CAPÍTULO 1

Sozinho: a cidade dá à luz mais um menino de rua

Nesta reportagem especial, você vai conhecer os passos de um menino que peregrina há nove anos pelas esquinas sem que ninguém consiga detê-lo. Com autorização do Juizado da Infância e da Juventude, ZH acompanha a jornada de Felipe (nome fictício) desde março de 2009. Identificado entre 383 crianças e adolescentes em situação de rua em censo realizado na Capital em 2008, o guri hoje com 14 anos tem uma história que revela um pouco de todos eles.

Para contá-la, ZH reconstituiu sua trajetória.

Desde a casa onde Felipe cresceu até as calçadas em que dormia. Das 320 páginas que registram sua passagem por diferentes instituições às memórias da mãe e de educadores que conviveram com ele. Das escolas de onde fugiu aos abrigos que o acolheram.

Como ele, outros chegam às calçadas empurrados por um misto de pobreza, negligência familiar, defeitos na rede de proteção, indiferença da sociedade, esmola, drogas.

Nesta reportagem, você vai entender por que não conseguem sair.

Os nomes do menino e da família foram trocados para preservar as identidades, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente. Para consultar os documentos que registram esta história, Zero Hora obteve autorização da 1ª Vara da Infância e da Juventude da Capital.

 

A mãe aprendeu a ler as sombras entre as esquinas. Caminha olhando para os lados, arqueando as sobrancelhas desenhadas com uma pinça. Em cada vulto, procura o filho caçula, de 11 anos, a quem não vê há um ano e 18 dias. Segue em direção à Vila dos Papeleiros, na principal entrada da Capital, forçando a perna esquerda que a paralisia infantil encolheu. Soube por uma vizinha que o menino está nas redondezas, onde há um ponto de venda de crack. Na tarde quente deste 27 de março de 2009, carrega a tensão de uma jornada decisiva.

 

Sua última busca por Felipe.

 

Cansada da luta para resgatá-lo, Maria tomou uma decisão. Vai viver ao lado da mãe e das irmãs em Torres. Antes, quer encontrar o filho. O suor escorre pelo peito enquanto ela espreme as mãos, deixando à mostra as unhas pintadas com esmalte rosa cintilante. Não é porque é pobre que não tem que se cuidar, diz.

 

Felipe começou a fugir de casa aos cinco anos. A mãe admite que nunca conseguiu cuidar direito dele e dos cinco filhos mais velhos. Passava os dias limpando casas, cuidando das crianças dos outros. Mas acredita que o menino teria retornado para o lar erguido com tábuas de lixo reciclado, no bairro Bom Jesus, se não ganhasse tanta esmola de gente que imagina estar fazendo uma boa ação.

 

Maria não quer conversar agora – está ocupada distinguindo rastros. Ao entrar na vila, fixa o olhar em um menino moreno, com uma camiseta verde grande demais. Parece com Felipe, embora tão mais magrinho desde o último abraço. Apressa o passo e o menino corre.

 

– Ele nunca fugiu de mim antes, não deve ser ele – raciocina.

 

Era. O menino corre em direção à Avenida Castelo Branco. Maria não o alcança, e pergunta a uma moradora de rua se o conhece. A resposta pesa como sentença:

 

– Sim, ele me chama de mãe.

 

Quando apareceu em busca de uma pedra de crack, Felipe havia dito à mulher que seus pais haviam morrido. Maria nem sabe o que dói mais: a fuga ou a morte inventada, a mentira ou a realidade.

 

– Ele sempre vem correndo e me abraça. E aí diz: desculpa, mãe, não vou mais fugir. Hoje, ele nem olhou pra trás – lamenta a mãe verdadeira.

 

Maria acredita que o filho vai voltar. Comprime os lábios, entrelaça os dedos numa prece sem reza. Espera na casa oferecida por uma vizinha do ponto de tráfico, onde observa desde crianças até idosos sucumbirem ao mesmo vício. Fazem fila diante da porta do traficante. Quando um jovem de boné e abrigo azul-marinho aparece para distribuir a droga, 12 deles se amontoam ao seu redor. Convertidos em zumbis, não percebem que são observados. Olhos vidrados, disputam as pedras como se fossem diamantes, correm em direções opostas para consumi-las. O vaivém é permanente. No meio da tarde, a polícia faz uma batida na vila. Vinte consumidores de crack são encostados num paredão. Outros dois fogem. A mãe espreita para ver se reconhece o seu filho entre eles. Felipe não está ali.

