RENATO PARADA, DIVULGAÇÃO
Com a palavra Marcos Nobre

Fábio Prikladnicki

fabio.pri@zerohora.com.br

“É impossível fazer a retrospectiva a não ser em tempo real”

P rofessor livre-docente da Unicamp, Marcos Nobre é um filósofo diferente: tem um pé na abstração conceitual dos grandes pensadores da teoria crítica e outro pé na realidade mais palpável da situação atual do Brasil e do mundo. Esta segunda competência ele tem exercitado não apenas no meio acadêmico, mas também na imprensa, tanto em sua coluna no jornal Valor quanto em entrevistas concedidas a diferentes veículos. Nobre também atua como pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), instituição criada em 1969 por intelectuais afastados da atividade acadêmica por se oporem à ditadura miliar, e que procuravam uma maneira de dar sequência a suas pesquisas. Entre os primeiros nomes que se envolveram com o projeto, estiveram Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Paul Singer e Francisco de Oliveira. Um dos veículos de divulgação do trabalho realizado é a revista Novos Estudos Cebrap, na qual Nobre publicou, em julho deste ano, o artigo 1988 + 30, com um balanço do sistema político brasileiro do período. Trata-se da continuidade de um pensamento exposto no livro Imobilismo em movimento – Da abertura democrática ao governo Dilma (Companhia das Letras). Filho do ex-deputado federal Freitas Nobre (1921 – 1990), Marcos estuda o fenômeno do peemedebismo, um modo de funcionar do sistema político brasileiro desde o Plano Real no qual um “centrão” compõe uma grande massa disforme no poder, às vezes com um síndico à direita (PSDB), às vezes à esquerda (PT). Como explica o filósofo e cientista social nesta entrevista concedida por telefone, de São Paulo, a função do centrão é buscar votos, enquanto o partido “síndico” coordena o governo, conferindo-lhe uma identidade. O efeito desse modo de operar é duplo: ao mesmo tempo em que a massa de apoio ao governo impõe resistência a transformações significativas, a oposição passa a ser uma “oposição interna”, à espera do poder. Na entrevista a seguir, Nobre, 51 anos, analisa o impasse político que o país vive hoje, aponta dilemas para o futuro e avalia que o ano de 2016 ficará marcado como um divisor de águas: a partir de agora, ou se aprofunda a participação democrática ou as demandas da população por mais voz serão manipuladas pela ascendente extrema direita, que amedronta até a direita tradicional.
A população vive uma grande descrença. Vimos, nas últimas eleições, alto percentual de votos nulos e abstenções, e votos em candidatos que se dizem “fora da política”, como João Doria, em São Paulo, ou Donald Trump, nos Estados Unidos. Como o senhor analisa esse cenário? A primeira coisa importante a dizer é que nunca vi tantas pessoas envolvidas com política no país desde a década de 1980. A política virou assunto para as pessoas no cotidiano. A segunda coisa importante é o que aconteceu no processo de impeachment. No começo das grandes manifestações contra o governo Dilma, não estava aberta a possibilidade de impeachment. De repente, o sistema político abriu essa porta e canalizou esse movimento para o impeachment. Do ponto de vista de quem foi para rua, (a questão) era contra o governo Dilma. Do ponto de vista do sistema político, (a questão) era encontrar uma estratégia para se defender da Lava-Jato porque o governo Dilma não estava se mostrando eficiente para defendê-los. O que aconteceu? O movimento pró-impeachment, do ponto de vista do sistema político, tentou fazer colar toda a corrupção no PT, na Dilma e no Lula. Essa estratégia de estabelecer uma coisa binária petismo/antipetismo deu certo para fazer o impeachment, mas depois ficou claro para as pessoas que foram à rua contra o governo Dilma que era uma farsa a tentativa de identificar a corrupção (exclusivamente) ao PT, Lula e Dilma e que isso era uma coisa que diz respeito a uma parcela gigantesca do sistema político. Onde entra a descrença das pessoas em relação à política nesse cenário? O antipetismo virou antissistema. Essa virada aconteceu justamente com o governo Temer. As pessoas passaram a ser contra as instituições, a política institucionalizada. Nesse momento, chegamos num ponto parecido com o que aconteceu na Argentina em 2001, quando havia o lema “Que se vayan todos!”