Salleh

Brinquedos

bombardeados

Salleh Kheisi abre os braços e o sorriso, descortinando a janelinha entre os dois dentes da frente. Apanha a sacola plástica que recebe do conterrâneo Saud Aburamadan, 52 anos, na manhã de segunda-feira, 13 de junho, e arregala os olhos castanhos quando vê o que tem dentro. Morador de Gaza, distante um quilômetro da fronteira com Israel, o menino exibe o espanto de quem não costuma ganhar presentes. Até aquele momento, não tinha nenhum brinquedo. Desde que sua casa foi atingida por bombas disparadas por tanques israelenses e caças F-16, há dois anos, sua infância ficou cinza. Seu quarto foi destruído. Tudo virou pó, uma nuvem de destroços e pecinhas retorcidas. No pátio ainda repleto de escombros da guerra, tira da embalagem um ursinho de pelúcia com dois corações cor-de-rosa bordados no peito. Aperta o novo amigo e se surpreende ainda mais quando o ursinho começa a falar:

“I love you!”, “I love you!”, “I love you!”.

O riso escapa tão vigoroso que a cabeça de Salleh cai para trás. A brincadeira inesperada quebra a rotina em mais um dia abafado do Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos, quando todos jejuam entre o nascer e o pôr do sol – a temperatura beira os 30ºC, mas nem água os fiéis podem tomar antes do anoitecer. O ursinho é trazido por um jornalista veterano de Gaza que conheceu Salleh dias atrás e se comoveu com seu relato – e que agora volta a sua casa como tradutor de ZH. O menino comprime o ursinho contra o peito, sem tirar o dedo do botão que dispara a gravação. “I love you”, “I love you”.

A alegria instantânea contagia crianças e adultos ao seu redor, mas dura pouco. Quando começa a falar sobre a vida em Gaza, Salleh baixa o queixo e cristaliza o olhar. As oscilações de humor são conhecidas da família. Com frequência, no meio da noite, desperta chorando com pesadelos.

– Eu vi com meus próprios olhos as crianças mortas. Todo o tempo eu penso nelas e lembro delas – explica depois, apertando os dedos uns contra os outros.

A cena se repete na sua cabeça. Salleh vislumbrou corpos pequenos como o seu empilhados quando fugia do bombardeio que atingiu sua casa. Era julho de 2014. A família fazia a primeira refeição do Ramadã, no início da noite, quando um vizinho apareceu na porta.

– Saiam de casa! Saiam de casa! – suplicou, avisando da aproximação de tanques blindados na fronteira.

– Nunca saímos de casa antes, vamos ficar aqui – hesitou a mãe de Salleh, Feryal Kheisi, 44 anos.

Minutos depois, Feryal percebeu que não tinha escolha. O som da guerra ganhava as ruas, cada vez mais próximo. Os soldados avançavam. A família saiu correndo pelos fundos, carregando os 10 filhos. No caminho, Salleh viu aqueles rostos inertes das crianças com quem nunca mais iria brincar – e que não consegue esquecer. Dos 2,2 mil palestinos mortos na Faixa de Gaza durante a guerra de 2014 com Israel, 550 eram crianças.

– Eu queria ajudar, mas não consegui fazer nada, eu era muito pequeno – ressente-se.

Durante os bombardeios, a família passou a dormir no pátio de uma mesquita, para onde correu toda a vizinhança. Quando regressaram ao lar, um mês depois, o menino e os parentes só encontraram fragmentos da antiga vida. A residência de três andares no mesmo terreno onde moravam seus tios e seus primos tinha vindo abaixo. Na casa de Salleh, as paredes que sobraram ainda estão salpicadas de buracos e rachaduras. Hoje todos dividem o mesmo teto, num total de 20 pessoas amontoadas nas quatro peças que restaram.

O difícil acesso a materiais de construção para reerguer o que foi destruído prolonga a devastação, num cenário em que a privação é regra. Segundo a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA, na sigla em inglês), 142 mil casas em Gaza foram atingidas durante o conflito de 2014 – 9,1 mil delas totalmente destruídas.

