a mulher que ligou os pontos

Publicado em 04 de março de 2016

Quando o surto de microcefalia explodiu no Brasil, uma médica do interior da Paraíba deu um passo fundamental para esclarecer o mistério sobre as causas da malformação dos bebês. Adriana Melo foi a primeira pesquisadora a comprovar a associação entre o vírus zika e a síndrome que apavora as gestantes. ZH foi a Campina Grande acompanhar a rotina extenuante desta profissional que perde o sono planejando formas de ajudar as mães, paga do próprio bolso exames de pacientes e já é reconhecida como figura chave para entender e combater um mal que se transformou em emergência mundial.

Adriana Melo, médica e pesquisadora

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Marcelo Gonzatto

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Anderson Fetter

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Ticiano Osório

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Diogo Perin

Na manhã seguinte a mais uma noite maldormida, a médica Adriana Melo fecha os olhos por um par de segundos e respira fundo. Pouco depois de gravar depoimentos para duas equipes de TV, desabafa:

– Não sei até quando eu aguento.

Responsável por comprovar pela primeira vez a associação entre o vírus zika e casos de microcefalia, ela vive uma rotina exaustiva no front de combate à doença. Sai para trabalhar às 8h, vai dormir depois das 2h e soma o atendimento em consultório como especialista em medicina fetal às tarefas de pesquisadora independente. A mulher que forneceu uma das pistas mais valiosas sobre os danos encontrados no sistema nervoso de bebês brasileiros tira dinheiro do próprio bolso e utiliza equipamentos de sua clínica privada para investigar a síndrome que desperta preocupação no mundo inteiro. Em 1º de fevereiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu a situação como "emergência pública internacional".

O fato de ser mulher, viver em Campina Grande, no interior paraibano, e não estar vinculada a uma grande universidade brasileira tornou ainda mais tortuoso o caminho de Adriana até o reconhecimento internacional. Desde setembro, quando pousaram sobre sua mesa as primeiras ultrassonografias de fetos com malformações inexplicáveis no crânio, ela foi ignorada por autoridades, questionada por colegas e até ofendida em redes sociais. Ainda hoje, evita ler os comentários das notícias a seu respeito a fim de não deparar mais com desconhecidos tachando-a de “arrogante” ou “alarmista”.

Na noite anterior ao desabafo, a médica demorou a dormir porque tentava desenhar mentalmente um mapa dos centros de apoio necessários para atender à geração de bebês microcéfalos na Paraíba. No meio da madrugada, mesmo sem qualquer garantia de que seu plano será colocado em prática, cogitava quais cidades teriam de contar com um serviço de referência para que nenhuma família precisasse percorrer mais de 50 quilômetros até encontrar especialidades como fisioterapia, neurologia e psicologia. Atualmente, alguns recém-nascidos enfrentam quase 200 quilômetros até Campina Grande, município de 405 mil habitantes onde foi criado um centro de atendimento gratuito, a fim de receber tratamentos capazes de amenizar possíveis consequências da microcefalia, como dificuldades de aprendizagem, locomoção, visão e audição. Como se trata de um novo padrão de doença, ninguém sabe ao certo qual será o nível de comprometimento físico e mental dessas crianças.

Zero Hora acompanhou, por cinco dias, o cotidiano da doutora de 45 anos convertida em celebridade científica após identificar a presença do vírus no líquido amniótico de duas pacientes e, assim, revelar os primeiros indícios concretos da relação entre o zika e a microcefalia. Embora essa vinculação ainda necessite de estudos mais abrangentes para ser esclarecida, a descoberta levou a um reforço na prevenção contra o mosquito Aedes aegypti, que carrega o micro-organismo, e orienta o trabalho de outros pesquisadores em vários países.

A rotina testemunhada nesse período exemplifica o quanto o avanço da ciência no país depende, muitas vezes, da disposição, do improviso e do sacrifício pessoal de pesquisadores. O maior apoio à especialista vem de suas pacientes. A busca de Adriana por novas evidências tem a colaboração decisiva de mulheres cujas gestações foram afetadas pela microcefalia. Elas aceitam se submeter a todo tipo de exame e até a doar órgãos dos filhos mortos para o bem da ciência e de outras mães que ainda sonham em embalar seus bebês.

