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CULTURA DEVASTADA

Roger Lerina

roger.lerina@zerohora.com.br

Apanhamos ainda

mais do que o usual

A intenção aqui, juro, não era lamentar – afinal, o senso comum anseia por palavras otimistas nos finais de ano. A lamúria, no entanto, parece inescapável quando se olha para trás deste longo e implacável 2016 para fazer um balanço da temporada na cultura e nas artes – um tom que, de resto, parece ser o dominante em qualquer área a ser avaliada. As mortes, por exemplo: ainda que seja natural sofrermos com as baixas no período, poucos imaginariam que a Ceifeira seria tão cruel neste ano – só no cinema, perdemos mestres como o italiano Ettore Scola, o iraniano Abbas Kiarostami, o francês Jacques Rivette, o argentino-brasileiro Hector Babenco e o polonês Andrzej Wajda. Na música pop, o baque foi igualmente estrondoso: que lembrança guardaremos de um ano que teve a ousadia e o mau gosto de nos privar de David Bowie, Prince, Leonard Cohen e George Michael em tão curto intervalo de tempo? E ainda teve o afogamento do ótimo artista de circo, de teatro, de cinema e de TV Domingos Montagner, morto no auge da carreira, como o protagonista da novela Velho Chico. O fim dessas vidas que tanto iluminaram as nossas só nos permite o luto e a resignação – afinal, morrer é imponderável e faz parte do jogo. Já o dano causado voluntariamente à arte provoca tristeza e indignação pela consciência dessa ação – ou omissão – por parte de quem dá as cartas. Em 2016, a cultura apanhou ainda mais do que o usual, sob a acusação sempre sacada em tempos difíceis – e quais não são? – de que se trata de algo supérfluo e, portanto, dispensável. Esse judas foi malhado na esfera pública em nível federal, estadual e municipal, sob o pretexto de ajustes políticos, saneamentos de contas ou mesmo sem desculpa nenhuma. Vimos o Ministério da Cultura ter seu fim decretado pelo governo Temer para logo em seguida ser recriado por conta da repercussão negativa de sua extinção. Curiosamente, o titular dessa “irrelevante” pasta detonou um escândalo que sacudiu Brasília, ao revelar a pressão que sofria de um de seus colegas ministros para atropelar o patrimônio histórico em favor da construção de um edifício. Já o governador gaúcho decidiu extinguir órgãos e fundações importantes, incluindo a que mantém a TVE e a FM Cultura, como parte de um pacote para combater a crise financeira do Estado. Novamente aquela visão estreita de que, por uma mirrada economia para os cofres públicos, vale sacrificar instituições fundamentais para entendermos quem somos e nos aprimorarmos como cidadãos e sociedade. A carestia também está por trás de impasses que atingem a manutenção pela prefeitura de Porto Alegre da Usina do Gasômetro, vítima de uma degradação que beira o abandono, e do Teatro de Câmara Túlio Piva, que permanece fechado. O saldo também não foi positivo por aqui para iniciativas que dependem de incentivo privado: a Fundação Iberê Camargo reduziu drasticamente seu horário de funcionamento, abrindo ao público agora somente às sextas e sábados para não fechar as portas em definitivo, o POA Jazz Festival teve que adiar para janeiro de 2017 a edição deste ano, a Bienal do Mercosul – que quase não realizou sua 10ª edição em 2015 – anunciou que vai pular o ano que vem e só voltará em 2018. E a sala sinfônica da Ospa ainda é um terreno baldio, a Caixa Cultural segue sendo uma miragem, festivais como o Porto Alegre Em Cena e o Canoas Jazz tiveram edições “de resistência” – e quem sabe como resistirão a 2017? Na hora de fazer os votos para o Ano-Novo, por favor, não se esqueça de reservar algumas palavrinhas para 2016: vade retro, annus horribilis!
EPISÓDIOS MARCANTES ADEUS, CAMALEÃO David Bowie morre em janeiro, aos 69 anos, após 18 meses de luta contra o câncer e apenas dias depois de lançar seu último álbum, Blackstar. A música ainda perderia Naná Vasconcelos, Prince, Leonard Cohen e George Michael. EXPEDIENTE RESTRITO Em dificuldades financeiras, o Theatro São Pedro passa a fechar para visitação durante o dia, abrindo apenas duas horas antes de cada espetáculo. O FIM (PROVISÓRIO) DO MINC Em maio, em anúncio de reforma ministerial, o presidente interino Michel Temer extingue o Ministério da Cultura e o anexa ao da Educação. Devido à forte repercussão negativa, Temer recria a pasta. IBERÊ ENXUTO Em agosto, a Fundação Iberê Camargo demite nove funcionários e reduz o horário de funcionamento. Antes aberto de terça a domingo, o museu passa a funcionar apenas às sextas e sábados, das 13h às 18h. LEVADO PELO VELHO CHICO Protagonista da novela Velho Chico, da Globo, Domingos Montagner morre aos 54 anos, afogado ao mergulhar no Rio São Francisco após gravações. FEIRA ENCOLHIDA A Feira do Livro de Porto Alegre reduz seu espaço físico em relação às edições anteriores e diminui o número de atividades infantis para diminuir custos. FERREIRA GULLAR Poeta e crítico de arte, entre outras atividades, morre no Rio de Janeiro, em dezembro, aos 86 anos. FUNDAÇÃO PIRATINI Incluída no pacote de cortes de despesas do governo do Estado, a Fundação Piratini, que administra TVE e FM Cultura, é extinta após tumultuada sessão na Assembleia.