A batalha de dois anos atrás é a mais citada porque arrancou as paredes e o teto, mas a ruína da família começou antes. Um dos primeiros baques foi a suspensão do visto de trabalho do pai de Salleh, Amjad, que até 2003 trabalhava no setor de construção civil em Israel. Certo dia, teve a permissão cancelada pelo país vizinho, por “questões de segurança”. Como o Hamas costumava utilizar residências próximas à fronteira para disparar seus foguetes contra Israel, moradores da região passaram a ser vistos com desconfiança. Amjad chegou a fazer uma segunda tentativa, mas não conseguiu reverter a decisão.

– Lembro que ele chegou em casa e disse: agora nossa vida vai ficar horrível. Perdi meu emprego – conta a mãe, que na época vendeu seus anéis de ouro para comprar comida, enquanto o marido saía à procura de biscates em Gaza.

Isso quando havia trabalho, porque nos anos seguintes tudo piorou. Depois da chegada do Hamas ao poder, em 2006, quando Salleh nasceu, e da consequente imposição do bloqueio israelense, no ano seguinte, a economia da região ficou congelada. Hoje, Gaza tem a taxa de desemprego mais alta do mundo, de 43% da população ativa, chegando a 60% entre os jovens, segundo dados do Banco Mundial de 2015.

Sem portos ou aeroportos abertos, os moradores se sentem em uma grande prisão. As mercadorias que chegam a seu território precisam passar pelo crivo de Israel, a água que sai das torneiras é poluída, os cortes de energia são diários – o padrão é de rotatividade com oito horas de luz e oito horas sem, mas não é raro que sejam seis horas com eletricidade e 12 horas no escuro.

Quando o bloqueio começou, as restrições eram tantas que só mantimentos básicos chegavam em Gaza: até xampu, sapatos e biscoitos eram proibidos. A partir de 2010, depois que uma flotilha com suprimentos humanitários foi atacada por forças israelenses, causando a morte de nove pessoas, Israel aliviou as restrições, mas ainda proíbe a passagem de materiais que acredita que militantes utilizem para fabricação de armas, como aço, produtos químicos, plásticos e certos tipos de chips eletrônicos.

– Antes até chocolate era proibido. Será que pensavam que íamos fazer bomba de chocolate? – ironiza Saud, o jornalista que traduz a entrevista.

 

Em Gaza, Salleh vive com sua família em uma casa semidestruída por bombardeios durante o conflito de 2014

A família de Salleh recebe ajuda de organizações humanitárias para sobreviver – como 80% da população de Gaza. A cada três meses, ganha US$ 500 (cerca de R$ 1,6 mil) e quatro sacos de farinha. O maior sonho é consertar a casa bombardeada.

– Mas que cada saco de cimento custa US$ 22 (R$ 70), e só se acha no mercado negro – queixa-se o pai.

Além do bloqueio de Israel, os moradores de Gaza sofrem as consequências da disputa de poder entre os dois principais partidos palestinos, Hamas e Fatah, que chegaram a se enfrentar nas ruas depois da vitória do primeiro nas eleições de 2006, com dezenas de mortes. Enquanto o  Hamas não reconhece a existência de Israel e luta por um Estado Palestino religioso, o Fatah – que foi fundado por Yasser Arafat (1929-2004) – aceita o diálogo com Israel e ambiciona um Estado laico. A mãe lembra que estava no sétimo mês da gestação de Salleh quando se acentuaram as contendas internas. Certo dia, seu irmão retornou para casa sobressaltado. Tinha visto um militante do Hamas atirando em outro do Fatah, e o baleado agonizando na via pública.

– É muito difícil ver dois irmãos brigando nas ruas, e a gente no meio. Estamos vivendo anos cheios de sofrimento. Agora já se passaram 10 anos, e essa divisão entre Fatah e Hamas ainda não acabou. Se escapamos das balas do Hamas, Israel atira em nós e também temos de fugir. De todos os lados, temos problemas – lamenta a mãe, que diz não gostar nem do Hamas nem do Fatah.