. Do ponto de vista social, não existe mais um único alvo, um partido ou uma pessoa que se privilegie como símbolo da corrupção. Identificam-se a corrupção, a ineficiência e todas as mazelas ao próprio sistema político. Esse movimento de recusa da política institucional não é só brasileiro, é mundial. No Brasil, isso pela primeira vez apareceu nas ruas em 2013. E desde lá o sistema político está sob fogo cerrado. Então, temos uma situação assim: do ponto de vista institucional, há uma luta de grande parcela do sistema político para se salvar da Lava-Jato; tem a Lava-Jato acuando o sistema político e tem o STF tentando fazer a mediação impossível entre esses dois. Só que ali na base da sociedade tem uma rejeição a isso tudo, o que torna o divórcio entre sociedade e sistema político muito profundo. Quando digo que só é possível tentar repactuar isso com eleições, quero dizer que existe um divórcio entre a sociedade e o sistema político. O momento eleitoral é importante nesse tipo de repactuação. Qual a sua visão sobre as principais medidas tomadas pelo governo de Michel Temer: a PEC dos Gastos e a proposta de reforma da Previdência? Uma das coisas mais complicadas é que um governo que já tem claros problemas de legitimidade aplica um programa que não foi aprovado pela população. Isso claramente só vai aprofundar o fosso entre a sociedade e o sistema político. Uma coisa é fazer um orçamento responsável, obrigação de qualquer governo. Outra coisa é colocar uma autolimitação na construção do orçamento que projeta situações para daqui a 10 ou 20 anos e vai prejudicar áreas muito sensíveis. No fundo, quando pensamos na lógica da PEC, tem dois elementos importantes. O primeiro é que quem tiver maior organização e poder de pressão vai ser beneficiado no orçamento. E as pessoas mais pobres, as pessoas realmente desvalidas, não têm poder de pressão. É evidente que vão perder. A segunda coisa perversa é que, para se obrigar a respeitar o teto, terão que fazer reformas liberalizantes. Terão que diminuir o Estado, desestatizar, diminuir o investimento público, fazer reforma da Previdência, reforma trabalhista etc. Mas essa sempre foi a estratégia de saída. Ao mesmo tempo, sabemos que, antes mesmo de o teto entrar em vigor, várias categorias foram beneficiadas. Por exemplo, as desonerações que começaram no governo Dilma. Por que ainda continuam? Provavelmente terão que aumentar imposto no ano que vem, do jeito que está indo a economia. Na verdade, essa PEC dos Gastos é uma panela de pressão. A questão é saber se vai ou não explodir. Como fica o peemedebismo nessa situação? Vai seguir como modus operandi do sistema político ou está perdido por ter assumido a Presidência? A lógica, que começou no Plano Real, era mais ou menos a seguinte: tem dois polos, um deles liderado pelo PSDB e outro pelo PT, que coordenam o governo (alternadamente). Esses partidos dão seus melhores quadros para formular políticas governamentais transversais. O que significa isso? Que esse governo tem uma cara, uma identidade. É uma tarefa complicada. Ao mesmo tempo, quando você usa seus melhores quadros para a coordenação, não consegue usar todo o seu potencial para buscar voto. Então, você terceiriza a busca por votos. Tem no meio do sistema político esse enorme bloco peemedebista que está no governo seja qual for e que vai buscar voto. Você tenta dirigir essa massa informe em uma direção ou outra. Dá a coordenação, o rumo, o sentido geral e apresenta para a população o que é a unidade, a identidade desse governo. É uma coisa difícil de fazer, principalmente para quem simplesmente vende apoio parlamentar a qualquer governo. Isso foi o que o governo Temer acabou de descobrir: ele não tem como coordenar o governo. Nesse momento em que estamos conversando, o que o governo Temer fez foi reconhecer que é impossível um modelo em que o PMDB assuma a coordenação de governo. Vai entregar para o PSDB. Mas não é o PSDB todo. É uma derrota do governador Geraldo Alckmin que o PSDB tenha feito esse movimento para tomar o governo Temer. É arriscado para o partido – que tem três presidenciáveis – amarrar o seu destino a um governo que até agora tem sido uma bola de ferro para quem quer que tenha chegado perto. Mas não tem outra saída. Então, vamos ver em 2017 se o PSDB vai se tornar o líder desse governo, o que é provável; vamos ver se o PSDB vai ser bem-sucedido nessa tarefa de coordenar e liderar o governo Temer e, em terceiro, se o PSDB não vai, no final das contas, deixar uma saída de emergência para ele mesmo caso fique claro que esse governo está fazendo água e não é possível chegar com chances em 2018. O peemedebismo vai ficar do jeito que está? O PMDB se arriscou ao tomar o poder, porque não sabe liderar governo. Agora, digamos que tenha eleição em 2018, eleição antecipada ou eleição indireta pelo Congresso em 2017. Pode aparecer