 

Às 19h30min desta sexta-feira, ela desiste de esperar. Deixa recados entre os moradores, que digam ao filho que ela vai embora na quarta-feira, que ele apareça em casa antes para acompanhá-la a Torres. Enxuga as lágrimas pelo caminho. Diz que precisa voltar para cuidar do neto que cria. Morar no Litoral é também uma tentativa de evitar que o pequeno de seis anos tenha o mesmo destino de Felipe e seus irmãos. Um morreu assassinado, outro está preso por roubo, um terceiro passou pela Fase. As duas irmãs também caíram nas drogas e perambularam pelas ruas.

 

– Outro dia com a casa vazia – suspira.

 

A MÃE ESPERA, EM VÃO

 

Nos dias seguintes, reza para que o caçula apareça enquanto acomoda as roupas em caixas de papelão para a mudança. Levará consigo o filho de 17 anos, o neto e a gatinha de estimação, que recebeu o nome de Anjinha pela pelagem toda branca. As filhas são maiores de idade, vão seguir seu próprio destino.

 

No dia da partida, deixa separada uma muda de roupa limpa, para o caso de encontrar Felipe pelo caminho. No trajeto da Vila Bom Jesus até a Estação Rodoviária, mantém a cabeça colada no vidro da Kombi que contratou para o frete com o dinheiro da venda da geladeira e dos poucos móveis. Maria se apega à remota esperança de que o menino apareça de repente. Sentada em um banco da Rodoviária, segura com a mão direita a cabeça, que pensa no filho ausente, enquanto vigia Anjinha, quieta em uma caixa própria para o transporte no ônibus.

 

– Preciso ir com ou sem ele, já parei muito tempo a minha vida – desiste.

 

Foge da realidade no dia da mentira, 1º de abril de 2009. Desde então, a criança não tem mais uma casa para voltar. A cidade dá à luz oficialmente mais um menino de rua.

 

Herdeiro de um lar em crise

 

O flash de uma infância feliz ficou imortalizado na fotografia: aos três anos, um Felipe de cabelos loiros encaracolados faz pose em cima de um pônei emprestado por um vizinho, na Vila Mário Quintana, na zona norte de Porto Alegre.

 

O sorriso eternizado no único retrato de sua infância conta pouco de sua história. A foto foi tirada logo após a separação dos pais, em 2001, uma perda nunca completamente superada pelo menino.

 

As fugas se tornaram rotina em seguida. Longe da vigilância da mãe, que passava o dia fazendo faxinas, dizia que saía para procurar o pai, a quem sempre idealizou como um herói.

 

Maria explicava ao filho que precisou mandar embora o companheiro de duas décadas porque estava cansada de apanhar. Nos bons tempos, o pai dos seis filhos trabalhava como vigilante no estádio Beira-Rio. Perdeu o emprego de 14 anos por causa do alcoolismo. A esposa não conseguia perdoá-lo. As marcas da violência lhe gritavam cada vez que olhava no espelho. De tanto levar socos do marido na boca, perdeu três dentes da frente.

 

– O doutor disse que vão cair todos, porque ficaram moles, matou a raiz. Dois caíram de uma tacada só, enquanto eu escovava os dentes – entristece-se Maria.

 

Sua sexta gravidez não foi planejada, mas nem por isso era indesejada. Com cinco filhos em idades entre seis e 19 anos, a doméstica de 37 anos sentia falta daquelas atenções que só as gestantes recebem, da emoção que o filho começa a dar para a mãe antes mesmo de ser parido. Acreditava que a chegada de um bebê poderia trazer dias melhores. Nunca tomou anticoncepcionais, confia que Deus sabe das coisas.

 

Os pés que anos depois iriam se perder entre as esquinas da Capital já denunciavam sua inquietude no Hospital Conceição, onde Felipe nasceu, às 18h47min de 15 de fevereiro de 1998.

 

A agitação do bebê que se apresentou ao mundo com 3,59 quilos e 51 centímetros fez com que seis dedos ficassem gravados na ficha do teste do pezinho. As bochechas vermelhas contrastavam com o cabelo castanho do recém-nascido, que irrompeu de parto normal após as 41 semanas e um dia em que sacolejou na barriga de Maria, enquanto a mãe limpava casas de família.