“Eles também são meus bebês”

Pouco antes do meio-dia de quinta-feira, 11 de fevereiro, Adriana se desdobra na dupla função de médica e investigadora autônoma. Enquanto atende gestantes em sua clínica de medicina fetal, seu marido, o advogado Romero Moreira de Araújo, 51 anos, está no setor administrativo do estabelecimento. Ele telefona para casa e pede que seja preparado um prato com arroz, estrogonofe e batata frita. Alguém buscará a comida para a médica almoçar no consultório.

– Nos últimos meses, ela virou boia-fria. Traz marmita para comer no trabalho ou, às vezes, nem almoça – comenta Araújo.

Na sala de ultrassonografia, toca o telefone celular de Adriana. Ela surge à porta e pede:

– Precisamos conseguir 10 quilos de gelo seco com urgência.

A 2 mil quilômetros dali, no Rio de Janeiro, a neurocientista Patrícia Garcez está embarcando rumo a Campina Grande com uma missão fundamental: deve coletar órgãos de dois bebês com microcefalia mortos logo depois de nascer. No Rio, conservados pelo gelo seco, os tecidos serão examinados em busca da presença do zika – o que pode reforçar a hipótese de correlação entre o vírus e as malformações congênitas demonstrada pela primeira vez em novembro do ano passado.

A vinda da neurocientista para resgatar pessoalmente o material foi uma exigência de Adriana, responsável pela guarda dos órgãos. A médica só aceitou liberá-los mediante garantia de que seriam tratados com o máximo respeito e receberiam prioridade para pesquisa na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e no Instituto D’Or.

– Eles foram confiados a mim pelas mães, minhas pacientes, então também são meus bebês – explica a médica.

Araújo consegue o gelo seco com amigos que têm um laboratório na cidade. Adriana engole rapidamente o almoço, e o casal parte rumo ao aeroporto a fim de recepcionar a neurocientista carioca, levá-la ao hospital onde os órgãos estão armazenados e entregá-los a Patrícia para que a visitante volte ao Rio ainda durante a madrugada. Graças a esse esforço, especialistas localizariam o zika nos cérebros dos dois bebês, em um laboratório da UFRJ, menos de 48 horas após a coleta.

O resultado, que seria anunciado em uma reportagem do Fantástico, no domingo seguinte, 14 de fevereiro, foi obtido graças à cooperação de uma das primeiras mulheres a receber o diagnóstico de zika associada à microcefalia na Paraíba. A moradora da periferia de Juazeirinho, cidade distante 80 quilômetros de Campina Grande, evita o contato com a imprensa e pede para que seu nome não seja divulgado. Ao concordar com a remoção dos órgãos do pequeno Guilherme para pesquisa, explicou que pretendia garantir um significado à morte de seu bebê.

– Meu filho precisa cumprir a missão dele, que é ajudar outras crianças – confidenciou a dona de casa à equipe médica.

Além de concordar com a retirada dos tecidos para estudos, a dona de casa decidiu não vender o enxoval que havia montado com sacrifício para receber o filho. Resolveu doar as roupas para a mãe de outro bebê com microcefalia, Alessandra de Souza Amorim, 34 anos, e seu filho Samuel, de um mês.

O sonho de Alessandra, mãe de quatro meninas, era ter um filho homem. Mesmo quando o pré-natal indicava que gestava outra filha, chegava a comprar roupas de menino na esperança de que fosse um engano. Por fim, fez uma promessa. Se o bebê seguinte fosse do sexo masculino, receberia o nome bíblico. Não contava, porém, que a gravidez coincidiria com o surto de microcefalia. Teve zika com três meses de gestação.

– Tem dias em que eu estou muito, muito cansada. Mas aí olho para o meu filho e isso me dá forças de correr atrás das coisas por ele. Sei que ele não precisa de pena de ninguém, só de amor e carinho – conta Alessandra.

