fundão. O Ministério Público e a Polícia Federal também têm inquéritos em andamento.

Nas poucas paredes em pé em Bento Rodrigues, manifestantes anônimos se anteciparam às decisões judiciais e condenaram, em pichações, a empresa responsável pelos danos. Em uma delas, se lê: “Samarco queria nos matar, mas Jesus nos salvou”. Nem todos, na verdade, foram salvos: dos 18 mortos já localizados (o corpo de um trabalhador seguia desaparecido até o dia 17 de março), cinco eram moradores da localidade. A sensação de que vidas foram poupadas vem da hipótese de que, se o desastre houvesse ocorrido no meio da noite, poucos teriam escapado.

– Se a gente estivesse dormindo, não iria se salvar ninguém – garante Osvaldo.

Outra parede resistiu como testemunho da religiosidade da vizinhança desalojada pelo infortúnio. Em uma casa na qual telhado, móveis e eletrodomésticos foram varridos para longe, sobrou um quadro da Santa Ceia preso ao reboco. Mas é uma segunda pichação, aplicada na estrutura da antiga escola, que resume o principal sentimento de quem vivia naquele pedaço de chão engolido pela correnteza de lama, galhos e restos de mineração: “Bento Rodrigues, saudades”.

Osvaldo e Geralda ainda voltam em busca de lembranças

A vida depois do lodo

Nem todas as localidades atingidas em cheio pelo rejeito da barragem estão desabitadas. No distrito de Paracatu de Baixo, o segundo mais afetado no município de Mariana, meia dúzia de moradores insistem em viver no vilarejo coberto de lama. Em um primeiro momento, alguns se recusavam a sair para não abandonar animais ou pelo temor de saques. Hoje, há quem tenha voltado a morar na área pela dificuldade em se adaptar à vida urbana em algum dos apartamentos ou casas alugados temporariamente pela Samarco para abrigá-los.

– Fiquei pouco mais de um mês vivendo em Mariana, mas a gente que é acostumado com a roça estranha a cidade. Aqui, posso mexer com a horta, cuidar de galinha, cachorro, gato, porco. O que eu vou fazer por lá? – questiona João Elói da Silva, 63.

Ele mora há 45 anos em Paracatu, quase todo esse tempo na mesma casa para a qual retornou após trabalhos emergenciais terem removido o excesso de barro das ruas e restabelecido o fornecimento de energia elétrica ao seu terreno. A mulher e quatro filhos continuam no centro da cidade e o visitam nos finais de semana.

Como sua casa se localiza em uma parte mais elevada da vila, sofreu apenas rachaduras em razão do impacto da lama. Quando chove, a água escorre para o interior da residência. Nas ruas próximas, o cenário se mantém bem mais desolador: moradias destruídas, camadas de até dois metros de barro, telhados inteiros lançados para longe das paredes que o sustentavam. Silva garante não se importar de viver em uma espécie de cidade-fantasma:

– Me acostumei a ficar sozinho aqui.

Por não haver comércio nas proximidades, precisa estocar alimentos. O maior incômodo, assim como em Bento Rodrigues, são os constantes furtos – embora já não exista muito mais o que levar entre as pilhas de material de construção, restos de eletrodomésticos e peças de roupa rasgadas e sujas. Alguns dias antes, segundo o morador, ladrões haviam surrupiado a bateria de uma escavadeira que fazia serviços de limpeza na área.

– Da minha casa, felizmente, ainda não tiraram nada – conforma-se.

Na zona urbana de Mariana, embora a situação dos desalojados desperte comiseração, faixas penduradas em postes e junto a ruas e avenidas refletem um outro sentimento: o temor de que a interrupção na mineração inviabilize a Samarco e comprometa ainda mais a economia local – dependente das riquezas extraídas do solo. Um dos cartazes traz a frase “Se a Samarco fechar, Mariana vai parar”. Outro faz uma projeção sombria: “Samarco fechada, risco de demissão de 5 mil trabalhadores". O receio é sustentado pelo porte incomum da mineradora, que responde por nada menos do que 54% da arrecadação do município, e tem uma receita anual equivalente a 1,5% do PIB de Minas Gerais ou 6,4% de toda a riqueza gerada no Espírito Santo.