– Os dois estão de olho nos seus próprios interesses. A maioria está pagando o preço da luta deles – desilude-se.

Salleh sofre de epilepsia. Precisa de medicação diária, mas nem sempre consegue tomá-la. Naquela mesma manhã, Feryal havia ido à farmácia pública procurar a dose prescrita para o filho. Precisaria de quatro garrafas de 120ml para o mês, saiu de lá com um quarto do necessário. Na rede privada, o medicamento custaria pelo menos 240 shekels (US$ 62, ou R$ 197). A família não tem como pagar.

– Queria levar o Salleh para consultar em Israel, porque ele tem uma bolinha na cabeça, perto do cérebro, mas por causa do bloqueio, negam a requisição – frustra-se a mãe.

Ressentido pelas dificuldades, Salleh afirma que seu sonho é se tornar médico neurologista, para um dia tratar crianças que, como ele, sofrem de epilepsia. Não quer que passem pelo que ele passa. Diz que não vai cobrar pelo tratamento, para que todas possam ser curadas.

– Talvez eu cobre só um pouquinho, para pagar os remédios – raciocina.

Estudioso, faz questão de mostrar o boletim, com “excelente” em todas as matérias. E conta que na escola tem uma namorada, Hajar.

– O pai dela é um mártir (foi morto por Israel) e ela usa óculos – apresenta, acrescentando que ele é melhor em ciências, e ela, em matemática.

Confessa que quer mostrar o ursinho que ganhou para Hajar, mas tem vergonha de apertar o botão falante de seu coração:

– Aí ela vai saber que eu amo ela.

Mesmo morando a um quilômetro da fronteira com Israel, Salleh nunca encontrou um israelense. Só os vê na TV. Mas sente a presença deles em tudo o que não tem.

– Não gosto deles porque destruíram minha casa, mataram crianças. Eles são os terroristas – revolta-se.

Por causa de tudo o que já viu acontecer na sua cidade, não tem certeza se um dia árabes e israelenses poderão ser amigos. Religioso, confia na provisão divina. Acha que Alá é quem sabe. Mas nem idealiza tanto. A transformação que ele espera começa antes, com a abertura das fronteiras.

– Paz para mim é o fim do bloqueio, nossa vida vai ser muito melhor se o bloqueio acabar. Nós iríamos poder viajar, ir e voltar. Seríamos livres para ir aonde a gente quisesse – imagina.

Quando perguntado para onde gostaria de ir se pudesse, responde sem pestanejar: Brasil. O motivo é o ídolo Neymar, que também sonha um dia conhecer. O futebol é seu esporte preferido. Isolado em seu mundo, nunca teve computador, nem usou a internet – em parte porque a família acha que a rede “não é algo boa para crianças”, em parte porque eles não têm dinheiro para pagar. Mas acompanha os lances do craque pela televisão.

No final da entrevista, peço para Salleh descrever a vida em Gaza. O menino olha para cima. Pensa por alguns segundos até desandar a falar, sacudindo os braços. Ouvindo a resposta, o tradutor começa a chorar antes de conseguir verter o árabe. Salleh pranteia também, esfregando as mãos nos olhos. A mãe observa emocionada, tapando a boca com os dedos, antes de oferecer seu colo para consolá-lo. Naquele silêncio comovido, as palavras do menino ecoam. Minutos depois, ainda enxugando o rosto, o tradutor me conta o motivo do choro coletivo:

– Ele diz que espera que a vida seja melhor em Gaza, que possam reconstruir a casa, porque eles estão sofrendo muito. Disse: chega! Isso já está demais. Venham e reconstruam nossa casa!

Por peculiaridades desse mundo globalizado, o ursinho que Salleh ganhou de Saud fala “I love you”, mas tem bordado no peito a frase “Eu te amo” em português. O menino ri quando conto para ele que é assim que a gente fala no Brasil.

Na falta de palavras em árabe para me comunicar, ensino a ele como formar um coração com as mãos. Ele ri, tentando imitar. Na despedida, Salleh e a mãe estão na frente da casa bombardeada fazendo corações com as mãos.

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