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O ADEUS A

Paulo Sant'Ana

TEXTO

Moisés Mendes, Especial

Sobrevivem, para que sejam interpretadas ao gosto de cada um, as frases no cartaz colado em um canto da sala de Editoria de Opinião, bem acima da única poltrona reclinável da Redação de Zero Hora.

O cartaz sobre a cadeira de uso exclusivo de Francisco Paulo Sant'Ana diz o seguinte:

"Se eu estiver dormindo, me deixe dormir. Se eu estiver morto, me acorde".

As frases não são do dono da cadeira, mas do grande cronista pernambucano-carioca Antônio Maria, que ele admirava. Brincam com duas das obsessões de Sant'Ana, o sono e a morte. Pois, na noite desta quarta-feira (19), Sant'Ana deixou de fingir que dorme, como fazia quase todas as tardes, por alguns minutos, nos últimos anos.

O cronista que não conseguia tirar um sono à noite e sesteava de dia na cadeira do jornal desistiu de ser acordado. Morreu aos 78 anos o homem que sustentava uma dúzia de Sant'Anas e seus derivados, alguns deles palhaços e debochados, outros cerebrais ou líricos, muitos deles melancólicos e até irascíveis e outros tantos depressivos, que ele arrastava como correntes.

Em 11 de fevereiro de 2013, havia escrito: "Do sono até a morte, o passo é pequeno. A natureza pode ter criado o sono para treinar as pessoas para a morte".

Morreu o sujeito que assumiu como missão divertir, instigar, perturbar, afrontar e fazer chorar, às vezes tudo ao mesmo tempo, com a versatilidade rara das figuras de exceção. Um dos maiores fenômenos da comunicação gaúcha em todos os tempos, Sant'Ana vinha conquistando sobrevidas a uma sequência de doenças que ele enfrentava com valentia e até com um certo desprezo.

O cronista - como gostava de ser reconhecido - foi despedindo-se de cada um dos seus muitos Sant'Anas com a inconformidade de quem vai perdendo pedaços das suas identidades. O Chico, o Paulo, o Pablo, o Pablito e outros que davam forma a tantas variações da sua personalidade e das suas performances foram aos poucos saindo da TV, do rádio, do jornal e da internet. Cada um deles foi perdendo força física para manter o ritmo mental do Sant'Ana múltiplo e vigoroso dos melhores tempos.

Os melhores tempos de Sant'Ana foram longos, do início dos anos 1970 até o começo do século 21. Não há exemplo no Brasil de tal longevidade na comunicação.

- Eu sou único, talvez no mundo - repetia, sem se preocupar com o autoelogio, até porque nunca foi contagiado pelo defeito da modéstia.

Os inúmeros começos de Sant'Ana

Sant'Ana sentia-se grande o suficiente para se autoproclamar megalomaníaco. As mais de quatro décadas de sucesso como comunicador não têm apenas um começo. Em 1971, como servidor da polícia, ele costumava frequentar as redações de Porto Alegre como torcedor do Grêmio.

Conversava com os repórteres da área policial. Estava voltando de um período de quatro anos como escrivão em Tapes. Foi assim que se aproximou de jornalistas da área de esportes, como Batista Filho, e virou debatedor do programa de futebol Conversa de Arquibancada, da TV Piratini.

Impressionava pela eloquência, pelo raciocínio rápido e pelo gremismo exagerado, que já manifestava à beira do campo no Olímpico. Foi seu primeiro começo.

Quase ao mesmo tempo, o editor de Polícia de ZH, José Antônio Ribeiro, o Gaguinho, o convidou para ser repórter do jornal. Foi um fracasso. Mas o mesmo jornalista o apresentou, por volta de outubro de 1971, a Cândido Norberto, que o recebeu para uma participação eventual no recém-criado Sala de Redação. Cândido, um dos mitos da geração de ouro do rádio gaúcho, ficou surpreso com a inventividade e o gestual do rapaz de 32 anos. Surgia o que seria então o mito Paulo Sant'Ana.

