RENASCIDOS

Com pequenas e grandes vitórias, todas valorizadas pelo incidente que as colocou em perspectiva, se reconstrói aos poucos a vida dos quatro sobreviventes brasileiros do acidente da Chapecoense.

 

O peso da tragédia varia em cada caso, uns com mais dificuldades para recobrar um pouco do que eram antes, outros tão reinseridos na rotina que é difícil acreditar que passaram por tamanha provação. O que não muda entre os quatro é o valor que dão ao que chamam de "milagre" de terem sobrevivido.

Reportagem

André Baibich

Imagens

Lauro Alves*

Design

Brunno Lorenzoni

*a reportagem também tem fotos de Sirli Freitas, Robinson Sáenz, Juan Barbosa, Josep Lago, Silvania Cuochinski, Celso Pupo

Os primeiros passos

De volta da Colômbia, ainda lutando contra dores físicas e o intenso sofrimento psicológico, os sobreviventes têm contato com a nova realidade.

Follmann ganha uma perna

Em fevereiro, Jakson Follmann viajou ao Instituto de Prótese e Órtese (Ipo), em Campinas, para colocar a prótese. Sobre sua cabeça, pairava uma nuvem de pontos de interrogação. Não sabia se a adaptação seria bem sucedida, se poderia se movimentar normalmente.

 

Logo que chegou, foi submetido a massagens para se livrar das dores que tinha no local da amputação. No quarto dia no Ipo, a prótese. E as barras metálicas, em que apoiaria as mãos para reaprender a andar:

 

"Quando eu coloquei a prótese e dei os primeiros passos, agarrado nas barras, olhei para o lado e estavam minha esposa, meu pai e a minha mãe. Eles estavam chorando de felicidade. Eu parecia uma criança que tinha ganhado um doce. Só dava risada"

 

Quando retornou a Chapecó, usava um andador para se movimentar. Depois, voltou ao Ipo e, mais adaptado, recorreu às muletas. Após cerca de duas semanas, só uma delas era necessária para o apoio. Mesmo assim, tinha dificuldades com o tornozelo esquerdo, ainda em recuperação. Não podia ficar de pé por muito tempo que o pé ficava preto. Os médicos o aconselhavam a tirar a sandália ortopédica em casa e calçar tênis, para se adaptar. No início, a dor era excruciante.

 

Aos poucos, foi melhorando. Hoje, Follmann é independente, dirige por Chapecó sem dificuldades. Brinca que vai se aventurar em uma nova carreira no futebol:

 

— Vou tentar me arriscar na linha para ver se tenho alguma habilidade (risos).

 

A luta de Neto para voltar aos campos

Dos quatro sobreviventes, Neto é quem vive em uma espécie de transição e luta para recuperar a vida profissional. À noite, sonha que está em campo. Nos jogos da Chape, senta nas cadeiras da Arena Condá para torcer pelos novos companheiros e se imagina no lugar dos zagueiros.

 

Pergunta a si próprio o que faria em cada lance, como se posicionaria, como enfrentaria o atacante adversário. E acredita no tratamento para se livrar de lesões no joelho, ainda decorrentes da queda do avião.

 

Logo que retornou, ainda muito magro e debilitado, mal conseguia levantar halteres de um quilo em exercícios de fortalecimento. O objetivo principal da fisioterapia era livrá-lo de três lesões no joelho direito (ruptura parcial do tendão patelar, ruptura parcial do ligamento cruzado anterior e do ligamento cruzado posterior).

 

A evolução foi rápida, e logo ele apareceu, ao lado de Alan, para fazer trabalhos no campo. E aí, veio a recaída. O joelho voltou a doer, devolvendo Neto à fisioterapia.

 

Agora, ele tem esperanças de retornar no início de 2018, para fazer a pré-temporada. Mas se tiver de ser submetido a uma cirurgia, a volta será adiada. Religioso, apega-se à fé e ao carinho da família para se recuperar:

 

"Só Deus sabe o quanto eu ainda sofro em alguns momentos. Em casa, sozinho, deitado e sem sono. Vendo vídeos, escutando uma música, chorando."

Antes um pai rígido, o zagueiro conta como o acidente mudou sua relação com os filhos Helan e Helen, gêmeos de 10 anos.

A voz de Chapecó, de pulmões renovados

Para narrar jogos de futebol, é preciso ter pulmões em perfeita ordem. E os de Rafael Henzel saíram da mata do Cerro el Gordo perfurados. Mesmo assim, ele estava convicto: voltaria a trabalhar.

 

O retorno foi dia 9 de janeiro, no estúdio da Rádio Oeste Capital cheio de equipes de reportagem para registrar o momento. Ali, reassumiu as rédeas do "Som e Café News", programa matutino de notícias (ele ainda apresenta um noticiário esportivo no fim das tardes).