um peemedebismo 2.0, quer dizer, pode voltar àquela maneira de funcionar dos últimos 20 anos? É possível. Qual é a característica dessa maneira de funcionar? É que os governos funcionam na base de supermaioria, ou seja, o governo não tem uma simples maioria, tem que ter uma supermaioria: 400 deputados na Câmara, 60 senadores no Senado. Ao mesmo tempo, como são interesses muito diferentes e conflitantes, você não consegue dirigir essa massa com muita velocidade em uma determinada direção. Tem que andar devagar. E tem que contornar muito veto. O que se consegue aprovar e mexer é muito pouco. Essa é a lógica em que o PMDB nada de braçada, porque é a lógica da chantagem, da venda de apoio parlamentar, etc. Isso vai voltar? Acho difícil. Tem uma resistência social muito grande a isso. O que ficou claro a partir de 2013 é que o sistema político precisa se reorganizar de maneira que a gente não tenha simplesmente uma polarização entre PT e PSDB, e no meio uma massa informe e indistinta que pode ir para qualquer dos lados. As pessoas querem um sistema político polarizado por inteiro. Se você fez campanha para um candidato a presidente que perdeu e virou líder da oposição, seu partido é da oposição. Você não pode simplesmente passar para o governo no dia seguinte como se nada tivesse acontecido, como era o modelo anterior. Do outro lado, dá uma olhada na PEC do Teto. Vai ficar claro para quem ganhar em 2018 que ele (o vencedor da eleição) precisa derrubar essa PEC para fazer o orçamento, para conseguir realizar aquilo que foi debatido em eleições livres e ganho de maneira limpa. Ou seja, vai precisar de 3/5 na Câmara e no Senado. A PEC do Teto, na verdade, tem o efeito de dizer que o peemedebismo vai voltar. Porque você vai precisar de novo de uma supermaioria para conseguir fazer isso. Trump foi eleito, e vemos uma ascensão de candidatos de extrema-direita na Europa e no Brasil, numa nova onda de conservadorismo. Qual a dimensão desse fenômeno? Vamos pegar, por exemplo, as revoltas democráticas que começaram em 2011 na Tunísia, a Primavera Árabe, Occupy Wall Street, Indignados na Espanha, 2013 no Brasil, Praça Taksim na Turquia, Egito. O que foi aquilo? E o que foi junho de 2013 no Brasil nesse contexto mais amplo? Há uma insatisfação com a maneira pela qual o sistema político funciona, que é generalizada. Isso tem a ver com a crise mundial muito forte, com o fato de haver uma nova geração que começa a se interessar por política e que já nasce e vive no digital. Tem a quebra do monopólio da formação da opinião pelo que a gente chama de “grande mídia tradicional”. Temos o fato de se poder dialogar e debater em espaços públicos, mesmo que sejam redes sociais, que são espaços públicos e privados, misturados. Esses fatores levam à ideia de que temos que fazer política de uma nova maneira. Quando observamos uma sequência – o Brexit, o referendo na Colômbia e a eleição de Trump –, percebemos que as pessoas estão cansadas de ouvir, de ser simplesmente destinatárias de discursos. Essas pessoas querem ser sujeitos da política. Quais os dois caminhos para isso? Um é o de Trump. Ele de fato escuta as pessoas, escuta a raiva e o sofrimento social que está acontecendo no mundo inteiro e, em especial, nos EUA. Mas o que ele faz com isso? Ele manipula essa raiva e esse sofrimento em um sentido conservador. A outra saída seria de mais participação, em que você passasse a construir candidaturas em todos os níveis – nas cidades, nos Estados, para presidência – em processos amplos de consulta e deliberação. Processos como prévias para a escolha de candidatos. Esse também é o dilema das nossas instituições aqui (no Brasil). Se os partidos e movimentos não forem capazes de se abrir para a sociedade, no sentido de aprofundar a democracia, a possibilidade de uma manipulação pela extrema-direita aumenta, porque pelo menos essa nova extrema-direita escuta. E, de outro lado, há instituições tradicionais que dizem: “Eu sei o que é melhor para vocês”. E as pessoas não aguentam mais ouvir: “Eu sei o que é melhor para vocês”. O que as pessoas estão dizendo é: “Nós queremos decidir o que é melhor para nós mesmos”. Depois de 2008, pareceu que ocorreria uma guinada à esquerda, dadas as críticas à financeirização da economia e à desregulamentação que foram apontadas como causas da crise. Nos anos seguintes, por exemplo, fez sucesso o livro de Thomas Piketty, O capital no século XXI, sobre a desigualdade. Depois, houve o contrário: uma virada à direita. Não estamos nos anos 1930, ainda bem, não estamos ali na ascensão do fascismo, do nazismo. Mas não é por