 

Sem poder parar de trabalhar, deixava Felipe sob os cuidados de uma sobrinha e das filhas, de 11 e 14 anos. Combinava com elas para que levassem o bebê até o seu serviço, para que pudesse amamentar. Agradecia a Deus por nunca ter lhe faltado leite – e o filho mamaria até os quatro anos de idade.

 

Afastado do pai, Felipe cresceu sem poder contar com o exemplo dos irmãos. Longe da vigilância da mãe, que passava os dias batalhando o almoço do dia seguinte, os filhos mais velhos traçavam a própria geografia. Em 2000, quando o caçula tinha dois anos, a irmã de 15 anos e o irmão de 16 foram apreendidos por furto de lâmpadas. O filho de 12 tinha reclamações na escola por roubar merenda dos colegas. O mais velho cumpria pena por roubo. O consumo de loló virou rotina entre os mais velhos. Apesar das dificuldades para criar a prole, a mãe decidiu não fazer laqueadura após o sexto parto. Pensava: e se depois quisesse mais um bebê?

 

Na primeira tentativa de reconstrução de sua vida, em 2001 a doméstica assumiu um novo relacionamento, com um servente de pedreiro que havia estudado até o segundo ano do Ensino Médio e a conquistou com seu jeito trabalhador.

 

– Ele sai de casa pra trabalhar mesmo com chuva. Se precisa, cata latinha, qualquer coisa – entusiasmou-se.

 

Apaixonada, Maria começou a dedicar mais tempo para o novo companheiro, e em agosto do mesmo ano, engravidou pela sétima vez. Felipe reagiu mal à mudança. Sentindo falta do pai e ciúme da mãe, rejeitava aquele estranho que tentava impor sua autoridade na casa, dando ordens sobre a hora de comer, de dormir. Não queria saber de outro homem ao lado de Maria.

 

– Eu não quero que tu viva com a minha mãe, quero que ela fique sozinha ou com meu pai – dizia para o padrasto.

 

– Por que tu não volta com meu pai? – repetia para a mãe, que acabou sofrendo aborto espontâneo meses depois.

 

Embora Maria negasse, os filhos relataram às autoridades que o padrasto também ficava agressivo quando bebia e batia neles. Em 2 de julho, uma das filhas queixou-se de maus-tratos a técnicos da Justiça Instantânea, que acompanhavam a adolescente desde 1998, quando foi acusada de roubar roupas em uma loja.

 

“Disse que o padrasto, no dia anterior, colocou seu irmão D. embaixo da água fria do chuveiro e bateu-lhe com cinta, deixando-lhe com vários vergões. Depois seu irmão foi para a escola e, por medo, não retornou mais para casa, não sabendo onde ele se encontra. V., que havia se queixado, anteriormente, do padrasto que gritava muito com ele e quis lhe bater com um espeto, também saiu de casa e não sabem onde ele está. Apesar de Felipe ter apenas três anos, puxa-lhe as orelhas e coloca-o de joelhos. Costuma chamar B. de vagabunda, dizendo que ela não presta para nada. Em outra ocasião, a adolescente queixou-se que a mãe havia lhe agredido com cabo de vassoura”, registra o documento.

 

Passe livre para sair de casa

 

Diante do acirramento do conflito familiar, Felipe começou a sair de casa com mais frequência. Com a cumplicidade dos cobradores de ônibus, que permitiam que passasse por baixo da catraca, ganhou o passaporte para sair da vila rumo ao Centro. Em suas viagens, descobriu uma nova cidade. Ruas calçadas com prédios grandes e bonitos como nunca tinha visto, o pôr do sol do Guaíba, praças cobertas de árvores e brinquedos que não havia nas vilas onde morou.

 

A busca pelo pai passou a ser pretexto para caminhar guiado pelos próprios prazeres. Descobriu o Parque da Redenção, encontrou meninos e meninas como ele, vagando sem destino. Um mundo divertido, onde não precisava seguir regras, e onde as pessoas lhe davam comida e dinheiro assim que estendia a mão.

 

De tanto procurar pelo pai, um dia Felipe acabou encontrando. Aos oito anos, em uma de suas andanças pelo centro da Capital, descobriu que seu herói também perambulava sem destino, catando latinhas. Animado pelo reencontro, voltou para casa e disse à mãe que iria viver com ele nos arredores da Vila dos Papeleiros.