No dia 2 de março, a Samarco assinou um acordo com o governo federal que prevê a criação de um fundo para aplicar de cerca de R$ 20 bilhões ao longo de 15 anos. Esse valor inclui R$ 4,4 bilhões a serem investidos nos próximos três anos. O Ministério Público Federal criticou o acerto por considerá-lo genérico demais e não prever a participação das populações atingidas no monitoramento das ações a serem realizadas.

A prefeitura de Mariana convocou para o sábado passado uma manifestação em apoio ao retorno das atividades nas minas – o que poderá ocorrer no segundo semestre. A mobilização com chancela oficial contaria como dia letivo nas escolas municipais, mas a medida foi abortada após a repercussão negativa da proposta. Integrantes do movimento Um Minuto de Sirene, que organiza protestos fazendo soar apitos e buzinas periodicamente para recordar a tragédia

e cobrar punições, criticaram a iniciativa do município como uma tentativa de “coação” da população. No intuito de reparar parte dos estragos e do dano causado à própria imagem, a mineradora reconstruiu pontes arrastadas pela cheia, reparou estradas de chão e promove o plantio de mudas de capim em áreas cobertas por rejeitos, a fim de evitar que os sedimentos continuem escorrendo para os rios da região. Mesmo assim, o Rio Gualaxo, um dos cursos d’água pelos quais os rejeitos escoaram em direção ao mar, continua imundo.

A 60 quilômetros dali, o município de Barra Longa também se vê obrigado a coexistir com o lodo que, após arrasar Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, viajou pelo Gualaxo e encheu o Rio do Carmo a ponto de inundar parte da cidade ribeirinha. As casas localizadas à margem do curso d’água foram tomadas pelos rejeitos e, no momento, estão em reforma custeada pela Samarco. Como os estragos foram extensos, a zona urbana se assemelha a um grande canteiro de obras.

Trabalhadores reparam assoalhos e paredes, recuperam estruturas de sobrados, mas ainda não conseguiram remover toda a lama que cobre as vias mais próximas ao leito. Boa parte das ruas principais do município, mesmo localizadas em zona mais elevada, também segue suja. Os reparos deverão se estender pelos próximos meses. O comerciante Marco Antônio Ferreira Xavier, 74 anos, por exemplo, ainda aguarda o início da reforma em sua danceteria. Enquanto isso, sobrevive com o auxílio de um salário mínimo e de uma cesta básica pagos pela Samarco a pessoas afetadas pelo vazamento.

– É uma ajuda mínima, mas a gente vai vivendo – diz Xavier.

NÚMEROS DA TRAGÉDIA

A tragédia de Mariana deixou 18 mortos já identificados e um desaparecido.

Mais de 6,9 mil animais domésticos foram resgatados da rota da lama desde o rompimento da barragem.

Mais de 59 milhões de litros de água mineral foram distribuídos para compensar a poluição de mananciais como o Rio Doce.

368 famílias foram desalojadas em razão do lodo e estão vivendo em casas alugadas.

Ao longo do Rio Doce, moradores de 37 municípios foram afetados de alguma maneira pelo desastre.

Sete pontes foram arrastadas pela onda de lama e tiveram de ser reconstruídas.

Famílias entre o luto e a sobrevivência

Passaram-se mais de quatro meses desde que a barragem em Mariana se rompeu, mas a técnica de segurança desempregada Ana Paula Alexandre, 40 anos, permanece presa a um momento fugaz do dia 5 de novembro de 2015. Naquele instante, pouco antes das 15h30min – horário aproximado do desastre –, ela trocava mensagens de WhatsApp com o marido. Às 14h48min, o operador de escavadeira Edinaldo Oliveira de Assis, 40 anos, reenviou para ela o texto de uma corrente virtual: “Jesus eu preciso de ti dentro do meu coração. Agora envie p/ 3 grupos. Não ignore, pois terá uma surpresa hoje”.

A surpresa não tardou. Edinaldo, funcionário da Integral Engenharia, que prestava serviço para a mineradora na região da barragem, foi arrastado pelo barro. Quando soube que havia algo errado no local de trabalho do marido, Ana Paula logo temeu pelo pior. As ligações para o celular dele caíam na caixa de mensagem, e ela sabia que, se Edinaldo estivesse bem, teria encontrado um meio de entrar em contato. Só receberia notícias dele 22 dias mais tarde, quando o corpo foi identificado.