Um mês e meio depois da participação no Sala - que se tornaria permanente -, Sant'Ana estreou, a convite de Lauro Schirmer, diretor de Redação de ZH, sua coluna no jornal. Foi no dia 16 de novembro de 1971. Escrevia sobre futebol e quase sempre sobre o Grêmio. Em 1989, transferiu-se para a penúltima página, para o espaço em que brilhara o humorista Carlos Nobre.

Já consagrado, Sant'Ana saboreava seus recordes a todo momento. Escrevi tantas mil colunas na Zero. Fiz tantos mil comentários na Rádio Gaúcha. Tenho mil e não sei quantas aparições no Jornal do Almoço. Em todas as mídias, inaugurou um estilo. Podem dizer que ele escrevia - como 99% dos que pretendem ser cronista - inspirado na forma e nas manhas de Nelson Rodrigues.

Era abusado, não perdia a piada, tratava de intimidades como se falasse de coisas banais. Mas não havia, no rádio e na TV, ninguém que pudesse ser reconhecido como sua referência. Pregava:

- Eu não posso me repetir dizendo o que todo mundo diz.

Muitas vezes, ultrapassava todos os limites do que seria admissível. Manifestava-se com frequência como politicamente incorreto. Mas, no que tinha de essencial, era um lírico, um boêmio, um apaixonado por samba e tango e um viciado em nicotina que espalhava a fumaça do cigarro Charm até dentro de quartos de hospital.

O Paulo quando ainda era Chico

Sant'Ana seria, na definição de muitos que o rodeavam, um atrevido camuflado num carente assumido. Perdeu a mãe, Nair, aos dois anos. Lamentava que não tinha nenhuma lembrança da convivência com ela. Mas se recordava do carinho da madrasta, a Zica, que se casou com Cirilo, o pai, tenente da Brigada Militar, carcereiro do antigo presídio de Porto Alegre, ao lado do Gasômetro.

Adorava Zica e tinha lembranças terríveis do pai, que o espancava a tapas no rosto até vê-lo sangrar pelo nariz, por qualquer motivo. Às vezes, descrevia o pai como um herói, soldado da Revolução de 30, com sua farda parda, o talabarte (cinto com presilha atravessado no peito), onde carregava uma espada, e a postura imponente de militar.

- Me lembro tirando as botas dele. Eu puxava a bota e caía de costas.

Outras tantas vezes, o que lhe vem é a lembrança do pai violento e cruel:

- Também me lembro dele me mandando nu para dormir no sótão da casa com os ratos, como castigo. Não lembro por quê. Eu tinha uns 10 anos. Meu pai ficou conhecido como o Touro Hosco. Bebia cachaça e ficava louco. Ele queria que eu fosse um pária, mas eu me transformei no Paulo Sant'Ana.

Em 19 de janeiro de 2012, escreveu uma crônica em que definia Cirilo:

- Meu pai foi meu carcereiro implacável.

Sant'Ana nasceu no dia 15 de junho de 1939, quando a família morava na Rua João Alfredo. Depois, mudaram-se para a Chácara das Bananeiras, no Partenon. José Carlos é o primogênito de Cirilo e Nair. Depois, vieram Sant'Ana e Cirilo Filho. Os outros irmãos são filhos de Zica: Terezinha Maria, Rosa Maria e Flávio Roberto. O irmão Cirilo morreu, já adulto, de câncer de pulmão.

No Partenon, dos nove aos 14, Chico, o jornaleiro, ajudou nas missas como coroinha da Igreja Santo Antônio.

- Eu queria poder dizer ao padre que não me colocasse de joelhos, de costas para as pessoas. Ficava com vergonha quando meus sapatos estavam furados.

No sótão em que cumpria pena nu, para não fugir de casa, também encontrava os pombos que vendia para despachos em encruzilhadas. Enfiava os pombos num saco de estopa e ia para o Centro de ônibus. Abastecia um comprador do Mercado Público. Tinha em torno de 10 anos. Gastava parte do dinheiro que ganhava comprando garrafas de Malzbier.