Adriana entrega tecidos de bebês mortos para a neurocientista carioca Patrícia Garcez

O vírus gosta de

 cérebros jovens”

Alessandra, 34 anos, com Samuel, um mês, na Vila Pedregal: "Ele não precisa da pena de ninguém, só de amor e carinho"

Ajornada de Adriana em busca de respostas para dramas como o de Alessandra começou em meados de setembro, quando se avolumaram registros de fetos com a cabeça menor do que o normal. O primeiro caso atendido foi o da filha de uma fisioterapeuta com um professor. A menina, Catarina, havia sido examinada no interior do útero materno com seis e 12 semanas de gestação. Não havia problema aparente. Com 20 semanas, a região central do cerebelo – parte do encéfalo responsável por funções como o equilíbrio e atividades motoras – parecia atrofiada.

Duas semanas depois, quando o casal voltou ao consultório, estava claro que o crânio não se desenvolvia como o esperado. O resultado de outros exames provocou perplexidade: a alteração no cerebelo sugeria um problema genético, mas uma neurossonografia – exame que permite uma visão mais nítida do cérebro – revelou calcificações decorrentes de infecção. Era algo inédito. Nesse momento, a especialista tornou a investigação sobre o novo padrão de microcefalia sua “missão de vida”.

– Pior que ter um filho doente é não saber por que ele é doente – justifica Adriana.

Desafios já eram comuns na vida da médica natural do Crato, no Ceará, e criada em Pocinhos, na Paraíba, distante cerca de 20 quilômetros de Campina Grande. Nascida em uma família humilde de 10 irmãos, dos quais cinco estão vivos, sempre se dedicou com afinco aos estudos. Quando prestou provas para fazer doutorado, foi aprovada pela Universidade Federal de Pernambuco e pela Universidade de Campinas (Unicamp). Resolveu abraçar os dois cursos ao mesmo tempo.

 

Para comparecer à aula semanal na Unicamp, às quartas-feiras, saía de casa às 23h e viajava para João Pessoa, onde pegava um avião às 2h. Desembarcava em Campinas por volta das 6h, assistia às aulas o dia inteiro e retornava à Paraíba às 22h. Enfrentava mais quatro horas de avião e duas de carro antes de voltar para casa e para o trabalho. Nesse período, em 2009, ainda sofreu um dos golpes mais duros de sua vida: a morte de um irmão, o engenheiro Apolônio Melo, aos 41 anos, em um acidente de carro causado por uma carreta desgovernada. Ainda assim, concluiu os cursos simultaneamente.

Com sua determinação colocada à prova mais uma vez naquele outubro de 2015, Adriana começou a fazer conjecturas sobre a origem das malformações no mesmo dia em que examinou a pequena Catarina. Recebeu, por WhatsApp, a notícia de que Pernambuco já registrava pelo menos 60 casos de microcefalia. As gestantes pernambucanas, curiosamente, haviam apresentado manchas vermelhas na pele durante a gestação. Esse era um dos sintomas do zika vírus, que circulava com força no Nordeste e já era cogitado como uma das possíveis explicações para o surto de microcefalia pelo professor da Universidade Federal de Pernambuco Carlos Brito – mas ainda sem evidência científica.

– Como houve uma grande quantidade de gestantes infectadas em um curto intervalo e em diferentes regiões, o vetor só poderia ser carrapato ou mosquito. Como tivemos o auge do surto de zika no começo do ano passado, só poderia ser isso – comenta Carlos Brito.

Além de ficar sabendo das suspeitas do colega pernambucano, Adriana lembrou que, alguns meses antes, a região também havia apresentado um aumento no número de casos de Guillain-Barré – síndrome neurológica associada ao zika. “O vírus gosta de atacar o sistema nervoso”, cogitou. Um segundo pensamento lhe convenceu, antes mesmo de qualquer exame, da vinculação entre o micro-organismo e as malformações nos fetos. Como não vinham sendo registradas complicações entre idosos, a nova conclusão lhe provocou arrepios: “O vírus gosta de cérebros jovens”. Ligou para sua paciente e perguntou se ela havia sofrido sintomas da zika como manchas avermelhadas na pele nos primeiros meses da gestação.