Hoje, Ana Paula enfrenta a depressão e faz uma queixa comum a outros familiares de quem morreu trabalhando: considera-se abandonada pela Samarco, pelos meios de comunicação, por todos.

– Os moradores de Bento Rodrigues recebem toda a atenção. Ganham um salário mensal, estão morando em casas alugadas, todos falam deles o tempo inteiro. E nós, os familiares de quem morreu porque estava trabalhando? Fazem campanha pelo rio, pelos peixes, mas ninguém se lembra de nós – reclama Ana Paula, entre lágrimas.

Ela diz passar por dificuldades. Até o momento, a moradora de Ouro Preto recebeu uma parte do seguro de vida do marido, no valor de R$ 50 mil, insuficiente para pagar dívidas pendentes, terminar a reforma da casa que estava em andamento e custear gastos cotidianos por muito tempo. Outros R$ 100 mil a título de indenização antecipada estão em discussão na Justiça porque não houve acordo com uma ex-mulher de seu companheiro a quem caberia uma parte do benefício.

Ana Paula, que não teve filhos com Edinaldo, também lamenta viver sozinha:

– Com o tempo, fica pior. Não tenho vontade de fazer mais nada. Já não como e não durmo direito. Só a gente sabe como é não ter ninguém pra dar bom-dia.

Segundo Ana Paula, as empresas designaram uma psicóloga para falar com ela uma única vez, logo depois da tragédia. Em outra oportunidade, foi procurada por uma assistente social. Garante não ter recebido nenhum outro tipo de auxílio psicológico ou social.

A dona de casa Alinne Ferreira Ribeiro, 33 anos, moradora de Ribeirão das Neves, na região de Belo Horizonte, faz as mesmas queixas. Viúva do funcionário terceirizado Samuel Vieira Albino, conta que o marido com quem vivia havia seis anos tentou escapar da lama em uma caminhonete. Acabou alcançado por duas ondas de rejeitos. A primeira elevou o veículo e o fez rodopiar, a segunda o cobriu.

– Ninguém liga, ninguém procura, não recebi nenhum tipo de ajuda – critica Alinne.

Pescador e morador de uma ilha no Rio Doce, Geraldo da Cruz perdeu tudo com a lama e agora vive com um irmão

O desalento é ainda maior entre os quatro filhos de Samuel e Alinne. Cecília, de três anos, não parava de perguntar pelo pai nos dias seguintes ao desastre. A mãe explicou que ele havia sido levado para “morar no céu”. Desde então, a menina já chegou a chamar pelo pai da janela. Pediu para ir visitá-lo e confessou estar braba com “papai do céu” por ter levado Samuel para viver com ele, em vez de deixá-lo com a família. Leonardo, 10 anos, foi encontrado chorando escondido embaixo da cama. Nenhum deles, segundo Alinne, recebe algum tipo de tratamento especializado.

– O Samuel voltava para casa lá de Mariana toda sexta-feira e buzinava para eu abrir o portão. Só quando a gente se dá conta de que essas coisas não vão mais acontecer é que entende realmente o que houve – afirma.

A angústia da família de Ailton Martins dos Santos, 55 anos, contou com um agravante. Seu corpo foi um dos últimos a ser localizado e identificado.

O motorista estava eufórico porque havia conseguido um emprego após dois anos em busca de trabalho. A alegria durou um mês. O funcionário da terceirizada Integral Engenharia estava dentro de um caminhão-pipa, logo abaixo da barragem, quando ela rompeu e lançou os rejeitos em cheio sobre ele.

ZH conversou com Emerson Aparecido dos Santos, 30 anos, filho de Ailton, em 4 de março, quando faltava um dia para o sumiço do pai completar quatro meses.

– O difícil de não ter um corpo para enterrar é a sensação de que ele saiu para viajar e um dia vai voltar – disse Emerson, que também se queixou de que a família só foi auxiliada por psicólogos nos primeiros dias.

Ailton foi encontrado durante escavações e identificado pelo filho seis dias mais tarde. Agora, Emerson espera que o fato de terem conseguido organizar um funeral apropriado ajude a amenizar o sofrimento.