isso que vamos desconsiderar o fato de que a extrema-direita tem uma grande capacidade de se aproveitar de momentos de crise como o que estamos vivendo. O que está acontecendo é que as pessoas estão sem emprego, sem perspectiva de vida, os Estados nacionais estão acuados porque estão sem recursos. As pessoas sentem que não têm para onde correr. Nesse momento, você diz: “Esse sistema político, como está funcionando, não dá. Não está conseguindo servir a ninguém”. Esse é o quadro. O Piketty é uma exceção em um movimento mais amplo e subterrâneo em que o sistema político, enquanto tal, está em xeque, em que a perspectiva de futuro é totalmente nebulosa. Então, quando se juntam essas coisas – crise econômica, futuro nebuloso e incerto, um presente muito sofrido e um sistema político que você tem a sensação de que não está sendo capaz de responder a uma situação tão grave – você tem uma conjunção mundial propícia para movimentos de extrema-direita, inclusive contra a direita clássica. A direita clássica também está em pânico com esse movimento. Mas as alternativas, para mim, continuam as mesmas. Ou se tem uma saída virtuosa pelo aprofundamento da democracia ou vai se ter manipulação pela extrema-direita. Do ponto de vista objetivo, o que essa crise vai produzir é uma precarização, em nível mundial, como jamais vimos. De fato, estamos vendo os primeiros passos da utilização do enorme potencial que tem a internet para precarizar relações de trabalho, para precarizar condições de vida das pessoas. Isso vai ter consequências graves em um futuro próximo. Ficar atento a essas alternativas é muito importante. Porque, se você ficar no meio do caminho, se disser que aprofundar a democracia nesse momento não dá, quem vai levar é a extrema-direita. É grave. A guinada à direita reflete um conservadorismo no plano dos costumes? Porque ao mesmo tempo que Trump foi eleito nos EUA, diversos Estados americanos legalizaram algum tipo de uso da maconha. Além disso, o movimento feminista tem ganhado força. E recentemente, no Brasil, o STF decidiu, em um caso, que o aborto até os três primeiros meses de gestação não é crime. Muitas vezes, nesse tipo de batalha que se instaurou nas redes sociais, você congela uma pessoa por um determinado aspecto. Se ela tem uma opinião conservadora sobre um assunto, você declara essa pessoa conservadora. Só que as pessoas são mais complexas do que isso. Elas podem ter posições conservadoras sobre um tópico e progressistas sobre outro. O fato é que você tem dois campos com posições mais ou menos organizadas. Acontece que as pessoas estão demonstrando um grau de complexidade pelo qual não conseguem se identificar com um campo ou outro, a não ser de maneira forçada. Porque esses dois campos estão se reorganizando também. O que era a esquerda e a direta ou o campo progressista e o campo conservador antes da crise de 2008 vai ter uma cara diferente depois. O problema nesse processo é ter o cuidado de não dizer: “Se você é a favor de uma política que considero retrógrada, você é um conservador por inteiro”. Acho que o campo conservador está sendo mais bem-sucedido nisso. O campo progressista está em uma posição muito defensiva, falando para os próprios convertidos. Existem movimentos já claros no campo progressista ou da esquerda que estão vendo esse problema e estão querendo estender pontes para as pessoas sem rotulá-las como uma coisa ou outra. Mas isso é novo. Como 2016 vai ser visto na história? É impossível fazer uma retrospectiva de 2016 a não ser em tempo real. É um ano com tal grau de complexidade, uma quantidade de acontecimentos que não sei como é possível um jornal, uma revista, um programa de TV fazerem uma retrospectiva que não seja reproduzir o ano inteiro. A cada dia aconteceu uma, duas, três, quatro coisas extraordinárias. Uma coisa que se pode dizer é que 2016 vai ser um divisor de águas no futuro, no sentido da disputa política para uma abertura, um aprofundamento da democracia ou para uma manipulação por uma extrema-direita. Se não houver clareza nos campos democráticos tanto da direita quanto da esquerda, tanto conservadores quanto progressistas, de que a democracia está em risco e continuarem operando como se nada houvesse, a democracia vai perder. E 2016 vai ser colocado como o grande início disso. Então você tem revoltas democráticas que vão desde 2011 até 2014, 2015 e depois tem uma resposta conservadora de extrema-direita a essas mesmas revoltas democráticas. Quem vai ganhar? O aprofundamento da democracia ou a manipulação? Esse é o dilema que é colocado por 2016 para os próximos anos.