 

No dia 21, um momento marcante: narrou Chapecoense 2x2 Palmeiras, o primeiro jogo da equipe após a tragédia.

 

Assim como Neto é mais paciente com os filhos, Rafael tornou-se mais tolerante com a Chapecoense. Entende que é injusto tecer críticas a um clube que teve de se reerguer completamente.

 

Contesta torcedores mais apresssados que querem resultados imediatos e, pior, comparam o atual grupo com o que teve a trajetória interrompida pela queda do avião. Fala em "manter a chama acesa" cada vez que empunha o microfone.

 

"O meu renascimento e o da Chapecoense são paralelos. Sempre falo que eu, dentro da minha limitação, porque não sou narrador, sou só um cara que pego o microfone e vou embora, não vou deixar a chama se apagar, não vou empurrar para baixo. As pessoas batem muito, mas eu sei que a situação do clube é difícil porque a minha vida foi difícil de recomeçar."

A volta de Alan

A noite de 25 de julho foi de expectativa na casa dos Ruschel em Chapecó. Alan estava nervoso, ansioso com o que viria no dia seguinte.

 

O motivo do frio na barriga de um lateral experiente, com passagem por grandes clubes do Brasil, era um jogo-treino da Chapecoense contra o Ypiranga de Erechim.

 

Depois de ficar no banco na primeira etapa, foi chamado pelo auxiliar Emerson Cris. Mesmo com o frio na barriga digno de final de campeonato, foi bem. Alan carimbava, ali, o passaporte para vestir caneleiras e chuteiras no mítico gramado do Camp Nou, em Barcelona. No amistoso, derrota por 5 a 0. Mas pouco importava. Alan, Follmann e Neto foram ovacionados pelo Camp Nou.

 

"Foi um momento ímpar e único na minha vida. Deus me deu tantos presentes que ali foi mais um. Poder chegar perto dos meus ídolos, do cara que é um dos melhores do mundo."

 

De volta à realidade de Chapecó e à rotina de treinos e jogos de um atleta profissional, Alan reuniu-se com comissão técnica e dirigentes e fez um pedido especial. Não queria piedade. O tratamento dado a ele tinha de ser igual ao do restante do grupo.

 

Após boas atuações, chegou a engatar alguns jogos como titular. Depois, perdeu lugar por questões táticas. Suas preocupações passaram a ser velhas conhecidas: a busca por melhora nos treinamentos, a luta pela titularidade. Enfim, coisas do futebol.

O retorno a Medellín

Em maio, Rafael, Neto, Follmann e Alan tinham encontro marcado com uma viagem intensa, em vários momentos dolorosa, mas que foi importante para a cicatrização. Em Medellín, na Recopa Sul-Americana que colocou Chapecoense e Atlético Nacional-COL frente a frente, os sobreviventes foram ao local do acidente e ao hospital para agradecer a médicos, socorristas e ao povo colombiano pelo carinho daqueles dias traumáticos.

 

A ida até o cerro foi pesada. Neto, ao ver o local, foi tomado por dois pensamentos quase antagônicos. Por um lado, ao avistar o aeroporto ali, tão perto, lamentou por ter faltado tão pouco para o avião pousar em segurança. Mas, ao olhar para a mata fechada que denunciava as dificuldades do resgate, sentiu uma vez mais gratidão pelo "milagre" de estar vivo.

 

A reação de Alan Ruschel foi mais visceral. Sentiu uma energia negativa, um "peso". Quando relembrou a visita em conversa com GaúchaZH, abandonou por um momento a face sorridente com que costuma abordar a reconstrução de sua vida. Fechou a cara, antes de dizer, sem rodeios:

 

"Nunca mais quero voltar lá."

 

Para Alan, a viagem valeu pelo reencontro com quem ajudou a salvar sua vida. Neto também tem boas recordações do retorno ao hospital. Lembra que, ainda debilitado, havia prometido voltar e dar uma camisa para cada pessoa que o ajudou. Cumpriu a promessa.

4 vidas em reconstrução

Do grande desafio que era se manter respirando em meio aos escombros, por maiores que fossem as dores, os sobreviventes passaram por um ano a ultrapassar obstáculos que, ao menos na superfície, pareciam pequenos.

 

Entraram em campo em um jogo-treino contra o Ypiranga, como fez Alan. Caminharam apoiados nas barras metálicas para testar a prótese, como fez Follmann. Narraram jogos de pré-temporada na retomada da Chape, como fez Rafael. Levantaram halteres de um quilo que pareciam pesar uma tonelada, como fez um Neto ainda magro e debilitado logo que voltou a Chapecó. E depois escreveram livros, emocionaram o Camp Nou e subiram ao altar para se casar.

 

Fizeram o que os tornou tão especiais na mata fechada do Cerro el Gordo. Viveram.