– De certa forma, nos trouxe algum alívio – contou Emerson, por telefone, na última terça-feira.

O desafio de quem perdeu o trabalho

Além de provocar danos psicológicos, a tragédia custou a casa ou o trabalho de milhares de pessoas que ainda buscam novos rumos. A mineradora informa que distribuiu 3,5 mil cartões de auxílio financeiro para famílias afetadas pelos rejeitos – ao longo de seis meses, elas recebem um salário mínimo mensal e uma cesta básica, com acréscimos nos casos de filhos menores de idade. Ainda assim, parte dos atingidos não se sente compensada pela perda do antigo modo de vida.

No município de Rio Doce, o agricultor Geraldo da Cruz, 60 anos, foi expulso pelo lodo da ilha onde morava e plantava abacaxis e outros produtos. Quando percorreu a rota da lama pela primeira vez, em novembro, ZH encontrou Cruz vivendo em uma peça de seis metros quadrados no andar superior da casa de um irmão. Agora, o agricultor se encontrava na casa de uma tia, sem energia elétrica, no interior do município. Não conseguiu voltar para sua moradia no rio porque a falta de água limpa e o comportamento irregular do rio impedem que retome a vida de antigamente.

Segundo o ex-ilhéu, desde que a lama alterou a configuração do rio e se depositou em seu leito, o curso de água apresenta oscilações bruscas de nível. O medo de ser surpreendido por uma cheia lhe mantém afastado de casa. Para piorar, lamenta não ter sido incluído na lista de beneficiários do cartão de auxílio financeiro.

– Teve um pessoal da Samarco aqui, mas apenas me pediram para assinar um documento que eu não entendi muito bem o que era – conta Cruz.

O papel, do qual ele guardou uma cópia, é uma autorização para uso de imagem.

– Só espero que me deem um cartão – desabafa o agricultor.

Em cidades como Governador Valadares e Tumiritinga, em Minas Gerais, a poluição do
Rio Doce ainda afasta pescadores do trabalho. Além da quantidade de pescado ter sido reduzida pela mortandade generalizada verificada em novembro, ninguém mais quer comprar peixes trazidos das águas de cor alaranjada.

– Temos peixes que pescamos ainda antes do acidente, conservados no freezer, mas ninguém compra. Todo mundo tem medo de que esteja contaminado – afirma o pescador de Governador Valadares Rodolfo Zulske, 59 anos.

Em Tumiritinga, a solução encontrada pelo casal de pescadores Délio Pereira da Silva, 54 anos, e Genilda Vieira, 47, foi mudar de profissão. Após uma vida inteira vivendo das dádivas do Rio Doce, decidiram abrir um pequeno mercado no povoado de São Tomé. O problema é que as poucas dezenas de casas na localidade não garantem grande movimento ao mercadinho.

– Estamos recebemos o salário e a cesta básica da Samarco. Abrimos o comércio para tentar aumentar a renda, porque a gente conseguia muito mais com a pesca, e para ter o que fazer – afirma Délio.

Seguindo o curso do Rio Doce, mas já no Espírito Santo, o comerciante José Antônio dos Santos, 57 anos, pensa em um caminho oposto ao de Délio. Santos cogita vender seu bar em Povoação, localidade do município de Linhares. Quer ir embora, mas não sabe para onde. Ele já havia mudado de endereço há cerca de dois anos em razão de uma tragédia – somente para ser surpreendido por outra.

Santos vivia em Porto Seguro, na Bahia, quando um filho de 26 anos foi assassinado durante um roubo de carro. A família resolveu começar vida nova no Espírito Santo. Comprou o bar localizado junto à foz do Rio Doce, ampliou o estabelecimento e, em novembro, viu a lama chegar e arruinar o negócio.

– Já estou pensando em vender e ir embora para outro lugar de novo. Só não volto para Porto Seguro – diz Santos.

A luta pela vida no rio e no mar

Dado como morto logo depois de receber a torrente caudalosa de barro e detritos, o Rio Doce dá mostras de que ainda respira. Com dificuldades, mas respira. O aspecto permanece o de um gigantesco moribundo: desde o município homônimo, em Minas Gerais, até sua foz na região de Linhares, no Espírito Santo, a água conserva o tom alaranjado que assumiu após o reservatório da Samarco despejar sua imundície sobre um dos mais importantes mananciais do país.