- Meu pai dizia: tu trabalha um dia todo para comprar uma cerveja. Eu nunca gostei muito de beber, mas ele não sabia o prazer daquilo.

Na infância, sempre foi Francisco. Passou a ser conhecido como Paulo quando virou jornalista. Quem trocou o Chico pelo Paulo? Ele não sabia dizer. Em 1980, formou-se em Direito e passou em concurso para delegado. Escrevia para o jornal, fazia comentários na rádio e na TV e trabalhava como policial, num tempo em que o jornalismo não exigia exclusividade - e até porque era um palpiteiro avulso, e não um repórter de Redação.

O olhar perspicaz do cotidiano

Afama o transformou cedo em figura popular, a partir dos anos 70. Desfilava em um conversível MP Lafer dourado. Frequentava a noite, cantava em bares, compartilhava a boemia com Lupicínio Rodrigues.

O guri pobre do Partenon, o adolescente que limpava o chão da fábrica de fogões Geral e o feirante que acordava de madrugada para vender verduras era agora uma celebridade. Começava a fazer parte de um time de craques consagrados ou em ascensão - Cândido Norberto, Ruy Carlos Ostermann, Cid Pinheiro Cabral, Lauro Quadros, Armindo Ranzolin, Mendes Ribeiro, Ibsen Pinheiro, Oswaldo Rolla, Lasier Martins, João Carlos Belmonte.

Nos anos 90, deu uma guinada como cronista, por sugestão de Lauro Schirmer, e passou a se dedicar a generalidades. Transformava-se em observador do cotidiano. Defendia causas. Recebia cartas, atendia telefonemas com os mais estranhos pedidos. Como o da mulher que o procura no fumódromo do jornal e pergunta:

- Posso falar com você aqui?

- Sim, aqui é o meu escritório - diz ele.

E a mulher passa a explicar que há anos briga por uma indenização por causa de um implante de silicone malsucedido. Conta que o advogado sumiu. O cronista promete ajudá-la.

Outros tinham ajuda pela metade. Em janeiro de 2008, uma telefonista da Redação ouviu o pedido do comerciante Paulo Afonso Rodino, de Porto Alegre.

O homem queria apertar a mão de Sant'Ana antes de uma angioplastia, no Instituto de Cardiologia. Informado, ligou para o comerciante. Disse que não poderia ir ao hospital, mas acalmou o homem cantando ao telefone:

- O senhor quer saber como será sua cirurgia? Escute então: a cigana leu o meu destino... e vai chegando o amanhecer, e o realejo diz que eu serei feliz.

Outro leitor enviou e-mail dispondo-se a pagar R$ 300 por uma hora de conversa. Leitoras o pediam em casamento. Convidavam para patrono de feiras do livro. Para palestras. Para aniversário de crianças .

Foi tema de desfile de escola de samba. Recebia doces, pães, queijos, frutas, carnes. Sentava-se na poltrona e injetava insulina na barriga para calibrar a glicemia e, logo em seguida, comia duas rapaduras grandes de doce de leite. Devorava dois mil-folhas com Coca-Cola, sempre com a ressalva de que bebia refrigerante zero.

Atravessava a cidade para comer qualquer coisa - uma massa, uma empada, um pastel, que considerava especiais, ou por causa do lugar, ou só como pretexto para circular. Participava de uma confraria em que profissionais das mais diversas áreas - muitos dos quais médicos - se reuniam, segundo ele, para rir sempre das mesmas histórias e das mesmas piadas.

- Nada é mais surpreendente do que uma piada velha.

Suas crônicas, sobre qualquer assunto, das filas no SUS à experiência com o Viagra, estão coladas nas paredes de cozinhas, emolduradas em salas, escritórios. Professoras estudam seus textos em sala de aula.