RENATO PARADA, DIVULGAÇÃO
COM A PALAVRA Marcos Nobre

“É impossível fazer

a retrospectiva a não ser em tempo real”

Fábio Prikladnicki

fabio.pri@zerohora.com.br
P rofessor livre-docente da Unicamp, Marcos Nobre é um filósofo diferente: tem um pé na abstração conceitual dos grandes pensadores da teoria crítica e outro pé na realidade mais palpável da situação atual do Brasil e do mundo. Esta segunda competência ele tem exercitado não apenas no meio acadêmico, mas também na imprensa, tanto em sua coluna no jornal Valor quanto em entrevistas concedidas a diferentes veículos. Nobre também atua como pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), instituição criada em 1969 por intelectuais afastados da atividade acadêmica por se oporem à ditadura miliar, e que procuravam uma maneira de dar sequência a suas pesquisas. Entre os primeiros nomes que se envolveram com o projeto, estiveram Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Paul Singer e Francisco de Oliveira. Um dos veículos de divulgação do trabalho realizado é a revista Novos Estudos Cebrap, na qual Nobre publicou, em julho deste ano, o artigo 1988 + 30, com um balanço do sistema político brasileiro do período. Trata-se da continuidade de um pensamento exposto no livro Imobilismo em movimento – Da abertura democrática ao governo Dilma (Companhia das Letras). Filho do ex-deputado federal Freitas Nobre (1921 – 1990), Marcos estuda o fenômeno do peemedebismo, um modo de funcionar do sistema político brasileiro desde o Plano Real no qual um “centrão” compõe uma grande massa disforme no poder, às vezes com um síndico à direita (PSDB), às vezes à esquerda (PT). Como explica o filósofo e cientista social nesta entrevista concedida por telefone, de São Paulo, a função do centrão é buscar votos, enquanto o partido “síndico” coordena o governo, conferindo-lhe uma identidade. O efeito desse modo de operar é duplo: ao mesmo tempo em que a massa de apoio ao governo impõe resistência a transformações significativas, a oposição passa a ser uma “oposição interna”, à espera do poder. Na entrevista a seguir, Nobre analisa o impasse político que o país vive hoje, aponta dilemas para o futuro e avalia que o ano de 2016 ficará marcado como um divisor de águas: a partir de agora, ou se aprofunda a participação democrática ou as demandas da população por mais voz serão manipuladas pela ascendente extrema direita, que amedronta até a direita tradicional.
A população vive uma grande descrença. Vimos, nas últimas eleições, alto percentual de votos nulos e abstenções, e votos em candidatos que se dizem “fora da política”, como João Doria, em São Paulo, ou Donald Trump, nos Estados Unidos. Como o senhor analisa esse cenário? A primeira coisa importante a dizer é que nunca vi tantas pessoas envolvidas com política no país desde a década de 1980. A política virou assunto para as pessoas no cotidiano. A segunda coisa importante é o que aconteceu no processo de impeachment. No começo das grandes manifestações contra o governo Dilma, não estava aberta a possibilidade de impeachment. De repente, o sistema político abriu essa porta e canalizou esse movimento para o impeachment. Do ponto de vista de quem foi para rua, (a questão) era contra o governo Dilma. Do ponto de vista do sistema político, (a questão) era encontrar uma estratégia para se defender da Lava-Jato porque o governo Dilma não estava se mostrando eficiente para defendê-los. O que aconteceu? O movimento pró-impeachment, do ponto de vista do sistema político, tentou fazer colar toda a corrupção no PT, na Dilma e no Lula. Essa estratégia de estabelecer uma coisa binária petismo/antipetismo deu certo para fazer o impeachment, mas depois ficou claro para as pessoas que foram à rua contra o governo Dilma que era uma farsa a tentativa de identificar a corrupção (exclusivamente) ao PT, Lula e Dilma e que isso era uma coisa que diz respeito a uma parcela gigantesca do sistema político. Onde entra a descrença das pessoas em relação à política nesse cenário? O antipetismo virou antissistema. Essa virada aconteceu justamente com o governo Temer. As pessoas passaram a ser contra as instituições, a política institucionalizada. Nesse momento, chegamos num ponto parecido com o que aconteceu na Argentina em 2001, quando havia o lema “Que se vayan todos!”