 

A doméstica ficou triste, sabia que o marido não tinha condições de cuidar do menino, mas se achava incapaz de impor limites. Sem sequer saber o endereço, Maria informou a mudança do menino para o Conselho Tutelar, que avisou o Ministério Público, em 7 de abril de 2006.

 

Apesar do entusiasmo de Felipe, a reaproximação com o pai se revelou uma ilusão. O Conselho Tutelar nunca chegou a encontrar o papeleiro, e Felipe voltou a se dividir entre a rua e a casa na Bom Jesus, com a mãe e os irmãos.

 

Meses depois, o pai apareceu para procurá-lo por lá.

 

– Mãe, o pai tá aí – avisou Felipe.

 

– Vai lá falar com ele – respondeu a mãe.

 

O filho foi até a porta e voltou:

 

– Mas ele tá bêbado – desiludiu-se.

 

– Pois é, meu filho, era isso que eu te falava – consolou Maria.

 

Desde então, o pai nunca mais foi visto.

 

Esmola, o sustento na rua

 

Antes mesmo de chegar à idade de entrar na escola, o menino já palmilhava a cidade. Tinha cinco anos na primeira vez em que foi recolhido no centro de Porto Alegre pela Brigada Militar, por volta das 20h do dia 24 de junho de 2003. Levado ao Plantão Centralizado do Conselho Tutelar, disse que morava em Alvorada. Como na época não havia integração informatizada entre os sistemas de atendimento na Região Metropolitana, a mentira foi descoberta apenas no dia seguinte. Desde então, a distância de casa só aumentou.

 

Nas ruas, Felipe descobre ser capaz de conquistar sozinho o que a mãe não pode lhe dar. Nem precisa dizer nada: basta estender os braços finos e o dinheiro aparece na sua mão. Numa de suas primeiras noites na rua, aos seis anos, o menino de lábios carnudos e cabelo castanho raspado arrecada R$ 100 pedindo esmola na rodoviária. Volta para casa de táxi, com duas sacolas de rancho. Compra bolachas recheadas, refrigerante, chocolate – sonhos de consumo que os R$ 80 mensais que a mãe ganhava com faxinas nunca puderam realizar.

 

– O que foi, meu filho? Tu tá passando necessidade? Tu não tem comida em casa? – repreende-lhe Maria.

 

Felipe desconversa, promete que não vai mais fugir, parece tão feliz que a mãe não consegue castigá-lo. Nos dias seguintes, fala que vai jogar bola com os amigos e desaparece novamente. Preocupada, Maria começa a segui-lo, recolhê-lo das calçadas do Mercado Público, trancar a porta de casa e esconder a chave embaixo do travesseiro. Felipe sempre descobre os esconderijos, inventa novas desculpas para sair. Reaparece com sorriso aberto e dinheiro no bolso.

 

– Só tem uma razão para as crianças estarem nas sinaleiras: é porque ali ganham dinheiro. A esmola é o que fixa as crianças na rua – adverte o desembargador Breno Beutler Júnior, que atuou durante 18 anos na 1ª Vara da Infância e da Juventude da Capital, inclusive no caso de Felipe.

 

Sem que a família consiga deter a trajetória itinerante, a matrícula do menino na pré-escola fica só no papel. A sequência de faltas está registrada no caderno de chamada de capa verde do Jardim B, da professora Neli. Das 50 aulas do primeiro bimestre de 2004, o menino de seis anos esteve em apenas quatro. Como até então nessa faixa etária o ensino não era obrigatório, nenhuma providência foi tomada.

 

No ano seguinte, a mãe volta ao Conselho Tutelar e pede ajuda para matricular Felipe na primeira série. Sob o número 3061, a vaga é assegurada em uma escola estadual perto de casa, em ficha escolar preenchida com caneta preta, assinada por Maria. A esperança dura pouco. Nos primeiros dias vai à aula, mas, na hora do recreio, pula o muro de 1m50cm, pega o ônibus e volta para o Centro.

 

Felipe tem 179 faltas consecutivas ao longo do ano, mas só em 20 de outubro de 2005 – no final do ano letivo – a mãe recebe uma advertência do Conselho Tutelar. Maria argumenta que não consegue controlar o filho de sete anos porque trabalha fora, não tem como vigiá-lo. Ainda assim, a cobrança tardia obtém algum resultado. O menino começa a frequentar as aulas em 11 de novembro, totalizando 23 presenças ao longo do ano. Insuficiente para aprender mais do que as letras do seu nome.

