YOAV

Antibombas no playground

Três segundos. Yoav Lachyani cresceu sabendo que essa é sua margem de tempo para correr até um abrigo quando toca aquele alarme. Tzeva Adom!

(Alerta vermelho!) É o sistema de radares acionado pelas Forças de Defesa de Israel para avisar a população quando algum míssil entra em seu território. Em outras cidades da região, a tecnologia que detecta a aproximação de foguetes disparados desde a Faixa de Gaza confere uma margem de segurança de 15 segundos até a chegada a um refúgio antibombas. Mas, como a casa de Yoav fica no kibutz de Nahal Oz, a comunidade de Israel mais próxima de Gaza, distante menos de um quilômetro da fronteira, não há tempo. São três segundos que podem demarcar o limite entre viver ou morrer.

A rotina de ataques aperfeiçoou a estratégia de proteção israelense. Hoje, cada casa do país é obrigada por lei a ter seu próprio refúgio, um quarto construído com materiais capazes de resistir a um ataque. No lugar onde o menino mora, há abrigos antibombas no playground das crianças – uma lembrança permanente de que a brincadeira pode ser interrompida a qualquer momento. E foi num início de manhã, a caminho da parada onde apanharia o  ônibus para a escola, que Yoav ouviu aquele alarme e não sabia o que fazer. Estava já a cinco minutos de casa, não daria tempo de voltar. Tampouco teria tempo de chegar até o abrigo mais próximo. Nos três segundos decisivos, precisava tomar uma decisão.

– Olhei pra casa da frente da parada e saí correndo, pedindo para entrar – recorda.

O foguete passou longe daquela vez, mas o episódio serviu para alertar os administradores sobre a necessidade de ampliar o número de abrigos.

Hoje, são mais de 30 espalhados pelo kibutz, como são chamadas em Israel as comunidades agrícolas que têm como base um modelo coletivo de vida.

Os refúgios estão posicionados estrategicamente para que, de qualquer ponto da área, seja possível alcançar um canto seguro quando o alarme dispara. Nem sempre adianta. Há dois anos, um menino de quatro anos que morava em Nahal Oz morreu quando sua casa foi atingida por um foguete do Hamas. Daniel Tragerman foi alcançado por estilhaços da explosão antes que os pais conseguissem levá-lo para o quarto blindado.

– Foi muito difícil para mim, porque eu conhecia ele. Foi o dia mais triste da guerra – lembra Yoav, baixando os olhos.

De camiseta branca e bermuda, o menino descansa atirado na poltrona da sala de casa, na tarde de 14 de junho. Está nas últimas duas semanas de aulas antes das férias, já cansado de estudar. Quando descobre que cheguei de Gaza há poucas horas, arregala os olhos. Não costuma conversar com pessoas que estiveram “do lado de lá”. Com a fronteira fechada, raros conseguem autorização para cruzá-la. Curioso, pergunta sobre as pessoas com quem conversei. E fica com inveja quando descobre que Salleh, o menino de Gaza, já está em recesso escolar.

– Não tem o que invejar. Sua vida é bem melhor aqui, acredite – responde a mãe, Yael, que faz a tradução da conversa do hebraico para o inglês.

Do lado de cá, não falta água, comida, nem eletricidade. As árvores cercam o kibutz, os brinquedos das crianças estão espalhados entre as casas, e as famílias circulam livremente numa área sem cercas. Na entrada, o ostensivo aparato de segurança relembra que o território é de conflito. Soldados uniformizados vigiam os acessos com fuzis nos ombros. Cercas sobrepostas de arame farpado contornam os limites, quadriculando a visão do outro lado. Um dos riscos vigiados e temidos é a construção de túneis pelo Hamas que atinjam o território israelense.

O conflito recorrente faz Yoav colecionar uma série de medos, como o de andar pelo kibutz, especialmente à noite. Ou de adormecer e não conseguir ouvir o alerta vermelho – mesmo sabendo que o som é alto suficiente para despertar quem estiver dormindo. Por isso, às vezes opta por passar a noite no quarto do refúgio, sem esperar qualquer aviso. A família mantém três camas permanentemente montadas na peça mais segura da casa, além de colchões de reserva para o caso de os cinco moradores precisarem se refugiar. Em períodos tranquilos, o quarto decorado com quadros e fotos familiares, para afugentar o estigma da guerra, é usado por Yoav e seus dois irmãos para lazer, como jogar videogame.