Os duelos de um homem bom de briga

Sant'Ana inspirava e emocionava os leitores e acionava o respeito das autoridades e dos políticos. Gostava de ser bajulado. Nas eleições de 2008 à prefeitura de Porto Alegre escreveu que seu coração balançava entre três mulheres – as candidatas Maria do Rosário, Luciana Genro e Manuela D'Ávila. Luciana telefonou:

– Sant'Ana, eu quero conquistar teu coração.

Desconcertou a candidata com a resposta:

– Pois agora tu tens que conquistar a minha mente.

A agilidade de raciocínio perturbava. Preferia enfrentamentos cerebrais com as mulheres, porque as considerava mais ágeis e astutas do que os homens. Num desses duelos, em dezembro de 2006, com a jornalista e amiga Milena Fischer, no fumódromo de tantos embates, rendeu-se a uma resposta dura dela e desatou num choro:

– Eu gosto de ti – dizia.

No outro dia, estavam às gargalhadas. Brigava, e muito, com Ostermann, Kenny Braga, Wianey Carlet e David Coimbra, no Sala de Redação. Ficavam dias de mal e, de repente, voltavam a conversar como se nada tivesse acontecido. Certa vez, disse no Sala, sobre as desavenças, dirigindo-se a quem duvidava da veracidade do que acontecia:

– Aqui todas as brigas são reais. Fingidas são as reconciliações.

Atribuía os duelos com impropérios às oscilações de humor da bipolaridade. Por algum tempo, aplacou a instabilidade e a depressão com os remédios. Apaixonava-se pelos psiquiatras, trocava um pelo outro, não parava muito tempo no mesmo divã. Uma tarde, estático diante do computador, sem disposição para iniciar o texto, reclamou em voz alta, como se falasse com um deles:

– Aí está o que vocês queriam. Me mandaram tomar remédio e eu estou aqui que é um plasta. Vou levar oito horas para escrever a coluna.

Quando a bipolaridade o levava a surtos de euforia e criação, em meia hora o texto estava pronto. Comemorava sempre os bons resultados de uma ideia e extravasava a alegria. Feliz, era capaz de olhar uma mulher que nunca havia visto e declamar em voz alta o trecho de um poema, como fez um dia diante da estagiária que entrara na sala:

– Mulher celeste, oh! anjo de primores! Quem pode ver-te, sem querer amar-te? Quem pode amar-te, sem morrer de amores?

E esclarecia:

– É de Maciel Monteiro, o Barão de Itamaracá.

As bengalas de um amante da poesia

Sabia de cor poemas e sambas. Recitava Augusto dos Anjos, seu poeta preferido. Reproduzia na vida o que os poetas simbolistas cantavam. Amores perdidos, desesperanças, doenças. Adoecia, dizia, para poder ir ao médico. Voltava alegre das consultas. Tomava 20 remédios diários.

Sofria de tontura inexplicável, o que o levou a usar bengala nos últimos anos. Tinha inflamação crônica nos ouvidos, operados várias vezes. Bursite no ombro. Diabetes tipo 2, diagnosticada no início dos anos 90. Temia a cegueira pelo glaucoma. Estava quase surdo. Por quatro vezes, extraiu nódulos benignos do pescoço. Teve dois cânceres, na rinofaringe, em 2011, e no intestino, em 2014. Em julho de 2015, extraiu um nódulo benigno do pulmão. Um mês depois, fez mais uma cirurgia, na próstata.

Dava a entender, com ironias faladas e escritas, que curtia ser doente. Em novembro de 2007, desmaiou no restaurante da sede da RBS e saiu em cadeira de rodas. Achou que iria morrer e chorou muito ao entrar na ambulância. Havia sido apenas mais uma tontura. Voltou pouco depois, em estado de euforia:

- Morri durante 10 minutos.

Zombava até do câncer que o levou à radioterapia e que por meio ano eliminou seu paladar. Em março de 2011, o repórter fotográfico Anderson Fetter o convidou para gravar um vídeo em que contaria mentiras do 1º de abril. Disse:

- Não posso, eu não estou bem, eu tenho câncer.

