TOHAR

Devoção e desconfiança na colônia judaica

TTohar Horowitz vive cercada por palestinos, mas nunca falou com um deles. Escuta as histórias sobre ataques terroristas e com elas povoa sua mente. De tudo o que ouve, tira conclusões sobre o povo árabe.

— Você não pode confiar neles — diz, na noite de 18 de junho, a menina loira de olhos castanhos, enquanto come sucrilhos no sofá do apartamento, no segundo andar de um prédio construído com apoio do governo israelense na colônia judaica em Hebron.

Intercala as respostas sobre o cotidiano árido com risadas infantis — que sempre ecoam em dupla, em cumplicidade com a prima Shira, 12 anos, sentada a seu lado e vestida com roupa idêntica: a mesma blusa listrada em tons de rosa e branco, saia e legging.

São quase 23h de sábado quando a família me recebe, na sala ornamentada com uma estante embutida que forra a parede com livros religiosos. O horário foi uma condição para que aceitassem a entrevista. Por causa do Shabat, o dia sagrado de descanso na tradição judaica, entre o anoitecer de sexta-feira e o de sábado não são permitidas atividades de trabalho ou que gerem qualquer forma de energia (por isso os devotos não se autorizam sequer a apertar um botão: se a luz ficou desligada, não podem acendê-la. Mas também aprendem formas de compensar as restrições: famílias normalmente já deixam as luzes acesas e, nos edifícios mais modernos, programam os elevadores para que parem em todos os andares, sem que seja preciso acionar o botão). Nem uma anotação à mão aceitam escrever antes que as estrelas despontem no céu — por isso também preferem não conversar com jornalistas antes do encerramento dos rituais.

Como a comunidade de Tohar é religiosa, dedica o período do Shabat a orações e encontros familiares. Na cidade dividida, muitos vão armados à sinagoga. Horas antes, nas ruas protegidas por soldados, um israelense praticava jogging com um uniforme peculiar: calção, tênis e fuzil pendurado sobre o peito. Na manhã anterior, uma turma de estudantes de uma cidade vizinha desembarcou em uma excursão do colégio para visitar o museu judaico, que fica a poucos metros da casa de Tohar. Chegaram cantando: "A nação judaica está viva, a nação judaica vai ficar para sempre". De quipá na cabeça, um homem que os acompanhava carregava um rifle.

— Quem é ele? — perguntei.

— O professor.

— Por que está armado?

— É para nos proteger — respondeu um dos estudantes, estendendo as mãos para oferecer refrigerante e croissant de chocolate.

O medo de ataques é permanente. Na visão de Tohar e de seus vizinhos, cada árabe é um terrorista em potencial. A menina diz ter visto dois ataques pela janela da sala, atrás do mesmo sofá onde está sentada. Ouviu os gritos e o amontoado de gente e não sabia o que estava acontecendo, depois assistiu a vídeos na internet que mostravam palestinos que teriam tentado apunhalar israelenses. Por causa dessas histórias, acha a vida em Hebron "um pouco assustadora". Mas diz que gosta de morar ali porque "tem coisas santas".

— E tenho muitos amigos, todas as crianças brincam juntas — acrescenta.

Aprendeu a conviver com a tensão. E tem no exército uma referência positiva:

— Gosto muito deles, eles cuidam da gente.

Tohar ainda não sabe o que quer ser quando crescer. Já a prima diz que quer "ser mãe". Não por acaso, um dos primeiros ensinamentos da Torá é procriar — para garantir a continuidade do próprio povo. Tohar também quer ter filhos, mas o futuro ainda parece muito longe, diz que tem "tempo suficiente pra pensar" em uma profissão. Só não imagina que nesse futuro possa caber algum tipo de paz com os palestinos.

Tohar brinca com a prima no apartamento da família na colônia judaica de Hebron

— Acho que não, porque não podemos confiar neles — repete Tohar, quando perguntada se os dois povos podem se reconciliar um dia.

— Eles podem ser bons amigos, e um dia o árabe vem e mata você — completa a prima Shira, emendando mais uma sequência de risos, como se aliviassem o peso da sentença.

A frase faz eco a uma crença difundida de geração a geração, que remonta a um dos episódios traumáticos da história de Hebron, o massacre de 1929. Os mais velhos sempre contam que árabes e israelenses viviam juntos, mas um dia os palestinos se insurgiram contra os judeus e atacaram suas casas, matando 67 israelenses.