. Do ponto de vista social, não existe mais um único alvo, um partido ou uma pessoa que se privilegie como símbolo da corrupção. Identificam-se a corrupção, a ineficiência e todas as mazelas ao próprio sistema político. Esse movimento de recusa da política institucional não é só brasileiro, é mundial. No Brasil, isso pela primeira vez apareceu nas ruas em 2013. E desde lá o sistema político está sob fogo cerrado. Então, temos uma situação assim: do ponto de vista institucional, há uma luta de grande parcela do sistema político para se salvar da Lava-Jato; tem a Lava-Jato acuando o sistema político e tem o STF tentando fazer a mediação impossível entre esses dois. Só que ali na base da sociedade tem uma rejeição a isso tudo, o que torna o divórcio entre sociedade e sistema político muito profundo. Quando digo que só é possível tentar repactuar isso com eleições, quero dizer que existe um divórcio entre a sociedade e o sistema político. O momento eleitoral é importante nesse tipo de repactuação. Qual a sua visão sobre as principais medidas tomadas pelo governo de Michel Temer: a PEC dos Gastos e a proposta de reforma da Previdência? Uma das coisas mais complicadas é que um governo que já tem claros problemas de legitimidade aplica um programa que não foi aprovado pela população. Isso claramente só vai aprofundar o fosso entre a sociedade e o sistema político. Uma coisa é fazer um orçamento responsável, obrigação de qualquer governo. Outra coisa é colocar uma autolimitação na construção do orçamento que projeta situações para daqui a 10 ou 20 anos e vai prejudicar áreas muito sensíveis. No fundo, quando pensamos na lógica da PEC, tem dois elementos importantes. O primeiro é que quem tiver maior organização e poder de pressão vai ser beneficiado no orçamento. E as pessoas mais pobres, as pessoas realmente desvalidas não têm poder de pressão. É evidente que vão perder. A segunda coisa perversa é a que, para se obrigar a respeitar o teto, terão que fazer reformas liberalizantes. Terão que diminuir o Estado, desestatizar, diminuir o investimento público, fazer reforma da Previdência, reforma trabalhista etc. Mas essa sempre foi a estratégia de saída. Ao mesmo tempo, sabemos que, antes mesmo de o teto entrar em vigor, várias categorias foram beneficiadas. Por exemplo, as desonerações que começaram no governo Dilma. Por que ainda continuam? Provavelmente terão que aumentar imposto no ano que vem, do jeito que está indo a economia. Na verdade, essa PEC dos Gastos é uma panela de pressão. A questão é saber se vai ou não explodir. Como fica o peemedebismo nessa situação? Vai seguir como modus operandi do sistema político ou está perdido por ter assumido a Presidência? A lógica, que começou no Plano Real, era mais ou menos a seguinte: tem dois polos, um deles liderado pelo PSDB e outro pelo PT, que coordenam o governo (alternadamente). Esses partidos dão seus melhores quadros para formular políticas governamentais transversais. O que significa isso? Que esse governo tem uma cara, uma identidade. É uma tarefa complicada. Ao mesmo tempo, quando você usa seus melhores quadros para a coordenação, não consegue usar todo o seu potencial para buscar voto. Então, você terceiriza a busca por votos. Tem no meio do sistema político esse enorme bloco peemedebista que está no governo seja qual for e que vai buscar voto. Você tenta dirigir essa massa informe em uma direção ou outra. Dá a coordenação, o rumo, o sentido geral e apresenta para a população o que é a unidade, a identidade desse governo. É uma coisa difícil de fazer, principalmente para quem simplesmente vende apoio parlamentar a qualquer governo. Isso foi o que o governo Temer acabou de descobrir: ele não tem como coordenar o governo. Nesse momento em que estamos conversando, o que o governo Temer fez foi reconhecer que é impossível um modelo em que o PMDB assuma a coordenação de governo. Vai entregar para o PSDB. Mas não é o PSDB todo. É uma derrota do governador Geraldo Alckmin que o PSDB tenha feito esse movimento para tomar o governo Temer. É arriscado para o partido – que tem três presidenciáveis – amarrar o seu destino a um governo que até agora tem sido uma bola de ferro para quem quer que tenha chegado perto. Mas não tem outra saída. Então, vamos ver em 2017 se o PSDB vai se tornar o líder desse governo, o que é provável; vamos ver se o PSDB vai ser bem-sucedido nessa tarefa de coordenar e liderar o governo Temer e, em terceiro, se o PSDB não vai, no final das contas, deixar uma saída de emergência para ele mesmo caso fique claro que esse governo está fazendo água e não é possível chegar com chances em 2018. O peemedebismo vai ficar do jeito que está? O PMDB se arriscou ao tomar o poder, porque não sabe liderar governo. Agora, digamos que tenha eleição em 2018, eleição antecipada ou eleição indireta pelo Congresso em 2017. Pode aparecer