O rapaz foi embora, constrangido. E ele:

- Essa palavra, câncer, enxota as pessoas.

O que mais o atormentava não era uma doença em especial, mas uma sequela. A paralisia facial decorrente de uma cirurgia no ouvido, que deveria eliminar a inflamação e cortou um nervo do rosto, em 1976. O rosto torto o traumatizara. Um dia, o fotógrafo Fernando Gomes, encarregado de retratá-lo, pediu que ele sorrisse. A resposta:

- Como vou rir, se tenho a boca torta?

O canto direito não acompanhava os comandos para que sorrisse. A boca ficava em diagonal. Atordoado com o defeito, entrou em depressão e quase desistiu de fazer TV. O cirurgião Ivo Pitanguy reparou parte do dano.

A artesã Sueli Bernardi Rossi, gaúcha que mora em Joinville, sabe bem disso. No início dos anos 60, foi colega de feira de Paulo Sant'Ana, que trabalhou como ajudante dos 19 aos 24 anos. Nesse período, abandonou os estudos só para trabalhar, o que o levou a concluir o Ensino Médio aos 26 anos:

- Eu era homem feito no meio de guris na aula.

Armavam-se as barracas da feira, na Cidade Baixa, no Bom Fim e no Alto da Bronze durante a madrugada. Sueli conta que Sant'Ana chegava cantando. Cantarolava sambas. Contagiava pela energia.

Quando veio visitá-lo na Redação, em 2008, Sueli o abraçou com força. Ele sorriu, mas se retraiu, encaramujado. Não estava mais diante do mesmo Sant'Ana cantador. Não gostava de abraços. Não apertava a mão de ninguém - dirigia a mão fechada a quem o saudava e encostava o punho na mão do outro, como fazem crianças e adolescentes.

A paixão tricolor

Sant'Ana casou-se duas vezes. Com Ieda, teve os filhos Jorge, 48 anos, e Fernanda, 46, que lhe deram os netos Lucas, Gabriel e Pedro. Depois, casou-se

com Inajara, mãe de Ana Paula, 27. Inajara foi rainha do Carnaval de Porto Alegre e era filha do autor do hino do Internacional, Nelson Silva. Dizia que se sustentava em parte com os direitos de execução do hino do adversário.

Apesar da radicalidade como tricolor, nunca foi um gremista intolerante. O Grêmio merecia os adjetivos que podia repetir em comentários de outras áreas. Uma vez por dia, pelo menos, dizia:

- É impressionante, é fantástico.

Mas não usava bordões, nem no rádio, nem na TV. Improvisava tudo. Escrevia a crônica para ZH em no máximo uma hora. Muitas vezes erguia-se da cadeira gritando:

- Perdi tudo.

E escrevia tudo de novo. Perdia textos, perdia alguns amigos em brigas por banalidades e perdia dinheiro em jogos. Tinha preferência pela maquininha, o caça-níqueis. Gostava do barulho das moedas e da alavanca, sempre à espera do som mais desejado - o que anunciava combinações ganhadoras.

Há 20 anos, no cassino do Conrad Hotel, em Punta del Este, ouviu o barulho como nunca mais ouviria. A máquina acusou que a sorte era grande. Começaram a girar figuras hipnotizantes na tela e ele a contar o prêmio: US$ 2 mil... US$ 10 mil... US$ 14 mil.... US$ 22 mil, e Sant'Ana aos berros. Quando estava em US$ 40 mil, e a máquina parou de contar, saiu correndo pelos corredores do cassino e foi chamar Inajara, que estava em outra ala.

- Ganhei, ganhei, vem ver - ele gritava.

Voltaram correndo. Quando chegaram ao lado da máquina, as figuras continuavam girando, e o registro do prêmio não parava: US$ 45 mil... US$ 60 mil.... e assim foi até estacionar em US$ 80 mil.