— O tio do meu pai foi morto no massacre — salienta a mãe de Tohar, Naomi Horowitz, que trabalha como orientadora educacional em uma escola da cidade.

Quem faz a tradução da entrevista em hebraico para o inglês é a vizinha Tzipi Schlissel, 50 anos, que é amiga da família e também responsável pelo museu judaico. A cada visitante que chega ao local, apresenta em detalhes cada capítulo: "Eles mataram crianças", "eles eram cruéis", "um bebê só sobreviveu porque outros corpos caíram sobre ele, não perceberam que ainda estava vivo". Mãe de 11 filhos, conta que foi batizada com o mesmo nome da avó, que sobreviveu à matança (graças a um "velho árabe" que parou na frente de casa e deteve os assassinos: "Por isso foi atacado e perdeu as próprias pernas") e que seu pai foi morto em um ataque terrorista em 1998. Diz que ela própria "recebeu um milagre" ao sobreviver a um ataque palestino meses atrás, naquela mesma rua. Um judeu apareceu e matou o agressor. Para respaldar sua versão, mostra no computador do museu o vídeo de uma entrevista que concedeu à rede de TV americana CBS News, em outubro passado. Diante do local onde o palestino foi morto, descreveu sua sensação diante das câmeras:

— Sinto que poderia ser o meu sangue aqui. E agradeço a Deus porque foi o do inimigo, não o meu.

Para Tzipi, que expressa em inglês o sentimento dos vizinhos, os judeus seriam as maiores vítimas de Hebron, "confinados a viver em um gueto":

— Hoje, 97% da cidade é fechada para nós. Nós podemos ver pela janela, mas nunca podemos ir lá.

Uma vez por semana, recebem autorização para adentrar no território palestino, percorrendo em grupo lugares que consideram santos. O tour é escoltado por dezenas de soldados israelenses. Naquele sábado, Tohar havia acompanhado os adultos no passeio, que cruzou o mercado árabe.

— Gosto de ir, mas acho nojento porque lá tem carnes penduradas — confessa a menina.

Na rua árabe fechada, rebatizada pelos judeus de Rei David, há cartazes com letras maiúsculas e tarjas vermelhas: "Esta terra foi roubada pelos árabes na sequência do massacre de 67 judeus de Hebron em 1929! Nós exigimos justiça! Devolvam nossa propriedade!". As atuais colônias judaicas na Cisjordânia foram estabelecidas em 1967, quando Israel conquistou a região da Cisjordânia, que na época pertencia à Jordânia, durante a Guerra dos Seis Dias. Como o território seria reservado à criação do Estado da Palestina, a ocupação é considerada ilegal pela ONU. Os colonos discordam dessa interpretação. Argumentam que estão voltando a uma terra que sempre lhes pertenceu, o lugar que Deus destinou ao "povo escolhido".

— Queríamos viver em um lugar com significado — justifica a mãe de Tohar, que se mudou há 26 anos para Hebron.

Por causa dos incentivos governamentais para os assentamentos israelenses, o custo de vida ali é menor, porque vários serviços são subsidiados, como o transporte até Jerusalém. Os colonos judeus pagam 8 shekels pela viagem, enquanto o transporte dos palestinos custa mais de 20 shekels.

Apesar de toda a tensão com os árabes, sentem-se mais próximos de Deus ali. A história do Velho Testamento, que conta a saga do povo que peregrinou 40 anos pelo deserto em busca da Terra Prometida, que "emanaria leite e mel", é para eles uma prova irrefutável de pertencimento.

Em conversas informais, soldados admitem que também sentem a tensão. Se pudessem, prefeririam servir em outro lugar. Mas dizem não ter escolha. Um dos casos que provocaram polêmica recentemente foi o indiciamento de um soldado que executou um palestino já baleado por outro militar, a quem o árabe havia ferido com uma faca. Estava no chão, já imobilizado, quando, 15 minutos depois, foi morto com um tiro na cabeça pelo sargento Elor Azaria. Em meio às criticas, também recebeu apoio. Em abril, um protesto em solidariedade a Azaria tomou as ruas de Tel Aviv, com 2 mil pessoas. Um dos refrões da multidão era: "Terroristas não devem ser neutralizados, devem ser mortos". A polêmica que provoca discussões inflamadas em outras partes do país passa longe de janela de Tohar. É quase meia-noite de sábado, e ela joga cartas com a prima no chão do quarto. Pelo menos ali, as gargalhadas não param. O medo ficou lá fora, e os soldados estão vigilantes.

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