MARWAN

Brincadeira de soldado, prisão de verdade

Marwan Sharabati aponta a pistola para o irmão Hamid, de seis anos. Os dois trocam tiros na laje da casa, no terceiro andar de um sobrado dividido por três famílias, no centro da cidade antiga de Hebron. A brincadeira se chama Árabes contra Soldados e reproduz com armas de brinquedo a tensão que eles testemunham cotidianamente — com fuzis de verdade. Dividida, a cidade reconhecida internacionalmente como território palestino tem em seu coração uma colônia judaica, cercada por tropas do exército israelense. Marwan prefere ser o soldado na brincadeira, "porque tem mais controle sobre a situação". Mas não quer ser militar na vida real.

— Só se fosse um soldado palestino, que ama todo mundo — ressalta.

O menino já viu duas mortes ali na frente. Uma delas foi em outubro passado. Estava gravando imagens da chuva que caía, na mesma laje onde agora brinca com o irmão, quando ouviu gritos. Diz ter visto um palestino tentando acender um isqueiro quando foi alvejado por um soldado. Ouviu três tiros. A versão do Exército é de que o homem foi morto porque tentou apunhalar um militar. Imagens feitas por Marwan mostram o jovem tombado, sem armas ao lado do corpo. Ele foi identificado depois como o universitário Farouq Abdul-Qader Seder, 19 anos.

— Não consegui filmar tudo porque fiquei muito assustado, mas gravei o corpo no chão — conta.

Por ter sido visto com a câmera, conta que foi perseguido por colonos israelenses. Que cercaram sua casa e exigiram que entregasse o celular. Marwan entregou, mas antes tirou a memória do aparelho.

— Guardei dentro do sapato — conta.

Aprendeu que as imagens são um jeito de defender seu povo. Ao serem divulgadas pela organização Youth Against Settlement (Juventude contra Assentamentos), da qual a família faz parte, seus registros ajudaram a contrapor o discurso oficial de que o palestino morto estaria armado. Militante da causa, Marwan ocupa boa parte de seu tempo protestando. Fala que a perna dói porque na semana anterior foi prensado por forças de segurança durante uma manifestação pela abertura da rua onde mora. Apelidada de Rua do Apartheid pelos palestinos, a emblemática Shuhada foi fechada pelos israelenses  e rebatizada de David HaMelech (Rei David). O fechamento ocorreu depois de atentados e tumultos que se seguiram ao massacre de 29 palestinos por um judeu, em 1994, na Tumba dos Patriarcas, dividindo ainda mais a cidade que, desde 1967, está sob ocupação. Hoje, há mais de 20 pontos de controle militar de Israel em Hebron, com catracas e soldados.

— Meu sonho é que a rua seja aberta, que possa viajar para outros lugares, viajar de avião com meus irmãos — almeja Marwan.

Seu pai, Mufeed, considera inevitável a participação dos filhos na luta contra a ocupação, mas lamenta a abreviação da inocência infantil.

— Eles não vivem como outras crianças do mundo, não brincam. Não sabem nada sobre a infância. Essa é a nossa vida — resigna-se ele, que recebe uma pensão por invalidez, também atribuída ao conflito.

Mufeed diz que teve uma vértebra fraturada por soldados, quando tentava reformar a casa. Por causa do domínio israelense, os palestinos são proibidos de construir ali. O pai diz que havia conseguido uma autorização, mas quando chegou com o carregamento de materiais para fechar a laje de casa foi confrontado pelas tropas locais. Por insistir em tocar a obra, foi levado preso e agredido. Hoje, recebe por mês 1,8 mil shekels (R$ 1,4 mil) para sustentar os cinco filhos. Calcula que precisaria pelo menos três vezes mais para ter uma vida mais confortável. Nos bons tempos, quando Hebron ainda era um polo comercial, trabalhava como empresário, tinha cinco carros e empregava 50 pessoas. Na via hoje desértica, funcionavam mais de 600 lojas. No mercado que restou na parte da cidade sob controle palestino, inscrições marcam o protesto: "Esta é a Palestina. Lute contra a Cidade Fantasma".

— Essa rua era a mais importante de Hebron, tinha as lojas mais importantes do país. Agora estão todas fechadas, as casas vazias — lamenta Mufeed.