Voltou para Porto Alegre em êxtase. Passou a frequentar o cassino com regularidade, sem deixar de ir também às casas de jogos da Capital. Perdia aqui e no Uruguai. Voltava de Punta desolado:

- Levei um talagaço. Nunca mais.

Mas retornava. E perdia. No dia 17 de março de 2011, uma quinta-feira, entrou na sala da editoria de Opinião do jornal e anunciou:

- Estou retornando agora do doutor Nédio Steffen. Tenho um câncer na rinofaringe.

E logo depois completou:

- Amanhã vou para Punta.

E foi muitas vezes depois. Com a proibição dos bingos no Brasil, passou a jogar mais nos cavalinhos, as apostas de corridas internacionais transmitidas pela TV em uma casa da Capital. O jogo era a única área em que se considerava sem sorte.

Os afetos de um amigo

Achava que sua vida profissional havia sido construída também por casualidades mágicas. Como a que aconteceu no final dos anos 70, quando havia trocado a RBS pela TV Difusora. Andava abatido, sabia que não tinha a mesma audiência e que perdia prestígio e admiradores.

Um dia, caminhando pela Rua da Praia, arrependido com a troca que o deprimia, encontrou-se com Maurício Sirotsky Sobrinho. Admiravam-se mutuamente, mas estavam afastados pela decisão de Sant'Ana.

O comandante da RBS, sempre assertivo e envolvente, disse que iria comprar um casaco de couro. O ex-empregado o acompanhou, meio sem jeito, e Maurício o provocou, dentro da loja:

- Escolhe o teu casaco também. E, se quiseres, aparece amanhã...

Apareceu. Bateu na porta da sala de Maurício, abraçaram-se e ele nunca mais saiu da RBS. No dia 15 de junho de 2009, fez uma festa pelos 70 anos. Na Redação, num grupo de amigos, avisou:

- Uma pessoa estará na minha festa sem

ser convidada. Uma pessoa que me amou muito e que eu amei. O Maurício estará

na minha festa.

Começou a chorar baixinho e foi consolado. A relação profissional de fidelidade à empresa era sustentada também pelos afetos com a família - especialmente com Maurício e Jayme Sirotsky e com os irmãos Nelson e Pedro, filhos de Maurício. Entrava na sala de qualquer um deles sem bater. Frequentava suas casas.

Uma tarde, no fumódromo, Sant'Ana falava da relação com a empresa e com os Sirotsky, quando confessou:

- Só há uma pessoa a quem obedeço. É como se eu fosse seu filho.

E depois arrematou:

- Algumas pessoas sabem algumas coisas de mim, e outras pensam que sabem muito. Mas só essa pessoa sabe tudo de mim.

Era para quem telefonava quando tinha uma notícia boa ou quando algo o atormentava, ou apenas quando estava dengoso:

- Nelson, por que tu não falas comigo há duas semanas?

Uma de suas mais belas crônicas, exatamente sobre os amigos, foi um dos primeiros textos a se multiplicar pela internet no Brasil, com autoria atribuída a Vinicius de Moraes.

Conseguia impressionar até mesmo quando, na contramão da chamada opinião pública, adotava posições politicamente incorretas ou consideradas esdrúxulas. E insistia:

- Quero ser lembrado como um louco genial.

Sua megalomania sem limites o levou a escrever dezenas de vezes, como fizeram os poetas românticos, sobre o próprio fim. Uma dessas crônicas imaginava o seu enterro: se teria pessoas chorosas, ou mulheres que o amaram secretamente, ou se, num cenário apavorante, poucos apareceriam para vê-lo no caixão. "Sem o comparecimento de ninguém, se tornaria o meu último e retumbante fracasso?"

O texto faz recomendações. Que o velório tenha um recital de violão e um solo de clarinete. O caixão deve descer ao sepulcro ao som de Rosa, de Pixinguinha, e Brasa, de Lupicínio. A crônica se encerra assim:

"E, depois que meu corpo fosse coberto de terra, não seria demais pedir que algum amigo recitasse Augusto dos Anjos:

E saí para ver a Natureza.