O barro que extravasou das calhas dos rios que canalizaram a enxurrada de lama ainda se acumula nas margens do Gualaxo, do Carmo e do Doce até a represa da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, entre os municípios de Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado. Após passar pela represa, que agiu como uma espécie de bacia de amortecimento, o lodo não vazou para fora das margens – o que ajudou a amenizar o impacto sobre as áreas ribeirinhas. Assim, conforme o professor da Universidade Federal de Minas Gerais Fábio Vieira, especializado no estudo dos peixes do Rio Doce, os piores estragos estão concentrados nos primeiros 115 quilômetros dos cursos de água atingidos pela maré suja. Segundo Vieira, diferentemente do que muitos imaginavam logo após o desastre, análises demonstram que a vida aquática resiste à agressão provocada pelo homem em todo o trecho entre Mariana e Linhares.

– Fizemos uma varredura com o uso de sonar e constatamos que ainda há peixes ao longo de toda a área. Não foi possível identificar a quantidade ou as espécies, mas eles estão lá. O rio não está morto – garante Vieira.

Novas sondagens deverão ser feitas a partir desta semana, e repetidas periodicamente. O representante dos pescadores de Governador Valadares, Rodolfo Zulske, sustenta que boa parte dos peixes que sobrevivem à contaminação do rio é de espécies conhecidas por sua resistência, como o exótico bagre africano. Em sua passagem por Tumiritinga (MG), ZH flagrou pequenos camarões de água doce.

É difícil afirmar, até o momento, qual o impacto sobre as mais de 70 espécies nativas de peixes encontradas na área, das quais cerca de uma dezena já se encontrava ameaçada de extinção antes do tsunami barrento varrer a região. Outra hipótese é a de que muitos peixes venham dos afluentes. Por isso, não há razões para comemorar.

Para Fábio Vieira, a vantagem de a lama mais pesada ter se concentrado na parte superior do rio é que, se houver um trabalho eficaz de recuperação do ambiente nessa área, o restante do Rio Doce poderia melhorar de condição mais rapidamente – embora não arrisque prazos para isso ocorrer.

– Mas o assoreamento nas partes mais altas deverá se manter e se incorporar ao sistema – acredita o especialista.

Por enquanto, mesmo em cidades localizadas depois da represa, como Governador Valadares, moradores não se sentem seguros para comer peixes oriundos do Rio Doce ou beber a água captada e tratada sob garantia de potabilidade por parte do município. Desconfiam da presença de metais tóxicos – negada pelas autoridades – e reclamam da presença excessiva de cloro. Por essa razão, como já foi interrompida a distribuição gratuita de água mineral realizada nas semanas seguintes à chegada do lodo, há quem prefira coletar água até de uma valeta no meio da rua para beber.

Na Avenida Reni Pereira, no bairro Altinópolis, chegam a se formar filas no começo da manhã e no final da tarde para encher galões com o filete de água de um antigo córrego canalizado que é lançado no valão localizado no canteiro central.

– Desde que a lama chegou, pego essa água daqui para beber e cozinhar – conta o pedreiro Joaquim Adriano, 54 anos.

Como o cano fica a quase dois metros abaixo do nível da rua, no interior da valeta, os moradores utilizam um gancho de metal e baldes para coletar o líquido e puxá-lo para cima. A prefeitura de Valadares afirma que a água fornecida pelas torneiras é segura para consumo e passa por análises periódicas. Mesmo assim, parcela significativa da população segue utilizando a rede convencional de abastecimento apenas para tomar banho e lavar louças e roupas.

– Eu não gosto nem de tomar banho com essa água. Me dá coceira – diz Adriano.

Comunidades definham na foz

Os danos impostos à natureza ao longo do Rio Doce não asfixiaram apenas boa parte da vida aquática. Moradores de dois povoados localizados no encontro do manancial com o mar, em Linhares, no Espírito Santo, sofrem com a proibição da pesca na região e com o sumiço dos turistas que movimentavam pousadas, restaurantes e o comércio das localidades de Regência e de Povoação – a primeira delas ao sul da foz, e a segunda, ao norte.