um peemedebismo 2.0, quer dizer, pode voltar àquela maneira de funcionar dos últimos 20 anos? É possível. Qual é a característica dessa maneira de funcionar? É que os governos funcionam na base de supermaioria, ou seja, o governo não tem uma simples maioria, tem que ter uma supermaioria: 400 deputados na Câmara, 60 senadores no Senado. Ao mesmo tempo, como são interesses muito diferentes e conflitantes, você não consegue dirigir essa massa com muita velocidade em uma determinada direção. Tem que andar devagar. E tem que contornar muito veto. O que se consegue aprovar e mexer é muito pouco. Essa é a lógica em que o PMDB nada de braçada, porque é a lógica da chantagem, da venda de apoio parlamentar, etc. Isso vai voltar? Acho difícil. Tem uma resistência social muito grande a isso. O que ficou claro a partir de 2013 é que o sistema político precisa se reorganizar de maneira que a gente não tenha simplesmente uma polarização entre PT e PSDB, e no meio uma massa informe e indistinta que pode ir para qualquer dos lados. As pessoas querem um sistema político polarizado por inteiro. Se você fez campanha para um candidato a presidente que perdeu e virou líder da oposição, seu partido é da oposição. Você não pode simplesmente passar para o governo no dia seguinte como se nada tivesse acontecido, como era o modelo anterior. Do outro lado, dá uma olhada na PEC do Teto. Vai ficar claro para quem ganhar em 2018 que ele (o vencedor da eleição) precisa derrubar essa PEC para fazer o orçamento, para conseguir realizar aquilo que foi debatido em eleições livres e ganho de maneira limpa. Ou seja, vai precisar de 3/5 na Câmara e no Senado. A PEC do Teto, na verdade, tem o efeito de dizer que o peemedebismo vai voltar. Porque você vai precisar de novo de uma supermaioria para conseguir fazer isso. Trump foi eleito, e vemos uma ascensão de candidatos de extrema-direita na Europa e no Brasil, numa nova onda de conservadorismo. Qual a dimensão desse fenômeno? Vamos pegar, por exemplo, as revoltas democráticas que começaram em 2011 na Tunísia, a Primavera Árabe, Occupy Wall Street, Indignados na Espanha, 2013 no Brasil, Praça Taksim na Turquia, Egito. O que foi aquilo? E o que foi junho de 2013 no Brasil nesse contexto mais amplo? Há uma insatisfação com a maneira pela qual o sistema político funciona, que é generalizada. Isso tem a ver com a crise mundial muito forte, com o fato de haver uma nova geração que começa a se interessar por política e que já nasce e vive no digital. Tem a quebra do monopólio da formação da opinião pelo que a gente chama de “grande mídia tradicional”. Temos o fato de se poder dialogar e debater em espaços públicos, mesmo que sejam redes sociais, que são espaços públicos e privados, misturados. Esses fatores levam à ideia de que temos que fazer política de uma nova maneira. Quando observamos uma sequência – o Brexit, o referendo na Colômbia e a eleição de Trump –, percebemos que as pessoas estão cansadas de ouvir, de ser simplesmente destinatárias de discursos. Essas pessoas querem ser sujeitos da política. Quais os dois caminhos para isso? Um é o de Trump. Ele de fato escuta as pessoas, escuta a raiva e o sofrimento social que está acontecendo no mundo inteiro e, em especial, nos EUA. Mas o que ele faz com isso? Ele manipula essa raiva e esse sofrimento em um sentido conservador. A outra saída seria de mais participação, em que você passasse a construir candidaturas em todos os níveis – nas cidades, nos Estados, para presidência – em processos amplos de consulta e deliberação. Processos como prévias para a escolha de candidatos. Esse também é o dilema das nossas instituições aqui (no Brasil). Se os partidos e movimentos não forem capazes de se abrir para a sociedade, no sentido de aprofundar a democracia, a possibilidade de uma manipulação pela extrema-direita aumenta, porque pelo menos essa nova extrema-direita escuta. E, de outro lado, há instituições tradicionais que dizem: “Eu sei o que é melhor para vocês”. E as pessoas não aguentam mais ouvir: “Eu sei o que é melhor para vocês”. O que as pessoas estão dizendo é: “Nós queremos decidir o que é melhor para nós mesmos”. Depois de 2008, pareceu que ocorreria uma guinada à esquerda, dadas as críticas à financeirização da economia e à desregulamentação que foram apontadas como causas da crise. Nos anos seguintes, por exemplo, fez sucesso o livro de Thomas Piketty, O capital no século XXI, sobre a desigualdade. Depois, houve o contrário: uma virada à direita. Não estamos nos anos 1930, ainda bem, não estamos ali na ascensão do fascismo, do nazismo. Mas