 

Em relatório enviado ao Conselho Tutelar em 27 de dezembro, a então diretora da escola, Lucia Araujo, manifesta preocupação com a trajetória de Felipe.

 

“No pouco comparecimento, foi evidenciado [comportamento] agressivo com colegas, brigas, mentiras, fantasias de situações vividas, conivência da mãe com atitudes inadequadas do filho, pouco acompanhamento escolar da família, fuga da escola, inquieto para a realização de atividades na aula, além de história familiar de drogadito e de morte do irmão mais velho. Sugerimos apoio à família, na área assistencial e de saúde, para que haja progresso escolar.”

 

Com o dinheiro doado por anônimos, Felipe começa a ir cada vez mais longe. Três semanas antes de completar oito anos, é encontrado pelo Conselho Tutelar de Novo Hamburgo em situação de mendicância, no centro. Quando lhe perguntam quem é, responde que sua casa havia queimado num incêndio e toda sua família havia morrido. Mas durante a conversa confessa onde realmente mora. O conselheiro Valderi Luiz Barbosa leva então o menino de volta a Porto Alegre. Antes que sua mentira seja descoberta, Felipe foge da sala de espera do conselho da Bom Jesus, aproveitando que os conselheiros estão atarefados com outros casos. Volta sozinho para casa. Dois dias depois, a rotina se repete: a mãe é notificada, obrigada a acompanhar a frequência escolar do filho. Desta vez, o menino é encaminhado para atendimento em serviço socioeducativo conveniado com a prefeitura na Vila Bom Jesus. Chega a comparecer algumas vezes, mas é identificado pela educadora Marta Helena Cardoso como um aluno turista entre as 160 crianças que frequentam a instituição: visita de vez em quando, joga futebol, mas não tem concentração na escrita nem se mostra interessado na hora do conto.

 

Em vez de ouvir historinhas de contos de fadas no serviço socioeducativo, elege como professores outros moradores de rua que catam papelão nas imediações da praça Garibaldi, na Cidade Baixa, e no Centro. Em 7 de março de 2006, é recolhido pelo plantão do Conselho no Centro, vagando às 2h30min. Ao ser questionado sobre sua família, diz que a mãe é falecida. Sem conferir a informação nem a identidade de Felipe, o plantão conduz o menino ao Acolhimento Noturno, destinado a moradores de rua adultos. Assim que o sol nasce, Felipe volta a mendigar. Quase um mês depois, em 4 de abril, é localizado e levado por educadores do serviço de abordagens da prefeitura para o Lar Dom Bosco, um abrigo diurno que oferece atividades recreativas a crianças e adolescentes.

 

Neste momento, o menino de oito anos já vaga pelas ruas há três.

 

Bolsa para ajudar a família

 

Para auxiliar na reestruturação, a família é incluída no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e no Bolsa-Família em abril de 2006, recebendo um total de R$ 200 mensais. Embora um dos pré-requisitos da bolsa seja a permanência da criança na escola, Felipe nunca voltou para a sala de aula. Sem integração com programas de geração de renda e preparação para o mercado de trabalho, a bolsa não altera em nada a estrutura familiar.

 

Três meses depois de ser incluído no Peti, que atende 10.313 crianças e adolescentes gaúchos atualmente, o menino de oito anos é encontrado sozinho em Guaíba. Recolhido pela Brigada Militar, é levado ao Conselho Tutelar. Como diz não ter família, permanece três dias abrigado no município até descobrirem sua verdadeira identidade. Ao ser avisada, a conselheira Lucia Kümmel, do conselho da Bom Jesus, pega a Kombi do órgão e vai, junto com a mãe, resgatá-lo.

 

O caçula abraça e beija Maria ao reencontrá-la, promete novamente que nunca mais vai fugir. Para manter o filho por mais tempo na vila, a doméstica junta economias e compra de um vizinho uma bicicleta usada, que ele tanto sonhava em ter. Sobre as duas rodas, o menino vai embora outra vez.

 

Sem notícias do filho há mais de um mês, Maria volta a recorrer ao Conselho Tutelar. Localizado no Lar Dom Bosco, Felipe diz que prefere ficar ali, “pois o professor de capoeira é bem legal”, mas que gostaria de visitar a mãe de vez em quando, “porque gosta dela”. Ao fim das suas declarações, anotadas a caneta por uma educadora do lar, está uma constatação: o menino “não sabe assinar”.

 

Até hoje, aos 14 anos, Felipe não foi alfabetizado.