Povoação vivia basicamente da pesca e do turismo de pescadores amadores vindos de cidades próximas. Hoje, ainda que parte da população receba o auxílio mensal da Samarco, a sensação geral é de desespero. Moradores como Adenilson Alves Barcelos, 24 anos, começam a debandar para outros lugares.

– Estou indo embora para Linhares morar de aluguel. Lá, pelo menos, consegui um emprego. Aqui em Povoação não tem mais nada que eu possa fazer – conta Adenilson.

Em Regência, no outro lado do rio, as ondas vinham atraindo crescente atenção de surfistas do mundo inteiro. Por isso, nos últimos anos o número de pousadas e restaurantes se multiplicara. Agora, a maioria fechou as portas. Dois ou três se sustentam graças à presença de funcionários que prestam serviço para a Samarco realizando ações de mitigação dos danos, como manutenção das boias de contenção que permanecem no ponto de encontro das águas doce e salgada. O principal objetivo é tentar reduzir a contaminação das margens.

Ninguém mais tem coragem de surfar nas ondas alaranjadas de Regência. Por isso, o morador Márcio Fanttini Polese, 30 anos, deixou o trabalho na pousada de propriedade da família e assumiu um emprego nada agradável: como tem formação de biólogo, todos os dias percorre a faixa de areia próxima à foz do Rio Doce procurando peixes mortos para contá-los, medi-los e catalogá-los.
A quantidade de animais mortos vem diminuído bastante, mas, no mês passado, ainda retirou cerca
de 300 quilos de pescado da areia.

– Dá uma tristeza muito grande ver a situação atual em que nos encontramos. Tínhamos um mar azul, clarinho, e a vila era cheia de vida. Agora está praticamente deserta – lamenta Polese.

A água escura do mar de Regência se encarrega, também, de trazer algum alento. No final da tarde de 8 de março, terça-feira, logo depois de Márcio Polese passar pelo braço de praia em que o Rio Doce deságua no Atlântico, em sua marcha sinistra em busca de animais mortos, pelo menos três golfinhos despontaram próximo à beira-mar. Nadaram diante da praia vazia, deslizaram nas ondas em que ninguém mais surfa e sumiram na água que hoje é barrenta, mas que eles ajudam a relembrar: um dia já foi azul.

CONTRAPONTO

O QUE DIZ A SAMARCO

Recuperação dos danos ambientais: a Samarco afirma que está fazendo trabalhos de recuperação da turbidez nas águas do Rio Doce, dragagem da hidrelétrica Risoleta Neves e construção de diques próximo à barragem de Fundão para conter o fluxo de sedimentos. Diz ter capturado 2,5 mil peixes e crustáceos para repovoamento do curso d’água.

 

Falta de ajuda psicológica a familiares de mortos: ZH questionou a Samarco especificamente sobre a situação das viúvas de trabalhadores. A empresa respondeu que, desde 5 de novembro, cerca de 1,2 mil famílias recebem apoio psicossocial. Profissionais visitam as casas para atendimentos individuais, familiares ou em grupo. Quando é identificada necessidade de acompanhamento, o morador é encaminhado a especialistas em saúde mental da prefeitura de Mariana.

Falta de pagamento de benefício a moradores: ZH questionou a mineradora especificamente sobre a situação do agricultor Geraldo da Cruz. A Samarco diz que contratou empresas com experiência em diagnóstico social em acidentes para “caracterizar grupos sociais e dimensionar impactos”. Para entregar os cartões de auxílio financeiro, cruza informações e conta com o apoio de prefeituras para cadastrá-las. Porém, “nem todos se encaixam nos critérios de elegibilidade para receber o dinheiro”.

 

Prejuízo a comunidades dependentes da pesca e do turismo: a empresa promete “reforçar seu processo de diálogo social”. Uma equipe deverá conduzir reuniões periódicas com grupos locais que vão poder expor demandas. Samarco, Vale e BHP Billiton (controladoras da mineradora) assinaram, dia 2 de março, acordo para acelerar a implementação de medidas de recuperação social, ambiental e econômica.

 

Qualidade da água do Rio Doce para consumo: a Samarco afirma que resultados de diferentes órgãos técnicos atestam a potabilidade da água tanto para uso doméstico quanto para consumo.