Em tudo o mesmo abismo de beleza,

Nem uma névoa no estrelado véu.

Mas pareceu-me entre as estrelas flóreas,

Como Elias num carro azul de glórias,

Ver a alma de Pablo subindo ao céu".

O poema original fala da "alma de meu pai subindo ao céu". Sant'Ana tem o direito de adaptar Augusto dos Anjos ao seu último desejo. Que se dê encaminhamento aos seus pedidos.

Gracias, Pablo. O que será de nós, os normais, sem tudo isso que tu atribuías à megalomania?

 

FRASES CÉLEBRES

 

Paulo Sant’Ana costumava dizer que só sabia escrever sobre algo que o angustiava ou o entusiasmava. E que, principalmente, despertasse emoção.

— Não sei por que, mas me realizo quando transmito emoção para o leitor, é meio que um pacto sensitivo que se estabelece entre quem escreve e quem lê, uma relação de êxito entre cronista e leitor — disse Sant’Ana.

E muita coisa mexeu com ele, e com seu público, durante os seus anos de atuação em ZH, na Rádio Gaúcha e na RBS TV.

Confira algumas das opiniões de um dos mais polêmicos e inquietos colunistas gaúchos:

 

AMIZADE

Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos

A gente não faz amigos, reconhece-os

Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus amigos e, principalmente, os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber que são meus verdadeiros amigos

AMOR

Tudo que nosso coração conquista ou o que por ele é conquistado, disso ele se torna para sempre prisioneiro. Não há jamais como fugir-se daquilo ou de quem se amou, mesmo que agora se o odeie

Mais fortes que o desejo de esquecer são as transformações físicas que se abatem sobre quem terminou um grande amor, coração batendo a mil, adrenalina, borboletas no estômago

Quem não soube amar, quem deixou escapar a magnífica oportunidade de amar para sempre e cada vez mais, tem que, como eu, ser condenado à solidão

Em realidade, a vida não é mais que a busca da felicidade. E, trágica ou sublimemente, o homem só se faz feliz pelo amor

A única forma de ser feliz é amar

O coração não sente ciúme. O coração só ama. Quem sente ciúme é o cérebro. Por isso se diz que o ciúme é coisa da cabeça da gente

CARISMA

BIPOLARIDADE

DESARMAMENTO

CASAMENTO

Criou-se no Rio Grande do Sul uma consciência muito lúcida de que ter uma arma em casa para defender-se é um direito inalienável e privá-lo das pessoas é uma violência

Se possível, para gaúdio do amor e da sobrevivência do casamento, morem em casas separadas. Como eu sempre digo, morem em ruas ou bairros diferentes, mudem-se para outra cidade, salvem seus amores e seus casamentos! Em outras palavras, permaneçam casados, mas vivam separados

O campo ideal para os chatos é uma pequena roda. Aí então eles atacam demolidoramente

Chato não perturba comício ou show artístico, justamente porque ele não consegue desviar da ribalta a atenção para ele

O carisma é irradiante, não é à toa que se dá também a carisma o sinônimo de liderança. É uma confiança que a gente empresta a uma pessoa pelo seu encanto inexprimível, algo que enche o ar de uma fantasia que nos hipnotiza e que não sabemos bem como definir

EX

GENIALIDADE

Um gênio só se conhece depois que milhares de pessoas garantam que têm talento igual ao dele

Na vida real, em todas as profissões, tudo acontece como no futebol: há os jogadores medíocres e há os craques

Se você não confia em sua mulher, não se separe dela. Atual mulher é cargo de carreira, ex-mulher é cargo de confiança

MÃE

Eu acho muito difícil que alguém valorize mais a figura da mãe do que eu, que não a tive. Havia dois anos apenas estava no mundo, quando minha mãe morreu. De lá para cá, todas as minhas tonteiras são devidas à sua ausência. Quero-a com toda a força do meu coração, sem saber quem ela foi, sem nunca ter guardado o som das suas palavras