De tanto ver obras que não podem ser feitas na cidade, que em árabe se chama Al Khalil, Marwan quer ser engenheiro quando crescer.

— Quero arrumar o país, construir casas para as pessoas — planeja.

Pretende ajudar também aqueles que têm suas casas demolidas pelo governo israelense. Toda vez que algum palestino é acusado por Israel de cometer um ato terrorista, uma das punições impostas é a demolição da casa da família, o que é visto por organizações de direitos humanos como uma punição coletiva — e uma medida que alimenta o ciclo de ressentimento que perpetua a violência.

Os símbolos de hostilidade estão espalhados pelas esquinas. A porta da casa de Marwan foi pichada com uma estrela de Davi, como num recado de que a presença palestina incomoda. Por morarem ao lado do posto militar que faz divisa com a área judaica, a família só pode seguir uma direção quando sai.

Marwan vive em uma rua que foi fechada pelos judeus em Hebron. Sua casa fica ao lado de um posto de controle militar israelense

— Eles só podem ir para a esquerda, senão morrem — traduz o estudante palestino Mohanned Qafesha, 24 anos, amigo da família.

O cercamento impõe mudanças de trajeto, já que boa parte do acesso à Tumba dos Patriarcas é reservada aos judeus. Para ir à escola, por exemplo, Marwan poderia chegar em um minuto subindo uma escada ao lado de casa. Como o acesso foi fechado para palestinos, precisa fazer toda a volta, subindo uma ladeira e caminhando ao menos 10 minutos. As restrições também dificultam a realização de projetos sociais. Com apoio das Unidade das Nações Unidas para Refugiados Palestinos, a Ong  da qual a família faz parte havia construído um banheiro externo para a creche comunitária. Por ordem do exército, precisou demolir.

— Eles querem tornar a nossa vida difícil para tomar a nossa terra, é isso. Vivemos sob a lei militar israelense, e por essa lei somos culpados, precisamos provar o tempo todo que não somos. É um apartheid — critica Issa Amro, criador da Youth Against Settlement, que se mantém com doações internacionais.

A causa tem reconhecimento externo porque a ocupação é considerada ilegal pela ONU — a Resolução 465, de 1980, por exemplo, "determina que todas as medidas tomadas por Israel para mudar o caráter físico, composição demográfica, estrutura institucional ou status dos territórios árabes palestinos e outros ocupados desde 1967, incluindo Jerusalém, ou qualquer parte dele, não têm validade legal".

— Eles usam a questão religiosa como justificativa para tomar a nossa terra. Poderiam vir como turistas, não como ocupantes — indigna-se Issa, que nos últimos seis meses diz ter sido preso 10 vezes, por atividades como fotografar movimentação militar ou conversar com jornalistas, o que é considerado uma "incitação contra o Estado de Israel".

— Eles podem me prender sem julgamento, sem nenhuma evidência. Nós não temos nenhum direito. Não temos eletricidade suficiente, não temos liberdade religiosa, não temos liberdade de movimento, não temos nada.

Com as gravações, os moradores da região descobriram uma maneira de resistir. Observam que, às vezes, quando estão filmando alguma coisa, os próprios colonos que antes falavam palavrões ou xingavam os árabes "Você é um cachorro, você é um lixo", começaram a maneirar o vocabulário, temendo o flagrante. Mas a iniciativa também provoca reações. Por causa de fotos e vídeos que registra, a família de Marwan já teve a casa invadida pelos soldados, que destruíram equipamentos eletrônicos e quebraram uma televisão. Ele mesmo também já foi preso. Ficou detido por seis horas depois de ter sido acusado de estar jogando pedras. Ele nega.

— Os colonos é que roubaram minha bicicleta, na frente de casa. Depois uma colona saiu gritando que eu tinha jogado pedras — conta.

Mesmo não gostando dos colonos, Marwan conhece ativistas israelenses que são contra os assentamentos e os considera seus amigos, pois lutam pela mesma causa.

— Os colonos nos atacam. Mas gosto dos israelenses, porque eles vêm nos defender — diferencia.

Crescendo em meio à tensão, o menino às vezes fala alto enquanto dorme, imaginando que está sendo atacado, e faz xixi na cama. Está disposto a pagar o preço da resistência:

— Quero ficar porque eu nasci aqui. Porque meus amigos estão aqui. E porque quero lutar contra a ocupação, não quero desistir.

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