 

Entre a casa e as calçadas

 

Quanto mais o tempo passa, mais a rua dissolve os vínculos familiares de Felipe. Aos 11 anos, está há um ano morando pelas calçadas quando reaparece sozinho na rua de chão batido onde foi criado, na Vila Bom Jesus. Ao chegar, em 15 de abril de 2009, encontra aberto o portão de tábuas irregulares da casa onde morava. Por instantes, Felipe pensa que a mãe ainda o espera. Ao espiar entre as frestas, vê que outra família ocupa o cenário de sua infância. A mãe havia se mudado para Torres 15 dias antes.

 

Já tinham lhe contado da partida. Ao ver por si próprio, reage com indiferença.

 

– Acho melhor ficar na rua porque meu padrasto bate em mim – diz o menino, com o olhar sombreado pelo boné verde militar e o corpo infantil encoberto pela camiseta cinza tamanho adulto, com mangas batendo no cotovelo.

 

Confessa ter saudade da mãe, mas não desfaz o sorriso.

 

– Diz pra ela que eu amo ela muito, pra ela não sentir minha falta.

 

Embora apresente o olhar um tanto perdido, a fala enrolada, aos olhos dos vizinhos ainda parece o mesmo guri que gostava de jogar futebol quando pequeno. As vizinhas espiam pelos portões para confirmar se é ele mesmo. Em minutos, uma dezena de crianças forma um círculo ao seu redor. A todos os que se aproximam, Felipe saúda com um abraço, um sorriso.

 

– Oi, eu voltei – repete, como quem regressa de uma viagem.

 

Entre os amigos que o cercam, está um vizinho da mesma idade, que durante dois anos foi engraxate no centro da cidade e, com ajuda do Conselho Tutelar, regressou ao lar. No caso dele, o vínculo com a escola foi decisivo. Mesmo quando ia para o Centro, nunca parou de frequentar a sala de aula, e àquela altura, está na terceira série. Ali também estão dois meninos, de nove e 10 anos, que já venderam amendoim e bergamota nas sinaleiras da Ipiranga, perto do entroncamento da PUCRS.

 

– A gente só parou de ir vender na sinaleira porque o cara deixou de nos dar serviço – contou um deles.

 

A volta do ex-vizinho é transitória. Pouco antes das 17h, Felipe decide partir. Atravessa a rua principal da Bom Jesus rumo à parada de ônibus, deixando pelo asfalto o rastro dos papéis das balas que ganhou dos amigos. Entra na linha 671 da Unibus, passando por baixo da roleta. O destino é a Vila dos Papeleiros, onde há um ponto de crack.

 

– O certo seria não deixar esses guris passarem, mas sabe como é, a gente tem medo. Uma vez, um cobrador não deixou e depois o pai do guri, que era traficante, deu três tiros na cabeça dele – justifica o cobrador, contando que em linhas como a Educandário chegam a passar 80 crianças por baixo da catraca a cada dia.

 

Sentado no fundo do ônibus, Felipe canta versos de glória, aleluia. Músicas que lembram a religiosidade de sua infância, no tempo em que ia com a mãe à igreja e sonhava em ser pastor. Diz que não sabe rezar, mas acredita em Deus.

 

– Acho que ele pode me tirar dessas drogas – crê.

 

Não gosta de falar sobre o crack, nem sobre onde dorme. Corta a conversa dizendo que quer parar com tudo. Arrisca planos para o futuro.

 

– Se alguém me oferecer um serviço, vou trabalhar e vou parar de usar. Vou comprar uma casa e uma televisão e vou comprar minhas roupas, meu guarda-roupa e um carro ou uma moto – enumera, num sorriso tímido.

 

À medida que o Centro se aproxima, assume outra personalidade. Não quer mais conversar. Desce do ônibus correndo, na Avenida Cristóvão Colombo. Desvia dos pedestres com seu tênis Mizuno branco encardido, que garante ter comprado por R$ 1. Apanha um pedaço de arame da calçada, começa a apontá-lo a quem cruza seu caminho.

 

– Passa a bolsa, passa a bolsa – grita para uma mulher, sem deixar de correr, num movimento que faz balançar os pingentes em formato de estrelinha da corrente prateada que carrega no pescoço.

 

No caminho rumo ao ponto de crack, atravessa a rua cortando a frente de um ônibus. Passa por uma banca de churrasquinho montado sob as paradas dos coletivos e ganha um espetinho.