– Sim – foi a resposta.

Adriana faz ultrassonografia em Adilma

É zika”, ouviu ao telefone

Catarina, a filha da primeira paciente de Adriana com danos associados ao zika, sobreviveu. Mas a gravidade e a variedade de complicações em outros casos aumentaram o nível de alarme da especialista e a fazem propor a substituição do termo microcefalia por uma denominação mais abrangente: zika congênita. Em alguns fetos, por exemplo, o perímetro da cabeça não é tão reduzido, mas estruturas internas chamadas ventrículos cerebrais se dilatam tanto que atrofiam outras áreas do cérebro. A maior parte do espaço é ocupada por líquido. Em um caso, não era possível sequer identificar a presença do cérebro em exames mais superficiais.

Também foram registradas deformações graves nas pernas e nos braços dos bebês, denominadas de artrogripose. Esse cenário acelerou ainda mais a busca por respostas entre outubro e novembro do ano passado. A atitude seguinte da médica da Paraíba foi entrar em contato com colegas de diferentes Estados para saber se alguém já havia solicitado exames do líquido amniótico de gestantes com fetos problemáticos a fim de confirmar a hipótese de infecção viral. Ninguém havia tomado a iniciativa. Adriana não se conformou e começou a investigar que instituição no Brasil teria capacidade técnica de identificar o vírus do mosquito em amostras que ela coletaria das pacientes em sua clínica – procedimento bancado pela médica que chega a custar ao redor de R$ 1 mil na rede particular. Ela pagaria esse exame para pelo menos 15 gestantes até meados de fevereiro. Também financiaria ultrassonografias avaliadas em pouco mais de R$ 300 cada uma.

– A prefeitura disse que me reembolsaria, mas eu fico com vergonha, porque é um município pobre – sustenta.

Enquanto isso, Adriana tentava chamar a atenção do governo paraibano – sem sucesso – para a possível vinculação entre zika e os danos cerebrais. Quando conseguiu organizar uma reunião com outros médicos e autoridades de saúde de Campina Grande, em meados de outubro, adotou uma estratégia sorrateira: em segredo, convocou a imprensa. Assim, ao final do encontro, os participantes foram surpreendidos por repórteres querendo saber que relação havia entre o novo vírus e os casos de fetos malformados. A história começava a atrair atenção pública.

O maior avanço ocorreu quando a especialista soube que a Fiocruz teria capacidade de fazer o exame no líquido amniótico. Depois de enviar um e-mail para a instituição localizada no Rio, recebeu uma ligação de lá no dia 5 de novembro – coincidentemente, seu aniversário. Ficou duas horas ao telefone enquanto os convidados da festa se perguntavam onde estava a aniversariante. Nos dias seguintes, dois meses após os primeiros relatos da doença misteriosa, os fatos finalmente começaram a se desenrolar com rapidez.

10 de novembro: coletou líquido amniótico de duas gestantes com fetos microcéfalos.

11 de novembro: enviou, com seu próprio dinheiro, as amostras para a Fiocruz.

13 de novembro: durante um encontro científico em São Paulo, apresentou exames para o especialista uruguaio radicado em Israel Gustavo Malinger. Convenceu o governo da Paraíba a pagar passagem aérea para as duas pacientes viajarem à capital paulista a fim de fazer mais exames. Malinger confirmou que era um padrão novo de doença.

16 de novembro: recebeu um telefonema da Fiocruz com o resultado dos testes no líquido amniótico. “É zika”, ouviu, em um informe ainda confidencial. No dia seguinte, o ministro da Saúde, Marcelo Castro, foi aos meios de comunicação anunciar oficialmente a associação entre o vírus e os casos de microcefalia. Adriana Melo ganhava um respaldo significativo para sua luta – e sua rotina se tornaria ainda mais atribulada.