Yoav nasceu em Tel Aviv, mas se mudou ainda bebê para o kibutz com os pais. Quando decidiu se instalar ali, a família enfrentou questionamentos. Os amigos não entendiam por que estavam dispostos a se tornar vizinhos da Faixa de Gaza, de onde partia a maioria dos atentados contra Israel. A mãe, Yael, que nasceu em Nahal Oz, diz que sentia falta da vida comunitária, principal característica do kibutz.

– Quando está tranquilo, para mim isto é o paraíso, as crianças podem caminhar tranquilamente. E como nasci e me criei aqui, sentia falta. Morei em outras partes do mundo, mas meu coração sempre ficou aqui – explica.

Atualmente, 400 famílias vivem em Nahal Oz, fundado em 1951 por jovens que tinham como objetivos defender a fronteira, desenvolver a agricultura e estimular a vida comunitária. A decisão dos atuais moradores de permanecer também vem carregada de uma carga ideológica.

– Se Israel deixar este assentamento, qual vai ser o próximo de que a gente vai embora? Nós dizemos que somos os mais patriotas de todo o país – diz Yael, que trabalha para uma agência judaica e é porta-voz do kibutz.

Rotina de cerco: Yoav incorporou na rotina a necessidade de correr rápido para alcançar refúgios antibombas espalhados pelo Kibutz

Durante a guerra de 2014, quando as Forças de Defesa de Israel contabilizaram mais de 2 mil foguetes disparados desde Gaza em julho, a família teve de sair de casa. Como era verão, Yael e o marido pegaram os três filhos e foram para o norte passear, como se estivessem em férias. Depois de 10 dias, perceberam que não poderiam continuar. As crianças já estavam sem paciência, não havia como fazer de conta de que não havia uma guerra em curso. Era preciso encontrar algum tipo de rotina em meio ao caos. Voltaram para a região, hospedando-se em um hotel mais distante da fronteira. Só retornaram em setembro, quando o cessar-fogo estava consolidado. Outras 17 famílias decidiram não voltar “nunca mais”.

– Como vivemos em comunidade, é difícil essa parte. Fizemos assembleias para discutir: como podíamos fazer para que este lugar revivesse? – rememora Yael.

Desde então, outras 25 novas famílias chegaram e ocuparam o espaço deixado pelos antigos moradores, apostando no modelo de vida coletivo e na crença de que devem ocupar a terra. Duas vezes por semana, reúnem-se em festas e celebrações no kibutz – apoiando-se uns nos outros para superar a herança de instabilidade da região.

Entre as crianças, o custo emocional aparece no dia a dia. Assim como a maior parte dos colegas, Yoav teve dificuldade de se concentrar nos conteúdos no pós-guerra – e precisou ser acompanhado por uma psicóloga. Em Sderot, cidade vizinha ao kibutz de Nahal Oz, a estimativa é de que pelo menos metade das crianças sofra de estresse pós-traumático, segundo diferentes pesquisas.

– Agora até chamam de “trauma ongoing”, porque o trauma não acaba, e os ataques também não – explica Guil Novick, coordenador de cursos internacionais do Instituto de Liderança Internacional da Histadrut, que capacita jornalistas sobre o conflito na região.

Yoav pensa que um dia tudo pode ser diferente. Quando fala dos sonhos para o futuro, faz uma lista assim:

– Quero a paz. E quero ser jogador de basquete.

E baterista. E jogador de futebol – enumera o menino, que nos gramados é fã de Cristiano Ronaldo e, nas quadras, de Stephen Curry e LeBron James, da liga norte-americana (NBA).

Pergunto como vai dar conta de todas as carreiras simultâneas, ele pensa um pouco e devolve:

– Pode ser então só a paz e uma das carreiras, já está bom.