Eu queria me aproximar dela (a mãe) e dizer bem baixinho no seu ouvido, bem manso e bem fundo: mãe, eu te amo tanto que nem a tua mais completa ausência jamais molestou a intensidade deste amor. Espera aí, daqui a pouco nós dois vamos nos acalorar num abraço de eternidade, porque é impossível que a gente não se tope mais adiante, nada teria sentido se não fosse assim

MENTE

MORALISMO

É clássico que por trás de quase todo moralista existe um cafajeste

É muito importante o que o homem faz, mas eu daria um doce para saber o que ele pensa. E entre o que faz e pensa quase sempre tropeça num abismo

 

MORTE

Quando eu morrer, quero à beira da sepultura todos os meus amigos e alguns dos meus inimigos arrependidos. Depois dos risos e lágrimas, voltem para casa e nunca mais se esqueçam de mim.

MULHERES

Quando uma mulher desafia um homem a encontrar nela o seu ponto G, é porque ela própria ainda não o descobriu e está procurando ajuda para achá-lo

Nada mais chato que uma mulher (ou um homem) sincera, sempre levantando problemas e restrições, enquanto a mulher fingida transforma em flores os obstáculos

PARDAIS

PASSADO

A memória é que mantém o homem preso à sua vida

O homem bebe ou usa drogas para fugir do passado. Para esquecer de suas faltas. E para driblar o destino

Sempre fui contra pardais. Já pela injustiça de que 90% das multas são contra motoristas que trafegam a 70 quilômetros por hora. É o império da fúria arrecadatória e da trampolinagem da propina

PENA DE MORTE

REALIDADE

Eu já disse que não tem nenhuma importância a realidade. O que importa é a leitura que cada pessoa faz da realidade

Sou a favor da pena de morte, mas Pablo, que vive dentro de mim e é uma espécie de meu alter ego, é contra. Pablo me adverte todos os dias de que, se os crimes hediondos têm de ser punidos com a eliminação de seus autores irregeneráveis, no entanto nada nos garante de que o Brasil possua equipamentos

SAUDADE

Celebra-se na saudade a recordação indelével de fato, circunstância, pessoa que nos fizeram felizes, cuja lembrança no entanto nos amassa pela certeza de que aquilo jamais poderá voltar a nos acontecer

A saudade se situa numa faixa de terreno entre o deleite e o amargor na alma humana

SEGREDO

SOLIDÃO

Quando o homem procura a companhia de um animal para livrar-se da solidão, é quase certo que fará somente bem à sua companhia — e esta a ele. Já quando o homem procura a companhia de outro humano para fugir da solidão, é grande o risco de que faça mal a ele ou dele o receba

O diabo é que o segredo sempre carrega dentro de si uma culpa, uma vontade de desabafar, um ímpeto de gritar ao mundo que todos deveriam ficar sabendo daquilo, libertar-se assim dos grilhões que amarram o seu segredo

TALENTO

TÉDIO

O tédio é irmão gêmeo da rotina. A tristeza é irmã gêmea da mesmice. Para sair deles e não se deixar arrastar para a depressão, na maioria das vezes é preciso a coragem de mudar

Um dos equívocos mais correntes no mundo moderno é a confusão que se faz com o homem culto, preparado, eficaz nas suas ações particulares e profissionais e o mesmo homem sem nenhum talento e inteligência

TEMPO

TRAIÇÃO

O marido que nunca trai, esse pode ser o mais promíscuo dos machos nos labirintos de uma cidade

Fingir e mentir são marcas indeléveis do homem e nunca vão desaparecer do seu caráter

Ou você passa o tempo ou você perde tempo. Perder tempo é parar no tempo, significa que não passou o tempo para você. Perder tempo é escolher mal o passatempo. Quem ama passa o tempo. Quem se debate num amor frustrado perde tempo

VIDA

A vida não passa de um passatempo. Todos nós vivemos a nos entregar a passatempos

A melhor maneira de renovar o amor é mudar de ambiente