não é por isso que vamos desconsiderar o fato de que a extrema-direita tem uma grande capacidade de se aproveitar de momentos de crise como o que estamos vivendo. O que está acontecendo é que as pessoas estão sem emprego, sem perspectiva de vida, os Estados nacionais estão acuados porque estão sem recursos. As pessoas sentem que não têm para onde correr. Nesse momento, você diz: “Esse sistema político, como está funcionando, não dá. Não está conseguindo servir a ninguém”. Esse é o quadro. O Piketty é uma exceção em um movimento mais amplo e subterrâneo em que o sistema político, enquanto tal, está em xeque, em que a perspectiva de futuro é totalmente nebulosa. Então, quando se juntam essas coisas – crise econômica, futuro nebuloso e incerto, um presente muito sofrido e um sistema político que você tem a sensação de que não está sendo capaz de responder a uma situação tão grave – você tem uma conjunção mundial propícia para movimentos de extrema-direita, inclusive contra a direita clássica. A direita clássica também está em pânico com esse movimento. Mas as alternativas, para mim, continuam as mesmas. Ou se tem uma saída virtuosa pelo aprofundamento da democracia ou vai se ter manipulação pela extrema-direita. Do ponto de vista objetivo, o que essa crise vai produzir é uma precarização, em nível mundial, como jamais vimos. De fato, estamos vendo os primeiros passos da utilização do enorme potencial que tem a internet para precarizar relações de trabalho, para precarizar condições de vida das pessoas. Isso vai ter consequências graves em um futuro próximo. Ficar atento a essas alternativas é muito importante. Porque, se você ficar no meio do caminho, se disser que aprofundar a democracia nesse momento não dá, quem vai levar é a extrema-direita. É grave. A guinada à direita reflete um conservadorismo no plano dos costumes? Porque ao mesmo tempo que Trump foi eleito nos EUA, diversos Estados americanos legalizaram algum tipo de uso da maconha. Além disso, o movimento feminista tem ganhado força. E recentemente, no Brasil, o STF decidiu que o aborto até os três primeiros meses de gestação não é crime. Muitas vezes, nesse tipo de batalha que se instaurou nas redes sociais, você congela uma pessoa por um determinado aspecto. Se ela tem uma opinião conservadora sobre um assunto, você declara essa pessoa conservadora. Só que as pessoas são mais complexas do que isso. Elas podem ter posições conservadoras sobre um tópico e progressistas sobre outro. O fato é que você tem dois campos com posições mais ou menos organizadas. Acontece que as pessoas estão demonstrando um grau de complexidade pelo qual não conseguem se identificar com um campo ou outro, a não ser de maneira forçada. Porque esses dois campos estão se reorganizando também. O que era a esquerda e a direta ou o campo progressista e o campo conservador antes da crise de 2008 vai ter uma cara diferente depois. O problema nesse processo é ter o cuidado de não dizer: “Se você é a favor de uma política que considero retrógrada, você é um conservador por inteiro”. Acho que o campo conservador está sendo mais bem-sucedido nisso. O campo progressista está em uma posição muito defensiva, falando para os próprios convertidos. Existem movimentos já claros no campo progressista ou da esquerda que estão vendo esse problema e estão querendo estender pontes para as pessoas sem rotulá-las como uma coisa ou outra. Mas isso é novo. Como 2016 vai ser visto na história? É impossível fazer uma retrospectiva de 2016 a não ser em tempo real. É um ano com tal grau de complexidade, uma quantidade de acontecimentos que não sei como é possível um jornal, uma revista, um programa de TV fazerem uma retrospectiva que não seja reproduzir o ano inteiro. A cada dia aconteceu uma, duas, três, quatro coisas extraordinárias. Uma coisa que se pode dizer é que 2016 vai ser um divisor de águas no futuro, no sentido da disputa política para uma abertura, um aprofundamento da democracia ou para uma manipulação por uma extrema-direita. Se não houver clareza nos campos democráticos tanto da direita quanto da esquerda, tanto conservadores quanto progressistas, de que a democracia está em risco e continuarem operando como se nada houvesse, a democracia vai perder. E 2016 vai ser colocado como o grande início disso. Então você tem revoltas democráticas que vão desde 2011 até 2014, 2015 e depois tem uma resposta conservadora de extrema direita a essas mesmas revoltas democráticas. Quem vai ganhar? O aprofundamento da democracia ou a manipulação? Esse é o dilema que é colocado por 2016 para os próximos anos.