 

– Eu sempre dou força pra esse menino – acredita José Bento, o dono da banca, um dos que ajudam a mantê-lo na rua.

 

Sai mastigando. Pensa em parar para pedir esmola diante de um supermercado, mas segue adiante. Recolhe uma pedra no chão, faz de conta que vai atirar contra um outro morador de rua que passa pela calçada.

 

– Que que é, rapaz? – provoca, agressivo.

 

Ao chegar à Vila dos Papeleiros, cumprimenta conhecidos, senta no pátio de uma casa onde costuma vender latinhas que arrecada na rua para comprar crack. Puxa um cigarro amassado, um isqueiro do bolso e começa a fumar. Ri de cenas do desenho animado Pica-Pau que passam na televisão da vizinha. Está ansioso, quer dinheiro. Nesta tarde, não pediu esmola, ainda não pode comprar a pedra. Minutos depois, se despede com um abraço. Diz que está com sono e vai dormir. Não quer ser acompanhado. Ao avistar um isqueiro da grife Zippo nas mãos do fotógrafo, Felipe pede para ver e sai correndo levando o objeto. Desaparece outra vez pelas esquinas, na escuridão das 20h. Já tem uma moeda de troca para as drogas.

 

A rotina é fugir de abrigos

 

Será mais uma noite vagando pelas ruas, entorpecido. Uma rotina que nem a Justiça conseguiu interromper. Um ano antes, Felipe havia sido abrigado por determinação judicial na Casa de Acolhimento da prefeitura. Como a mãe não conseguia cuidar do filho, a Promotoria da Infância entrou com uma ação de destituição do poder familiar, em 2 de abril de 2008. A guarda foi concedida provisoriamente ao abrigo municipal. Mas a instituição se revelou incapaz de segurá-lo. De 10 de novembro até 15 de março de 2009, Felipe fugiu três vezes. Na primeira, aproveitou um passeio na pracinha e escapou, enquanto o educador dava atenção às outras crianças.

 

– Que abrigo é esse que criança foge? – indignou-se a mãe.

 

A coordenação do abrigo admite que as fugas são rotina. Diz que ali é um espaço de moradia, não de detenção, por isso as crianças não são trancadas. Mas reconhece falta de estrutura. Na época, em um espaço para 30 crianças, havia 64 – e apenas seis educadores sociais em cada turno.

 

– Quando se olha para o lado, um já pulou o muro – explicou o educador social Gilberto Lopes Leal, em 2009.

 

Apesar das falhas da rede, o psicólogo Lucas Neiva-Silva, pesquisador do Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua da UFRGS, discorda da ideia de fracasso do sistema.

 

– Na história de várias outras crianças o sistema tem sido efetivo, ajudando-as a sair das ruas. Talvez, sem essas intervenções, o menino estivesse hoje em situação ainda mais vulnerável – pondera.

 

Em uma das vezes em que voltou ao abrigo, em 5 de março de 2009, depois de quase um mês na rua, Felipe não queria falar com ninguém. Dormiu por dois dias seguidos. Quando despertou, começou a desenhar os automóveis que aprendeu a apreciar nas ruas. Em formas coloridas, reproduzia com fidelidade os detalhes de cada peça, do motor aos equipamentos de som. Diante dos progressos, os educadores conseguiram animá-lo a voltar à escola. Felipe ficou entusiasmado ao contemplar a mochila. Pediu pra ver os cadernos, o lápis, o estojo. As aulas começariam no dia 16, segunda-feira, na Escola Aberta da Vila Cruzeiro. No domingo da véspera, fugiu outra vez. Lá fora, algo mais poderoso o atraía: o crack.

 

As 320 páginas de documentos compilados desde 1998 sobre Felipe contam sua peregrinação pelas ruas e comprovam que passou imune pelos serviços de proteção em que foi incluído:

 

- Foram 105 encaminhamentos do Conselho Tutelar

 

- A família foi inserida em 5 programas sociais: Bolsa-Escola, Bolsa-Família, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, Núcleo de Apoio Sociofamiliar da prefeitura de Porto Alegre e Ação Rua

 

- Foram 9 encaminhamentos da Promotoria da Infância e da Juventude e 3 do Juizado da Infância e da Juventude

 

- Felipe foi internado 7 vezes para tratar sua dependência química

 

- O menino passou por 3 abrigos e foi matriculado em 4 escolas. Continua analfabeto.

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