O  menino teme os extremistas, mas aprendeu a não generalizar. A mãe faz questão de lembrá-lo que uma coisa são os terroristas, outra bem diferente é a população civil. Na sua adolescência, quando vivia tempos de livre circulação na região, Yael lembra que costumava ir à Faixa de Gaza. Adorava a praia, os restaurantes. Tinha amigos e todos conviviam bem, em uma vizinhança saudável.

– É estranho ver que não temos nenhuma conexão com pessoas com as quais antes passávamos tanto tempo. Não sei como reagir a esta situação. O fato é que vivemos tão perto e não temos nenhuma relação. Não me sinto bem com isso. Temos a mesma história, as mesmas experiências, as mesmas raízes. Quando era criança, o palestino não era um inimigo. Ainda hoje, o palestino não é o inimigo. O inimigo é o terrorista – reflete Yael.

O que a mãe costumava explicar para o filho ficou mais fácil para Yoav entender depois que conheceu um grupo de estudantes beduínos muçulmanos, que visitaram o kibutz.

– Entendi que existem diferentes tipos de muçulmanos e de palestinos e que a gente poderia viver em paz com eles, ter um relacionamento. Isso me ajudou a ver que não são todos iguais – conta.

Yoav já morou nos Estados Unidos. Tem liberdade para ir e vir. Mas prefere ficar onde está. Mesmo tendo de correr cada vez que o alarme toca.

– Aqui tenho um monte de amigos, conheço a maioria das pessoas – justifica.

Yael acredita que israelenses e palestinos têm mais em comum do que aquilo que os separa. Mas sabe que em outras partes do país, especialmente entre os judeus ortodoxos, as posições costumam ser mais extremadas.

– Outras pessoas talvez vão dizer que não. Mas eu me sinto mal. Eles estão sofrendo... e nós também. Desejo uma vida melhor para nós... e para eles também – diz Yael, que não é religiosa.

Apesar do discurso solidário, quando questionada sobre o bloqueio à população palestina, Yael adota uma posição mais pragmática. Diz que os palestinos deveriam ter “de provar” que, se o bloqueio acabasse, não haveria novos ataques. Observa que Israel leva semanalmente “muitas mercadorias” para a fronteira de Gaza, mas “ninguém fala sobre isso”. E que o Egito também fechou as fronteiras, portanto “não é uma decisão apenas de Israel”.

– Claro que gostaria que recebessem roupas, comida, tudo o que precisam. Acho que deveriam ser bloqueados? Não. Mas, se não forem bloqueados, o que acontece? Conseguem garantir que não haverá mais ataques? Se eu tiver que escolher entre minhas crianças e as crianças deles... Sinto muito, as minhas crianças sempre vão vir primeiro – sublinha.

A alguns minutos dali, uma unidade do Exército vigia a fronteira com Gaza. Atualmente, a contagem é de que, a cada três semanas, ocorra um incidente com o Hamas. Apenas nos últimos dois meses foram encontrados dois novos túneis escavados a partir de Gaza em direção a Israel. Outros 32 já foram destruídos desde 2014.

– É questão de tempo até encontrarmos todos. Israel não tem interesse em escalada de violência, respondemos de maneira pontual – diz um oficial da unidade de retaguarda, que pede para não ser identificado por não ser porta-voz oficial do Exército.

Ele diz que a liberação de materiais de Israel para Gaza aumentou nos últimos anos, de 400 para 800 caminhões diários, mas que não há controle sobre quem recebe, “porque quem distribui é o Hamas”:

– Parece absurdo que damos ajuda a quem tenta nos destruir, mas mais absurda é a guerra. Se não houvesse guerra, seríamos todos mais felizes.

Enquanto ele fala, bandeiras de Israel tremulam sob o pôr do sol, que pinta de dourado a vegetação esparramada sobre a terra árida. O horizonte inspira serenidade, mas todos na vizinhança permanecem com os ouvidos atentos.

Yoav não sabe se nos próximos 10 anos vai ver a paz, mas torce para que, quando for adulto, com seus filhos, ela chegue um dia.

– Se nós acreditarmos e quisermos, vai acontecer – confia.

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