Ianka Mikaelle, 18 anos, com Sophia, 13 dias, no Hospital Municipal Pedro I: "É um alívio saber que não estou sozinha"

“Zika de novo, mãe?", a filha reclamou

Adriana divide seu tempo entre as pacientes de sua clínica particular, as gestantes do SUS que atende na maternidade Elpídio de Almeida e, toda sexta-feira, as grávidas com histórico de zika que se dirigem à clínica-escola da Faculdade de Ciências Médicas de Campina Grande para triagem de possíveis novos casos de microcefalia. Além disso, escreve artigos, participa de reuniões e congressos, envia e recebe mensagens de áudio via WhatsApp para trocar informações com outros pesquisadores.

Seguidamente, quando consegue tempo para sentar à mesa com a família, ouve reclamações da filha ou das duas sobrinhas que vivem com ela, desgostosas com a dedicação obsessiva ao trabalho:

– Zika de novo, mãe?

O aplicativo WhatsApp tem papel de destaque nesse esforço de tentar desvendar o mecanismo pelo qual o zika supostamente age. Mesmo tarde da noite, o celular de Adriana anuncia a chegada de novas mensagens de voz de colegas fazendo perguntas ou anunciando eventuais avanços. No banco de trás do carro dirigido por seu marido, no começo da noite de 13 de fevereiro, um sábado, ela tira o celular do bolso, ouve mais um recado e responde também por mensagem de voz. Coloca o telefone de volta no bolso.

– É o Amílcar... Como trabalha, acho que nem deve dormir. Está online desde a manhã até de madrugada – afirma, em referência ao virologista Amílcar Tanuri, da UFRJ.

 

O aplicativo também foi fundamental na descoberta de que o surto deflagrado em março do ano passado do Nordeste era, na verdade, zika e não chikungunya. Em março de 2015, em uma troca de mensagens a respeito de novos sintomas que lembravam a “velha chikungunya”, mas com “pouca febre e dor menos intensa”, o pesquisador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Kleber Luz alertou os colegas. Digitou: “Aqui temos epidemia de doença exantemática (com erupção cutânea)...acho q é zika”, “Isso deve ser Zika vírus” e “Aqui tá todo mundo doente...vai ter que dar (nos exames) zika vírus”. A pista enviada por celular foi seguida, e confirmou-se a suspeita.

O micro-organismo completava, assim, uma longa viagem desde a África até o nordeste brasileiro. Foi identificado pela primeira vez em Uganda em 1947, em uma floresta chamada Zika, de lá migrou para a Ásia nos anos 1970 e, em 2007, provocou um surto na Micronésia. Outro surto foi registrado em 2013 na Polinésia Francesa – onde também foram observados aumentos em casos de Guillain-Barré e microcefalia – e em um punhado de ilhas do Pacífico como Nova Caledônia e Ilhas Cook antes de aportar em terras brasileiras. Adriana e Kleber Luz cogitam que o vírus tenha chegado durante a Copa do Mundo de 2014, quando milhares de estrangeiros visitaram o país.

– Como é um período com menos mosquitos no Nordeste, pode ter circulado de forma mais restrita e se espalhado depois – avalia Kleber Luz.

Outra teoria argumenta que nenhuma seleção de países afetados competiu em 2014. Um artigo publicado na revista Emerging Infectuous Deseases aponta que, em agosto de 2014, representantes de lugares como Polinésia Francesa, Ilhas Cook e Nova Caledônia – todos com histórico de surtos – participaram de uma competição de canoagem no Rio de Janeiro. Pode ter sido essa a porta para o micro-organismo. Não há, até o momento, certeza de como ou quando ocorreu a primeira infecção em solo brasileiro, e talvez isso jamais seja esclarecido.

Miriam, 25 anos, com Lucas Gabriel, quatro meses, à espera da fisioterapia no Pedro I

LINHA DO TEMPO

“O larvicida foi a primeira hipótese”

Ahipótese sobre a chegada do vírus preocupa Adriana bem menos do que as sucessivas teorias conspiratórias a respeito das causas da microcefalia. Ela admite que são necessários estudos mais completos para provar de vez a correlação entre zika e os danos neurológicos, mas afirma que era necessário divulgar os primeiros achados a fim de estimular a prevenção.

