NELSON ALMEIDA , AFP, BD, 29/11/2016
A TRAGÉDIA DA CHAPECOENSE

Tulio Milman

tulio.milman@rbstv.com.br

Foi uma luz intensa

a que nasceu

da escuridão

C hocolate com doce de leite. Copo grande. Foi a minha escolha. Resultado direto da dor. Um caminho meio estranho, que só depois consegui mapear. Alguns litros de combustível teriam evitado a queda do avião. Uma decisão humana. Arriscar. O piloto agiu assim. Todo mundo já sabe. Ganância é a palavra que empurra na direção errada. Termina em queda, raramente tão concreta e simbólica, ao mesmo tempo, quanto a que matou jogadores, comissão técnica, jornalistas e tripulação a poucos quilômetros de uma pista de pouso na Colômbia. A comoção é pedra jogada na água. Gera ondas concêntricas que vão longe. Dia 29 de novembro, percorreram a distância do mundo. Comoveram pela redescoberta dessa capacidade linda de ser solidário, de chorar pelo outro, de reconectar com o essencial. Naquela semana, muita gente abraçou a família, voltou a dizer que amava, viu que seus problemas não eram tão grandes assim. Olhou o pôr do sol, telefonou para o amigo. Muita gente reagiu de formas ímpares, sem se dar conta de que era efeito da queda do avião e do sonho que ele transportava. É estranho afirmar: a Chapecoense é grande. O mundo todo é quem diz. Poderia ser de outro jeito, mas não nos deram opção. Ainda tonto de tantas notícias, olhei pras minhas filhas. Senti, ao mesmo tempo, a saudade e a urgência do tempo que as faz crescer tão rápido. Lembrei-me delas bebês no meu colo. Aquelas coisas de que os pais se lembram. As madrugadas, as primeiras febres e palavras. Então, no caminho do colégio, olhei pra Ana, 10 anos, e disse: “Antes do fim de ano vou te buscar de surpresa, um dia, pra gente ir tomar um sorvete”. “No meio da aula, papai?”, ela rebateu, com espanto e alegria. “Sim, no meio da aula”, prometi. Eu tinha quase esquecido quando, numa tarde, meu dia terminou cedo. A agenda fluiu. A coluna de Zero Hora ficou pronta. Pensei: se fosse uma notícia ruim, ou a consulta urgente no médico, ninguém acharia estranho matar aula. Por que não por um sorvete? A Ana já tinha terminado as provas, tirou notas boas. Estacionei meu carro na frente do colégio. Tudo vazio naquela hora em que os pais delegam a guarda dos filhos à escola. Entrei, parei no balcão e disse: “Vim buscar a minha filha para tomar um sorvete”. As meninas do atendimento riram e adoraram. Uma delas telefonou para o andar de cima. Alguns minutos depois, apareceu a Ana, mochila nas costas e sorrisão no rosto. Fomos os dois tomar sorvete no meio daquele dia tão ocupado de dezembro. Logo eu que sou viciado em pontualidade e defendo a frequência às aulas como valor fundamental. Foi divertido e lindo. Conversamos e rimos. Uma hora e meia depois, deixei minha filha de novo na escola. Feliz por me contradizer com tanta certeza. Foi uma luz intensa a que nasceu da escuridão. Nas relações de amor, de carinho e de amizade, jamais, jamais mesmo, a gente pode deixar faltar combustível. “Papai, vamos fazer isso todos os anos?”, a Ana sugeriu. Topei na hora. Chocolate com doce de leite. Foram os sabores que escolhi.
EPISÓDIOS MARCANTES O DESASTRE No dia 28 de novembro, o avião fretado que leva a delegação da Chapecoense, junto com jornalistas e torcedores, cai pouco antes de pousar em Medellín (Colômbia) para o primeiro jogo da decisão da Copa Sul-Americana, contra o Atlético Nacional. Setenta e uma pessoas morrem, e há seis sobreviventes, sendo quatro brasileiros: o zagueiro Neto, o lateral Alan Ruschel, o goleiro Follmann e o jornalista Rafael Henzel. A COMOÇÃO O Atlético Nacional pede que o título seja dado à Chapecoense. Clubes europeus fazem um minuto de silêncio antes de seus treinos e de seus jogos. No local da final, o estádio Atanasio Girardot, e na hora marcada para o pontapé inicial, a torcida do Nacional toma as arquibancadas e o entorno do estádio para uma tocante homenagem às vítimas. SEM COMBUSTÍVEL No início de dezembro, documento com o plano de voo, autorizado na Bolívia, mostra que o avião decolou com combustível só para cumprir o exato tempo de voo a Medellín. VELÓRIO COLETIVO Em 3 de dezembro, os corpos chegam ao Brasil para um velório coletivo, debaixo de chuva, na Arena Condá, estádio da Chapecoense. CAMPEÃ Atendendo ao pedido do Atlético Nacional, a Conmebol declara a Chapecoense campeã da Copa Sul-Americana, com premiação de US$ 2 milhões e vaga na Libertadores. Em 9 de dezembro, Vagner Mancini é anunciado como técnico e o clube inicia a busca por reforços. No dia 15, Neto é o último brasileiro a voltar. No dia 16, Alan Ruschel é o primeiro a receber alta. RESPONSABILIZADOS Em 20 de dezembro, o governo boliviano conclui que o piloto Miguel Quiroga e a empresa LaMia foram os “responsáveis diretos” pelo acidente.