SOREN ANDERSSON, AFP, BD
O NOBEL DE DYLAN

Celso Loureiro Chaves

cglchave@portoweb.com.br

Poeta/músico

ob Dylan, fabricante de canções. Para Dylan, “uma canção é como um sonho e tenta-se fazer com que ele se torne realidade”; compor uma canção é compor uma letra, às vezes guardando-a até que ela germine no tempo certo da canção. Pode ser que melodia e letra tenham surgido juntas ou que a letra tenha uma coloração “tonalidade menor”. Mas a realidade da letra e o conceito da canção são símbolos da mesma gênese, e é em torno deles que Dylan acrescenta “tecidos, cores, efeitos e magia técnica para atingir um objetivo”. Dylan compõe canções em qualquer lugar – num trem, num barco, cavalgando: “Estar em movimento ajuda muito. Às vezes, há gente que tem grande talento para escrever canções, mas nunca escreve porque não está em movimento”. Afinal, “criatividade tem muito a ver com experiência, observação e imaginação, e se algum desses elementos chaves estiver faltando, a coisa não funciona”. Crônicas – Volume um, a autobiografia de 2004, está cheia destas anotações sobre fazer canções. Ali, antes da página 100, Bob Dylan se define como poet musician, melhor traduzido como “poeta/músico”. Há polêmica todos os anos no Nobel de Literatura, principalmente se foi premiado algum escritor obscuro de alguma região periférica. O Nobel de Dylan acrescentou um ingrediente à polêmica: o prêmio foi para alguém que, na aparência, não é da literatura. Trata-se bem mais do que isto. O prêmio foi para a canção, e não foi para elevá-la à literatura ou para apequenar a literatura. A Academia Sueca se posicionou bem: “Por meio de sua obra, Bob Dylan alterou a ideia do que a poesia pode ser e de como opera. Ele é um cantor merecedor de um lugar junto a Ovídio, junto aos reis e rainhas do blues, junto aos mestres esquecidos de standards brilhantes”. Poeta. Cantor. Aí está: não mais nem menos do que o autorretrato de Dylan – poeta/músico. O que houve de transgressor foi a transversalidade do prêmio, o pensamento fora de retas, curvas e expectativas. Então, a ouvir Bob Dylan nas suas centenas de canções, ler os seus poucos livros, e pensar naquilo que ele disse ao agradecer: “Nem uma vez tive tempo de me perguntar: ‘Minhas canções são literatura?’. Por isso, agradeço à Academia Sueca tanto por reservar um tempo para enfrentar essa pergunta quanto, finalmente, por fornecer uma resposta tão maravilhosa”. B

Pedro Gonzaga

pdgonzaga@me.com

É música

S empre desconfio de prêmios. No caso da literatura, costumam chegar tarde, ignoram nomes por razões incompreensíveis (vide Borges), destacam coisas secundárias em seus escolhidos, borrando muitas vezes as virtudes das obras para se ater a fatos que tendem a se apagar depois que o tempo acaba tudo. Mas diga-se em favor: em sua arbitrariedade, revelam informações sobre os gostos e as crenças de uma comunidade, além de chancelar práticas acadêmicas e movimentar o mercado e as mídias. Desde que encontrem o nome certo na hora certa. Bob Dylan, um dos maiores compositores da segunda metade do século passado, foi a bola da vez, catapultado ao centro da polêmica que movimentou o esquálido mundo literário em 2016 ao receber o Nobel de Literatura por “ter criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção americana”. O argumento dos suecos, complementado por tentativas de legitimar suas letras (como se fosse preciso) unindo-as à poesia de Homero ou aos versos musicados dos trovadores medievais, soou forçado a qualquer estudioso de poesia. Se o objetivo era apontar uma inovação no campo da lírica, isso só revelou a desconexão dos julgadores em relação ao trabalho dos grandes poetas do século 20, alguns ainda vivos e ativos e à espera de um prêmio que lhes desse uma justa visibilidade, senão os R$ 4 milhões. Teria sido mais simples terem assumido: queremos premiar letras de música como se fossem literatura, mesmo que em 99% das vezes sejam ouvidas e não lidas. Já que pouca gente se interessa pela tradição escrita, vamos em direção ao público. Não somos gente de gabinete, somos sensíveis ao tempo. Difícil é explicar, passado o populismo, o esquartejamento do objeto. Em uma canção, a letra é só uma quarta parte. Há ainda melodia, harmonia e ritmo. Dylan, para mim, é mestre nas quatro partes. Por que não premiar, então, suas partituras? Letra e música juntas. Vocês sabem a resposta: lembraria a todos de que se trata de música, de som organizado no espaço, por voz e instrumentos. Um poema tem como tijolos apenas as palavras, emersas do silêncio, e por isso são ambas artes distintas, mas também complementares, irmãs que se afastam e se aproximam. Para riqueza das duas. Eliminando sutilezas, a Academia prova não sua modernidade, mas sua obtusidade. Quanto ao Dylan, mestre dessa forma híbrida que é a canção, está tocando aqui nos alto-falantes.
EPISÓDIOS MARCANTES A SURPRESA No dia 13 de outubro, a Academia Sueca surpreende e anuncia que o cantor e compositor Bob Dylan é o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2016. A honraria divide opiniões, entre fãs exultantes com o reconhecimento de que a obra do ídolo transcende a música e críticos que veem injustiça da Academia ao ignorar escritores renomados em nome de um artista de outra área. SUMIDO Em 17 de outubro, a Academia Sueca confirma que desistiu de buscar contato com Dylan para confirmar sua presença na cerimônia de entrega do Nobel. AUSÊNCIA CONFIRMADA A Academia Sueca anuncia, em 16 de novembro, que Bob Dylan não irá à cerimônia de entrega do Nobel devido a “outros compromissos”. Em dezembro, a entidade revela que o laureado enviou um discurso de agradecimento para ser lido no evento. A EMOÇÃO DE PATTI No dia 10 de dezembro, a cantora Patti Smith homenageia Dylan na cerimônia de entrega do Nobel. Ela canta A hard rain’s a-gonna fall e, emocionada, tem de interromper a música. Depois, pede desculpas e prossegue até o fim, recebendo fortes aplausos.