– Essa descoberta foi apenas o passo inicial, que pode ser confirmado ou negado por estudos mais aprofundados. Mas não poderíamos esperar um ano para ter essas respostas. Se a razão é o zika, como eu acho, tínhamos de tomar medidas de prevenção. Imagina como eu iria me sentir se tivesse essa resposta e não tivesse dito nada para as gestantes? Na pior das hipóteses, teremos contribuído para combater um mosquito que provoca outras doenças – raciocina.

Adriana não segura uma risada quando ouve falar que a síndrome dos bebês seria provocada por um larvicida colocado na água, por um suposto lote de vacina ou outra teoria sem indício científico.

– O larvicida foi minha primeira hipótese, já que, realmente, o Brasil começou a usar um tipo novo. Mas também foi a primeira que eu descartei. Basta seguir o caminho do mosquito para ver que não há relação, já que surgiram casos de microcefalia em lugares onde esse larvicida não é usado, como na Polinésia Francesa. Mas as pessoas parecem acreditar mais facilmente nas histórias mais descabidas – critica.

Mas por que até agora não houve um surto de microcefalia na Colômbia, onde o zika também circula (o primeiro caso foi registrado no último dia 24)? Para Adriana e Carlos Brito, pode não ter passado ainda o tempo necessário. Brito sustenta que há três fases até nascerem os primeiros bebês com malformações:

1. O surto de zika atinge seu auge.

2. Aparecem complicações neurológicas em adultos, como a Síndrome de Guillain-Barré.

3. Fetos expostos ao vírus no primeiro trimestre da gestação desenvolvem danos no sistema nervoso.

Pode levar cerca de cinco meses desde o auge do surto até a terceira fase, segundo o especialista. A neurocientista Patrícia Garcez acrescenta que a microcefalia poderia ser desencadeada pela combinação do vírus com algum fator ainda desconhecido. Portanto, é fundamental seguir pesquisando.

Enquanto isso, Adriana diz que às vezes é chamada de “arrogante” ou “alarmista” por defender a relação da microcefalia com o zika. Também foi hostilizada por ousar desafiar o protocolo do Ministério da Saúde que previa a investigação da síndrome somente após o nascimento do bebê. A médica da Paraíba dizia ser fundamental diagnosticar o problema ainda no útero a fim de monitorar o avanço da doença, estimar que estrutura será necessária para atender os bebês e preparar as mães para os desafios futuros. Um colega a questionou de forma grosseira:

– Quem você pensa que é?

– Ué, eu sou a Adriana Melo – foi a resposta.

No final do ano passado, o governo brasileiro alterou seu protocolo e passou a recomendar a investigação da microcefalia por meio das ultrassonografias do pré-natal. A resistência da médica a intimidações tem origem na infância: no ensino primário, no colégio Padre Galvão, em Pocinhos, era vítima de bullying devido à magreza. Chegava a apanhar de outras alunas. Como resposta, passou a ensinar matemática para as colegas, já que tinha facilidade com a matéria. Subia em um banquinho para alcançar o quadro-negro e rabiscava números e cálculos. Com a ajuda do giz e do estudo, superou a violência.

 

“Na falta do que dizer, eu abraço”

Omaior desafio para Adriana Melo não são as críticas e intimidações, mas dar a notícia que nenhuma mãe gostaria de ouvir. Ela conta que optou pela obstetrícia justamente por não gostar da ideia da morte e ter uma certa aversão a sangue. Assim, esperava que sua rotina fosse dedicada, na maior parte do tempo, a trazer à luz bebês saudáveis.

Lançada ao epicentro do surto de microcefalia, toda sexta-feira enfrenta o medo de deparar com novos casos de dano cerebral ao prestar atendimento a grávidas com histórico de zika na sala 99 da clínica-escola da Faculdade de Ciências Médicas.

No dia 12 de fevereiro, a confirmação do diagnóstico de malformação é bem recebida pela gestante Adilma de Oliveira. Adriana circula o sensor do ultrassom sobre a barriga de oito meses da moradora do Congo, distante 140 km de Campina Grande, e dá o veredito:

– Tem microcefalia, mas as alterações são discretas.

Adilma, que já havia encontrado os primeiros sinais da síndrome em um exame anterior, agradece:

– Graças a Deus não é grave. Espero que seja bonito como o pai.

O menino Luiz Felipe deverá ser atendido, toda semana, no centro de apoio aos bebês com microcefalia do Hospital Municipal Pedro I. Lá, mulheres que já deram à luz, como Ianka Mikaelle, 18 anos, correm contra o tempo a fim de amenizar, graças a serviços como fisioterapia, os efeitos das deformações neurológicas sobre seus filhos.

– Os primeiros dois anos de vida são fundamentais para essas crianças receberem estímulos e contarem com uma qualidade de vida melhor no futuro – explica a diretora do hospital, a neurocirurgiã Alba Gean Batista.

Ianka, que já tem outro filho com um ano e nove meses, trouxe a recém-nascida Sophia para a consulta inicial que antecede o início do tratamento. Ao perceber que há outras mães com bebês afetados pela síndrome no local, diz que se sente menos nervosa:

– É um alívio saber que não estou sozinha.

No andar de cima do hospital, onde fica a sala de fisioterapia, Miriam Araújo, 25 anos, aguarda atendimento com o filho Lucas Gabriel, de quatro meses. Corta suas unhas, passa a mão sobre a cabeça pequena e penteia seu cabelo.

– Ele deverá ter dificuldade para andar, falar, talvez aprenda mais devagar do que outras crianças. Mas é um bebê tranquilo e se alimenta bem – consola-se Miriam. – Com o tratamento, espero que ele supere dificuldades.

Em meio à correria entre sua clínica e o trabalho no SUS, entre coletas de exames, discussões técnicas e a vida familiar, Adriana Melo também se dedica a uma ONG familiar destinada a atender idosos de Pocinhos – o município onde cresceu e, quatro anos atrás, chegou a assumir o posto de secretária da Saúde. A experiência, como costuma ocorrer com técnicos alheios ao jogo político que ocupam cargos públicos, terminou em desencanto e frustração. Deixou a cadeira após um ano e meio prometendo a si mesma e à família que jamais repetiria a experiência.

 

O  Instituto Engenheiro Apolonio Sérgio de Oliveira Melo (nome do irmão morto em 2009) oferece atividades recreativas, exercícios e atendimento médico e odontológico gratuitamente. No mesmo sábado em que se mostrava cansada e desanimada, sem saber até quando aguentaria a rotina dos últimos meses, a médica ruma com o marido, a filha e as duas sobrinhas para o município vizinho a fim de prestigiar a festa de Carnaval dos velhinhos. Lá, é abraçada pelos idosos e dança frevo com eles até ser vencida pelo cansaço.

Volta para Campina, já pela noite, trocando mensagens pelo celular com colegas pesquisadores. Em casa, tem outra tarefa urgente para dar conta nos dois dias seguintes: escrever um artigo sobre os casos de microcefalia na Paraíba que será apresentado em um congresso da Sociedade Internacional de Ultrassom em Obstetrícia e Ginecologia, nos Estados Unidos. A especialista gostaria de apresentar mais respostas do que dispõe no momento, principalmente para suas pacientes.

– É muito difícil você dizer para uma mãe que o bebê dela tem um problema, mas você não sabe exatamente o que vai acontecer com ele. Na falta do que dizer, eu abraço, eu seguro a mão. É o que me resta a fazer como médica. Apoiar.

No começo da madrugada de terça-feira, 16 de fevereiro, Adriana entra no carro para percorrer os 130 quilômetros até o aeroporto de João Pessoa, onde embarcará para Miami. Confere celular, passagem, passaporte. Recosta a cabeça no banco traseiro e, pela primeira vez em muito tempo, fecha os olhos e descansa.

No carnaval, Adriana achou um tempinho para confraternizar com idosos na ONG da família

Adriana confere anotações antes de embarcar para congresso nos EUA